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6.10.25

Educação Brasileira: A distância entre metas oficiais e indicadores reais de aprendizagem no Brasil (2005–2024)” - entre o Discurso e a Realidade

 

Zacarias Gama

Ex-Professor Titular da Uerj



Por que, passadas duas décadas de políticas e programas, a educação brasileira ainda não alcançou a qualidade que o país precisa?

Apesar de avanços pontuais e da multiplicação de iniciativas governamentais, a escola pública brasileira permanece marcada por problemas persistentes. Reformas são anunciadas, programas são implementados e indicadores são celebrados, mas o cotidiano escolar revela um quadro que muda pouco. Este ensaio analisa fatores estruturais que limitam a melhoria consistente da educação nacional, com ênfase na centralidade do professor e na urgência de políticas de equidade.

As políticas do Ministério da Educação, em diferentes gestões, acumulam esforços relevantes: expansão de matrículas, avaliação em larga escala, programas de formação e iniciativas de gestão escolar. Contudo, grande parte dessas ações atua de forma fragmentada, respondendo a problemas imediatos sem envolver transformações profundas. Frequentemente, geram medidas de curto prazo — eficazes como comunicação pública — mas insuficientes para reconfigurar o sistema escolar. Uma educação que pretenda produzir resultados duradouros requer continuidade e um projeto nacional articulado, ainda não consolidado pelo país.

No início do século XXI, imaginava-se que a participação do Brasil em avaliações internacionais como o PISA contribuiria para orientar reformulações significativas. No relatório nacional do PISA 2000, já se observava que os estudantes apresentavam fragilidades importantes em leitura, escrita e no uso social da linguagem¹. Como resposta, criaram-se programas de formação e apoio pedagógico alinhados aos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Vinte anos depois, o PISA 2022 registra que os resultados permanecem praticamente estáveis desde 2009². Isso não indica ausência de esforço, mas sim a insuficiência estrutural das políticas implementadas³.

Essa estagnação tem raízes históricas. Desde sua constituição, o sistema escolar brasileiro operou como mecanismo de seleção social e de reprodução de desigualdades⁴. A ampliação do acesso na segunda metade do século XX não foi acompanhada por redistribuição equitativa de recursos e oportunidades. Mesmo a LDB, embora estabeleça princípios relevantes, carece de mecanismos operacionais que garantam equidade⁵. Seu artigo 2º expressa objetivos amplos — pleno desenvolvimento do educando, cidadania e qualificação para o trabalho — mas não oferece meios concretos para enfrentar desigualdades estruturais.

A formação docente acrescenta outro componente crítico. A maioria dos cursos de licenciatura permanece excessivamente teórica, fragmentada e pouco conectada às práticas reais da escola básica. Os estágios muitas vezes assumem caráter burocrático. A entrada dos jovens professores na carreira ocorre, em geral, sem acompanhamento sistemático, enquanto a desvalorização salarial e a sobrecarga de trabalho persistem⁶. Assim, a responsabilidade individual é supervalorizada, enquanto as condições institucionais são subestimadas.

As desigualdades sociais atravessam todas essas dimensões. A escola pública brasileira atende majoritariamente estudantes que enfrentam insegurança alimentar, instabilidade familiar e precariedade material — fatores amplamente reconhecidos por pesquisas como determinantes do desempenho escolar⁷. Reformas educacionais desvinculadas de políticas de proteção social tendem, portanto, a produzir impacto limitado.

Apesar disso, a escola resiste, sustentada pela dedicação cotidiana de milhares de profissionais. No entanto, essa resistência é insuficiente como política pública. A transformação necessária exige continuidade institucional, investimento consistente e articulação intersetorial⁸ — elementos raramente presentes de modo combinado.

Estamos diante de um ponto de inflexão. O país transformou a defesa da educação em consenso retórico, mas ainda não estruturou um compromisso político coerente com sua complexidade. Mais que reformas incrementais, o Brasil necessita redefinir o papel público da escola. Refundar o sistema significa orientar a educação a finalidades civilizatórias, investir na autonomia intelectual dos docentes e assegurar igualdade substantiva de oportunidades⁹.

Enquanto a educação for regida por calendários eleitorais e agendas de curto prazo, avanços serão parciais. A transformação real depende de políticas profundas, integradas e duradouras. Só quando houver alinhamento entre discurso, investimento e compromisso institucional, o Brasil poderá superar a repetição de diagnósticos e começar, efetivamente, a aprender.


Notas de rodapé

  1. O relatório nacional do PISA 2000 já indicava fragilidades estruturais em leitura e escrita, especialmente no uso social da linguagem.

  2. O desempenho brasileiro no PISA permanece estatisticamente estável desde 2009, conforme a OCDE.

  3. Reformas fragmentadas tendem a gerar efeitos limitados em sistemas complexos; transformações estruturais exigem continuidade de políticas.

  4. Estudos de Florestan Fernandes, Bourdieu, Lahire e Patto mostram como sistemas escolares podem reproduzir desigualdades quando não há compensação institucional.

  5. A LDB apresenta princípios amplos, mas poucos instrumentos operacionais que assegurem equidade entre redes e regiões.

  6. Pesquisas do INEP, Unesco e OCDE apontam problemas recorrentes na formação e valorização docente: fragmentação curricular, baixa prática supervisionada, salários inferiores à média profissional.

  7. Há consenso empírico de que fatores socioeconômicos influenciam fuertemente o desempenho escolar; evidências robustas vêm de economistas da educação, do IPEA e da própria OCDE.

  8. A baixa continuidade de políticas públicas no Brasil compromete impactos positivos; programas são descontinuados ou renomeados a cada gestão.

  9. “Refundar” significa reorientar finalidades, fortalecer processos formativos e garantir igualdade substantiva — não destruir estruturas existentes.

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5.10.25

As ficções na educação brasileira — e os autores que as difundem

 


Há uma ingenuidade intelectual aqui no Brasil, entre nós, que me deixa boquiaberto. Somos tão espertos que muitos chamam a NASA para estudar os produtos da nossa criatividade, mas quando se trata de interpretar determinado autor há uma preguiça crônica de ler e criticar que facilmente permite que tal autor ocupe o primeiro lugar de vendas, lote auditórios e fique sem agenda para novas palestras.

Como exemplo de autor incensado entre nós cito o acadêmico português Boaventura Santos que, sem críticas aprofundadas no meio acadêmico e social, aparece no plano teórico como sendo progressista e inovador em seus escritos sobre epistemologia, justiça social e conhecimento marginalizado. No plano prático e político ele não está nem aí para as consequências materiais do que defende, como ocorreu por ocasião da integração de Portugal à UE e, de forma mais sutil, com o modelo de universidade empresarial que propõe. Aqui entre nós, pouca atenção se dá ao Senhor Boaventura Santos quanto a sua ética acadêmica, responsabilidade intelectual e compromisso com as classes populares (que é nenhum).

O intelectual da vez é o jovem acadêmico Yuval Noah Harari (Haifa, 24 de fevereiro de 1976 – 49 anos) e os seus best-sellers SapiensHomo Deus. Neles defende em tese que nos tornamos capazes de dominar o planeta porque somos capazes de cooperar em larga escala e acreditar em ficções coletivas – mitos, religiões, ideologias, dinheiro, leis e nações. A chave para tal seria a nossa imaginação compartilhada o que, aliás, nos distingue das demais espécies. A nossa história segundo diz, é a história das nossas ficções. Até aqui, tudo bem, sem muitos problemas. 

Mas quando ele entra na era da Revolução Científica, Industrial e Tecnológica um problema sério emerge, a coisa fica complicada. A sua Inteligência Artificial (IA), na medida em que vai dominando o modo de produção, vai criando uma categoria de trabalhadores não mais necessária para a produção ou funcionamento da sociedade. Os integrantes desta categoria perdem relevância econômica e funcional , algo semelhante ao que acontece com os “selvagens” de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo que não foram condicionados pela sociedade tecnocrática do Estado Mundial. 

Eu acho sempre perigoso não criar saídas para os “inúteis’ de um modo de produção controlado por IA. Alguns ficcionistas já chamaram a atenção para a tragédia que pode acontecer, em filmes como A Ilha (2005) e Elysium (2013). Nestes filmes os excluídos são eliminados de variadas formas, até com comemorações alegres como no filme A Ilha. Mas não precisa haver a morte de ninguém. Thomas More, por exemplo, no seu livro Utopia, colocou a elite a evoluir espiritualmente por meio da poesia, literatura, música, artes etc. enquanto os escravos tratavam de lhe garantir a sobrevivência material. Dennis Feltham Jones autor de Colossus, filmado sob o título de “Colossus 1980 – o projeto proibido", mais recentemente também encontrou uma saída humanitária: ele levou os seus computadores a encontrar um modo de manter vivos, saudáveis e alegres todos aqueles que foram expelidos do modo de produção. Os computadores conectados, o dos EUA e o da Rússia, trabalhavam para a humanidade ficar de boa, como a rapaziada fala. 

Eu também penso não ser necessário descartar pessoas, sou radicalmente contra qualquer forma de liquidar pessoas; afinal o ócio criativo está aí e pode muito bem ser uma saída desde que seja superada a forma social capitalista, como fala Istvan Mészaros. Em uma sociedade totalmente controlada pela IA, onde a propriedade e a acumulação privada já não existissem mais e o trabalho tivesse deixado de ser meio de sobrevivência e se tornado atividade livre e consciente, não seria fantástico se todos tivéssemos tempo de autorrealização, de criação e de desenvolvimento humano integral?  

Pelo mundo afora, ainda que sem sucesso, diversas cidades têm experimentado garantir renda básica para todos aqueles que estiverem fora do mercado de trabalho. Não têm dado certo. As experiências, contudo, atestam que "a  ideia de trabalhar menos e receber uma renda estável, humana e básica ganha impulso e começa a influenciar o debate de maneira inimaginável há dez anos" (https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/renda-cidada-ocio-criativo-e-o-futuro-do-trabalho/)

As teses de Harari, a despeito da problemática imediata, não deixam de chamar atenção para o fato de serem ainda extremamente perigosas para os idosos e doentes, os quais, de forma semelhante aos trabalhadores obsoletizados pelas IA, também se tornariam dispensáveis socialmente. Fico arrepiado só de pensar nesta hipótese e nos fornos de cremação construídos como em Auschwitz.  

Assim, como se pode perceber, o problema da aceitação imediata — e quase sempre acrítica — das teses de certos autores da moda não é apenas intelectual: é também ético e político. Quando a razão abdica de seu papel questionador, o pensamento se transforma em consumo. E o consumo, nesse caso, não se dá em vitrines, mas em livros, palestras e citações que passam a circular como dogmas modernos.

As teses de Boaventura Santos e Iuval Harari, travestidas de novidade, com muita suavidade, podem naturalizar falsas verdades e anestesiar o impulso de pensar. Ao se instalarem como verdades consensuais, tornam-se matrizes de políticas públicas e decisões institucionais que, em vez de emancipar, reproduzem e sofisticam as velhas desigualdades sociais e econômicas.

Resistir a essa nova forma de servidão intelectual exige o retorno à educação crítica — não a que deposita conteúdos, mas a que forma consciências vigilantes. Exige também o cultivo da dúvida metódica, o exercício coletivo da argumentação e o compromisso com a clareza das ideias e com a transparência dos métodos. Só assim a crítica volta a ser o que deve ser: o oxigênio da vida pública e o antídoto contra a domesticação do pensamento.