Páginas

6.10.25

Educação Brasileira: o Descompasso entre o Discurso e a Realidade

 



Por que, passadas duas décadas de políticas e programas, a educação brasileira ainda não alcançou a qualidade que o país precisa.

Enquanto se discutem reformas e se celebram indicadores superficiais, a realidade da escola pública brasileira permanece inalterada. Diagnósticos se sucedem, relatórios se acumulam, mas o ensino continua distante das necessidades reais de professores e estudantes. Este ensaio busca analisar os fatores estruturais que travam a evolução da educação nacional, destacando a centralidade do professor, a urgência da equidade e a necessidade de um projeto educacional capaz de transformar, de fato, a sociedade.

Todas as iniciativas do Ministério da Educação em favor do aprimoramento do ensino nacional são dignas de reconhecimento. No entanto, ainda permanecem aquém do essencial. Aparentam corrigir falhas pontuais, mas não tocam o âmago da questão. Medidas de efeito rápido e forte apelo popular produzem manchetes e simpatias, mas pouco alteram a substância do problema. A educação, para se transformar de fato, exige um projeto de longo fôlego, ancorado em duas frentes inadiáveis: a construção de uma educação socialmente referenciada e a formação rigorosa, intelectual e ética de seus professores. Sem isso, toda política educacional continuará orbitando em torno do mesmo vazio — o de uma educação que promete muito, mas entrega pouco.

Estamos a concluindo o primeiro quarto do século XXI e, apesar dos discursos otimistas, pouco ou nada avançamos nos indicadores internacionais de qualidade educacional. A avaliação aplicada pela OCDE continua a revelar um quadro preocupante. No relatório de 2000, elaborado pelo próprio Ministério da Educação, já se constatava que o desempenho dos estudantes brasileiros espelhava a precariedade do ensino de leitura e de produção de textos, bem como a persistência de uma escola afastada das “reais necessidades de uso social da linguagem” (PISA 2000 – Relatório Nacional).

Naquele momento, a Secretaria de Ensino Fundamental procurou reagir: criou um programa de apoio a escolas e professores, com o propósito de integrar as práticas pedagógicas às diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Organizaram-se cursos e oficinas voltados ao aperfeiçoamento dos projetos pedagógicos, tendo como eixo a atuação docente.

Passadas mais de duas décadas, o relatório de 2022 expõe a estagnação. A média geral do Brasil permanece estatisticamente inalterada desde 2009. Em Matemática, nossos estudantes se equiparam aos da Colômbia e da Argentina; em Leitura, aos da Costa Rica, Colômbia e Peru; e em Ciências, empatam com Peru e Argentina (Programa Internacional de Avaliação – PISA 2022). O tempo passou, as políticas se sucederam, mas a realidade essencial da escola brasileira segue quase intacta — como se estivéssemos condenados a repetir diagnósticos sem jamais alcançar o remédio.

O que explica tamanha estagnação não é o acaso, tampouco a falta de diagnósticos. O problema é estrutural e antigo e a nossa educação brasileira teima em reproduzir as desigualdades, não para superá-las. Desde suas origens, o sistema escolar esteve a serviço da seleção social e da legitimação de hierarquias, travestindo de mérito o que, na verdade, é privilégio. A vigente Lei de Diretrizes e Bases, assim como as políticas públicas — ainda que bem-intencionadas — tendem a operar apenas na superfície do problema, sem alterar as bases materiais e simbólicas que sustentam o fracasso. Os pífios objetivos da LDB nos dão a verdadeira dimensão do problema: 

Art. 2o 

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Se observamos bem, com os olhos bem abertos, nada mais se pretende além de qualificar os estudantes, futuros cidadãos, para o trabalho o qual, diga-se a bem da verdade, um trabalho com carteira assinada e baixa remuneração.  

Quanto à formação docente, por exemplo, ela também permanece prisioneira de um modelo que pouco dialoga com a realidade da sala de aula. Cursos fragmentados, currículos engessados e uma prática de estágio meramente formal não preparam o professor para lidar com a complexidade do ensino contemporâneo. Soma-se a isso a desvalorização histórica da carreira, traduzida em baixos salários, sobrecarga de trabalho e ausência de reconhecimento social. Espera-se do professor um papel de protagonista, mas lhe negam o roteiro, os instrumentos e até o palco.

Também pesa sobre a escola o peso da desigualdade social, que se infiltra em cada aula, em cada avaliação, em cada expectativa frustrada. É impossível pensar em educação de qualidade sem pensar em equidade. Enquanto a fome, a falta de infraestrutura e o analfabetismo funcional persistirem como sombras do cotidiano, toda reforma educacional será apenas um adorno retórico sobre um terreno corroído.

A escola brasileira, em sua melhor expressão, resiste. Sobrevive pela dedicação silenciosa de milhares de professores e professoras que, mesmo exaustos, ainda acreditam no poder transformador do conhecimento. Mas a transformação verdadeira — aquela que toca o cerne — depende de um pacto nacional que coloque a educação acima dos cálculos eleitorais e das estatísticas de ocasião. Sem isso, continuaremos colecionando relatórios, enquanto o país envelhece sem aprender.

Chegamos, portanto, a um ponto de inflexão. O discurso sobre a importância da educação tornou-se um consenso retórico, mas não uma prática nacional. O país aprendeu a celebrar diagnósticos, não a enfrentá-los. Falta-nos coragem intelectual e política para reconhecer que a escola pública brasileira não precisa apenas de reformas — precisa de refundação.

Refundar significa devolver à educação o seu sentido civilizatório, concebendo-a como o espaço privilegiado da emancipação humana. Significa investir no professor não como executor de políticas, mas como sujeito pensante, criador e crítico. Significa, ainda, compreender que qualidade não se mede apenas por índices internacionais, mas pela capacidade de formar cidadãos conscientes, capazes de ler o mundo e transformá-lo.

Enquanto a educação for tratada como promessa de campanha e não como projeto de nação, permaneceremos reféns do atraso. A verdadeira revolução educacional não virá dos slogans nem das plataformas digitais, mas do reencontro entre o saber e o sentido — entre o ensino e a vida real das pessoas. Só então deixaremos de repetir as velhas estatísticas e poderemos, enfim, dizer que o Brasil começou a aprender.

5.10.25

As ficções que nos governam — e os autores que as vendem

 


Há uma ingenuidade intelectual aqui no Brasil, entre nós, que me deixa boquiaberto. Somos tão espertos que muitos chamam a NASA para estudar os produtos da nossa criatividade, mas quando se trata de interpretar determinado autor há uma preguiça crônica de ler e criticar que facilmente permite que tal autor ocupe o primeiro lugar de vendas, lote auditórios e fique sem agenda para novas palestras.

Como exemplo de autor incensado entre nós cito o acadêmico português Boaventura Santos que, sem críticas aprofundadas no meio acadêmico e social, aparece no plano teórico como sendo progressista e inovador em seus escritos sobre epistemologia, justiça social e conhecimento marginalizado. No plano prático e político ele não está nem aí para as consequências materiais do que defende, como ocorreu por ocasião da integração de Portugal à UE e, de forma mais sutil, com o modelo de universidade empresarial que propõe. Aqui entre nós, pouca atenção se dá ao Senhor Boaventura Santos quanto a sua ética acadêmica, responsabilidade intelectual e compromisso com as classes populares (que é nenhum).

O intelectual da vez é o jovem acadêmico Yuval Noah Harari (Haifa, 24 de fevereiro de 1976 – 49 anos) e os seus best-sellers SapiensHomo Deus. Neles defende em tese que nos tornamos capazes de dominar o planeta porque somos capazes de cooperar em larga escala e acreditar em ficções coletivas – mitos, religiões, ideologias, dinheiro, leis e nações. A chave para tal seria a nossa imaginação compartilhada o que, aliás, nos distingue das demais espécies. A nossa história segundo diz, é a história das nossas ficções. Até aqui, tudo bem, sem muitos problemas. 

Mas quando ele entra na era da Revolução Científica, Industrial e Tecnológica um problema sério emerge, a coisa fica complicada. A sua Inteligência Artificial (IA), na medida em que vai dominando o modo de produção, vai criando uma categoria de trabalhadores não mais necessária para a produção ou funcionamento da sociedade. Os integrantes desta categoria perdem relevância econômica e funcional , algo semelhante ao que acontece com os “selvagens” de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo que não foram condicionados pela sociedade tecnocrática do Estado Mundial. 

Eu acho sempre perigoso não criar saídas para os “inúteis’ de um modo de produção controlado por IA. Alguns ficcionistas já chamaram a atenção para a tragédia que pode acontecer, em filmes como A Ilha (2005) e Elysium (2013). Nestes filmes os excluídos são eliminados de variadas formas, até com comemorações alegres como no filme A Ilha. Mas não precisa haver a morte de ninguém. Thomas More, por exemplo, no seu livro Utopia, colocou a elite a evoluir espiritualmente por meio da poesia, literatura, música, artes etc. enquanto os escravos tratavam de lhe garantir a sobrevivência material. Dennis Feltham Jones autor de Colossus, filmado sob o título de “Colossus 1980 – o projeto proibido", mais recentemente também encontrou uma saída humanitária: ele levou os seus computadores a encontrar um modo de manter vivos, saudáveis e alegres todos aqueles que foram expelidos do modo de produção. Os computadores conectados, o dos EUA e o da Rússia, trabalhavam para a humanidade ficar de boa, como a rapaziada fala. 

Eu também penso não ser necessário descartar pessoas, sou radicalmente contra qualquer forma de liquidar pessoas; afinal o ócio criativo está aí e pode muito bem ser uma saída desde que seja superada a forma social capitalista, como fala Istvan Mészaros. Em uma sociedade totalmente controlada pela IA, onde a propriedade e a acumulação privada já não existissem mais e o trabalho tivesse deixado de ser meio de sobrevivência e se tornado atividade livre e consciente, não seria fantástico se todos tivéssemos tempo de autorrealização, de criação e de desenvolvimento humano integral?  

Pelo mundo afora, ainda que sem sucesso, diversas cidades têm experimentado garantir renda básica para todos aqueles que estiverem fora do mercado de trabalho. Não têm dado certo. As experiências, contudo, atestam que "a  ideia de trabalhar menos e receber uma renda estável, humana e básica ganha impulso e começa a influenciar o debate de maneira inimaginável há dez anos" (https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/renda-cidada-ocio-criativo-e-o-futuro-do-trabalho/)

As teses de Harari, a despeito da problemática imediata, não deixam de chamar atenção para o fato de serem ainda extremamente perigosas para os idosos e doentes, os quais, de forma semelhante aos trabalhadores obsoletizados pelas IA, também se tornariam dispensáveis socialmente. Fico arrepiado só de pensar nesta hipótese e nos fornos de cremação construídos como em Auschwitz.  

Assim, como se pode perceber, o problema da aceitação imediata — e quase sempre acrítica — das teses de certos autores da moda não é apenas intelectual: é também ético e político. Quando a razão abdica de seu papel questionador, o pensamento se transforma em consumo. E o consumo, nesse caso, não se dá em vitrines, mas em livros, palestras e citações que passam a circular como dogmas modernos.

As teses de Boaventura Santos e Iuval Harari, travestidas de novidade, com muita suavidade, podem naturalizar falsas verdades e anestesiar o impulso de pensar. Ao se instalarem como verdades consensuais, tornam-se matrizes de políticas públicas e decisões institucionais que, em vez de emancipar, reproduzem e sofisticam as velhas desigualdades sociais e econômicas.

Resistir a essa nova forma de servidão intelectual exige o retorno à educação crítica — não a que deposita conteúdos, mas a que forma consciências vigilantes. Exige também o cultivo da dúvida metódica, o exercício coletivo da argumentação e o compromisso com a clareza das ideias e com a transparência dos métodos. Só assim a crítica volta a ser o que deve ser: o oxigênio da vida pública e o antídoto contra a domesticação do pensamento.