Em entrevista à revista Veja (Edição 2088 de 26 de novembro de 2008), a antropóloga Eunice Durham desanca as Faculdades de Pedagogia, responsabilizando-as pela má formação de professores, os quais, em sua opinião, são incapazes “de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria”. Faz ainda uma tabula rasa destas faculdades e, sem procrastinações, considera os professores de sala de aulas como “limitados, incapazes de escrever sem cometer erros simples de ortografia e de expor conceitos científicos de média complexidade”.
Não nos surpreende a sua vociferação, porquanto integra metaforicamente o naipe de uma orquestra afinada e financiada pela iniciativa privada para escrachar principalmente as instituições públicas empenhadas na formação de professores para nossas escolas de ensino básico. Aliás, há anos, a antropóloga da USP vem procedendo desta maneira, seja como presidente da Capes, secretária da educação superior do MEC, membro do Conselho Nacional de Educação, seja como professora emérita e coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre o Ensino Superior (NUPES-USP). E, obviamente, ela não está só; suas parceiras de naipe, entre outros, são a Prof.ª Maria Helena Guimarães de Castro, atual secretária de educação de São Paulo e ex-presidente do INEP, e a administradora pública Claudia Costin, ex-ministra de administração do governo FHC e atualmente indicada para a secretaria de educação da cidade do Rio de Janeiro.
É como se o naipe delas tivesse a exclusiva finalidade de repetir os estrepitosos sons de uma sinfonia wagneriana, sem se importar com o conjunto sinfônico. Toda atenção está focada nas notas das partituras; deixam assim de atentar para o que se passa no interior das escolas que elas próprias dirigiram a partir de suas pastas.
Nossa antropóloga desafina de imediato, ao considerar todas as faculdades de pedagogia como responsáveis pela má qualificação dos professores no que diz respeito às suas atuações nas salas de aulas. Nenhuma se salva! Equivocadamente quer que todas dêem conta da formação de professores com eficiente prática de ensino. Mas, ao mesmo tempo, há questões cruciais insolvíveis para as próprias faculdades: como formar professores com tamanha eficiência para escolas rurais e urbanas, públicas e particulares, leigas e religiosas, católicas e judaicas? Poderá ela formar a partir das tecnologias educacionais de ponta, sabendo-se da penúria pedagógica de muitas escolas? Para que tipo de escolas deverá formar: para aquelas bem aparelhadas, para aquelas que nem luzes têm, ou para aquelas que funcionam à noite nos imóveis alugados e precariamente adaptados? Assim, face a tais questões, mais uma questão emerge: não estará a antropóloga pretendendo o primado do pragmatismo tecnicista e reducionista ao desconsiderar a diversidade do campo educacional?
As faculdades de pedagogia e as demais faculdades de formação de professores de fato vivem os dilemas que a diversidade social se lhes impõem. Torna-se bastante razoável que optem pelo ensino de concepções pedagógicas e de práticas educativas no sentido amplo dos termos; reflexões racionais e normativas que sustentem representações e orientações da atividade educativa. Elas ainda fornecem, por um lado, um arcabouço ideológico à profissão condizente com determinado projeto societário e, por outro lado, algumas formas de saber-fazer-ensinar e algumas técnicas. O sistemático sucateamento a que vem sendo submetidas pouco mais que isto permite.
Face a esta opção, surge mais outra questão importante: por que nossas autoridades educacionais, entre as quais a profª. Eunice Durham, deixam de transferir para os contratantes de mão obra a responsabilidade de adequação dos novos professores às suas demandas específicas? Os médicos fazem anos de residência em suas especialidades; as próprias empresas submetem os novos funcionários a longos períodos de experiências. Chega, portanto, a ser paradoxal querer o professor devidamente capacitado para trabalhar em qualquer escola, como se todas estivessem subordinadas ao mesmo habitus e às mesmas práticas educativas. Só para ilustrar: um professor que dê aulas de história em uma instituição católica abordaria seus conteúdos de igual forma numa instituição judaica? Outro que tenha grande sucesso junto a alunos de escolas urbanas, o terá em áreas rurais? As respostas parecem óbvias para quem vive a materialidade do cotidiano escolar; desconhecem-nas, porém, os “educadores de gabinete” que nunca entraram numa sala de aula do ensino básico como docentes em efetivo exercício.
Em nossas escolas públicas qualquer recém-concursado, entretanto, é considerado apto a assumir turmas imediatamente. As secretarias de educação, concretamente, não têm cuidados nem estratégias para inserir o jovem professor numa sala de aula. Em muitas escolas ele sequer pode contar com uma coordenação pedagógica para orientá-lo e colocar à sua disposição os relatórios das turmas, suas configurações e, menos ainda, um plano de aulas. Por que ao menos não podemos nos regozijar com os resultados dos projetos de educação continuada proporcionados pelas administrações educacionais? Hoje, feliz é o docente que consegue se licenciar para estudos aprofundados ou, simplesmente, participar de um congresso sem perda de vencimentos.
O fato é que, por um lado e nas condições atuais, as faculdades de formação de professores não têm como garantir aos seus egressos a atualização continua de saberes imprescindíveis às práticas educacionais destinadas aos alunos da escola básica e os seus egressos continuam a ser contigenciados a definir suas práticas em relação aos saberes que possuem e transmitem; por outro lado, e nem precisamos constatar tal fato em muitas escolas, as condições de trabalho existentes impedem-lhes acompanhar o extraordinário desenvolvimento qualitativo e quantitativo dos saberes sociais com meios próprios face à indigência de recursos educativos disponibilizados pelas administrações educacionais municipais, estaduais e federais. Nas escolas particulares, antes que se possa pensar o contrário, a situação não é muito diferente; salvo as costumeiras exceções constituídas pelas instituições de ponta.
Não poderíamos também deixar de tangenciar, pelo menos, a desqualificação que as administrações públicas educacionais impõem aos professores. Esta desqualificação abrange desde os baixos salários, perda de autonomia e controle sobre as suas práticas, objetivos e organização de seu plano de aulas. Eles se acham submetidos a regulamentações que determinam não só o que ensinar, mas o como ensinar, assim como às determinações provenientes dos livros-didáticos. Estes e muitos “kits pedagógicos”, às vezes cheios novas tecnologias e programas educativos muitas vezes comprados à sua revelia, também são criadores de novas especificações de conhecimentos a transmitir, seqüenciamentos, formas de transmissão e de organização.
Como se vê a fábrica de maus de professores não está necessariamente situada nas faculdades e nos institutos de formação. Os gerentes educacionais responsáveis pelas políticas educacionais é que parecem ter deixado os seus postos ou assumido a mais profunda negligência quanto às demandas de educação pública de qualidade. A antropóloga Eunice Durham talvez devesse localizá-los, bradar aos céus para sanar-lhes a incúria ou simplesmente direcionar suas pesquisas para os núcleos centrais da educação pública brasileira. Vale também lembrar-lhe que nas fábricas e empresas privadas quando os resultados não são os esperados, os gerentes é que são responsabilizados pela falta de liderança, de empenho e dedicação dos seus subordinados e, também por não lhes propiciar todas as condições ideais para o aumento da mais valia patronal.
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