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12.11.25

A crise da qualidade na educação superior e o fetiche da mensuração

 


A divulgação do Ranking Universitário Folha (RUF) 2025, que traz USP, Unicamp, UFRGS, UFMG e UFRJ nas primeiras posições, reacende o debate sobre o significado de “qualidade” na educação superior brasileira. A queda da UFRJ nos últimos anos, em particular, não pode ser lida como simples oscilação numérica, mas como expressão concreta do descaso dos poderes públicos diante de uma universidade de pesquisa do porte da UFRJ. A ausência de investimentos consistentes em ensino, pesquisa, extensão e inovação tem comprometido a capacidade institucional de sustentar sua missão pública e científica.


🎯 Rankings ou sintomas?

Rankings como o RUF ou o QS World University Rankings se apresentam como medições objetivas de qualidade, mas o que realmente expressam é o grau de investimento estatal e o nível de precarização das condições de produção do conhecimento. Ao reduzir a complexidade da vida universitária a indicadores numéricos — publicações, citações, patentes, empregabilidade — essas classificações transformam sintomas estruturais em aparências de desempenho, legitimando desigualdades históricas e naturalizando a lógica da competição em um espaço que deveria ser de cooperação científica.

A fetichização da medida — essa crença de que o número traduz a realidade — revela o predomínio de uma racionalidade tecnocrática e neoliberal, que converte o conhecimento em capital simbólico mensurável. Em vez de fortalecer o papel emancipador da universidade, a quantificação serve como instrumento de regulação e controle, impondo uma cultura de auditoria permanente.


⚙️ A ontologia da medida

A obsessão contemporânea pela quantificação não é apenas técnica — é ontológica e ideológica. Ela ecoa uma tradição que remonta à filosofia hegeliana, para a qual a passagem da quantidade à qualidade representa um salto dialético. Marx e Engels reelaboraram essa ideia no terreno materialista, mostrando que a quantidade, quando elevada a critério absoluto, perde a conexão com a realidade concreta.

Lukács, no século XX, identifica nessa primazia do número uma das formas da reificação moderna: o processo pelo qual a vida social e o trabalho intelectual se submetem à lógica abstrata da mercadoria.

Aplicada à educação, essa reificação manifesta-se na crença de que o valor de uma universidade pode ser expresso em índices e posições de ranking. Contudo, a qualidade do ensino superior não é uma propriedade mensurável, mas uma relação social e histórica — dependente das condições materiais de trabalho, da autonomia institucional e do compromisso público com a produção de conhecimento crítico.


📉 O caso da UFRJ

A queda da UFRJ não resulta de um suposto déficit de gestão ou eficiência, mas do desmonte do Estado e da retração dos investimentos públicos em ciência e tecnologia. A ausência de uma política nacional consistente para o ensino superior converte o ranking em espelho distorcido de um sistema em crise. Assim, a mensuração cumpre uma função ideológica: transforma a precarização em dado neutro, a desigualdade em mérito e o abandono em evidência estatística.

Recuperar o sentido qualitativo e emancipador da educação exige romper com o fetiche da mensuração. A qualidade não é um número: é uma relação viva entre sujeitos que produzem, transmitem e transformam o conhecimento.


🌱 Caminhos para uma política pública emancipadora

A superação dessa crise requer um projeto nacional de educação superior que devolva à universidade pública seu papel central na construção de uma sociedade democrática e soberana. Isso implica:

  • Financiamento público estável e crescente;

  • Valorização das carreiras docentes e técnicas;

  • Fortalecimento da pesquisa básica;

  • Integração efetiva entre ensino e extensão;

  • Respeito pleno à autonomia universitária.

Mais do que disputar posições em rankings internacionais, o desafio é construir um sistema público de ensino superior capaz de formar sujeitos críticos, produzir conhecimento socialmente relevante e sustentar a independência científica e cultural do país.

Só assim será possível falar em qualidade — não como número, mas como forma de vida e de pensamento que afirma o humano contra a lógica abstrata do capital.



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7.11.25

Paulo Freire sem rótulos: um educador brasileiro da libertação

 


Paulo Freire é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da educação do século XX. Sua obra atravessou fronteiras, inspirou movimentos populares e transformou práticas pedagógicas em todo o mundo. Mas com a notoriedade vieram também os rótulos — muitos deles imprecisos, outros francamente mal-intencionados. Este texto tem como objetivo restituir a integridade teórica de Freire, situando-o corretamente no campo do pensamento brasileiro, sem forçá-lo a encaixes ideológicos que obscurecem sua originalidade.

Paulo Freire não foi comunista, nem marxista, nem gramsciano. Sua pedagogia não nasce da ortodoxia teórica, mas da experiência concreta do povo brasileiro, da escuta atenta das falas populares, da convivência com a pobreza e a exclusão. Seu método de alfabetização não visava apenas ensinar a ler palavras, mas a ler o mundo — e, a partir daí, transformá-lo.

Freire emerge de um caldo cultural e político específico: a Igreja progressista, influenciada pela teologia da libertação, que via na educação um caminho de emancipação espiritual e social; e o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), onde se discutia o desenvolvimento nacional com base em soberania, cultura e reforma de base. Essas influências moldaram um pensamento humanista, ético e esperançoso, mais próximo de Hegel e Karl Mannheim do que de Marx ou Gramsci.

Reduzir Freire a um “marxista cultural” ou a um “doutrinador ideológico” é não apenas um erro teórico — é uma injustiça histórica. Da mesma forma, tentar encaixá-lo à força no campo gramsciano é ignorar as diferenças fundamentais entre sua pedagogia e a teoria da hegemonia. Freire não propõe a tomada do poder — propõe a formação do sujeito. Não organiza partidos — organiza consciências. Não impõe verdades — cria espaços de diálogo.

Paulo Freire é um pensador da esperança ativa, da escuta radical, da palavra como gesto de libertação. Seu legado pertence ao Brasil — e ao mundo — não por sua filiação ideológica, mas por sua fidelidade ao humano.


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