O GLOBO - O atual modelo da universidade brasileira
é oriundo ainda da reforma universitária feito na Ditadura Militar. A própria
universidade tem dificuldade em se discutir? Quais outros fatores precisam ser
levados em conta para compreender a falta de inovação no que diz respeito a
própria organização das instituições, currículos etc?
Zacarias Gama. Não diria que a Universidade tem dificuldade
em se discutir. Sua dinamicidade impõe constantes discussões acerca de sua
função social. A grande discussão atual é sobre o modelo de Universidade e para
qual sociabilidade. Há uma grande tensão nesta discussão em função das pressões
provenientes da sociedade pautada pelo mercado. Muitos aceitam esta pauta
defendendo a universidade pragmática, inovadora, a serviço das demandas
colocadas pelo mercado. Estes acreditam que a Universidade inovadora seja capaz
de acelerar o crescimento nacional e aumentar os indicadores de inovação,
ciência e tecnologia. Particularmente não acredito nisto. Penso que é o
desenvolvimento que cria as condições para que ela seja inovadora, e para tanto
é preciso disponibilizar-lhe recursos, sem, entretanto, prejudicar as suas
atividades meio e fins voltadas para o social. Mais objetivamente: se a
universidade brasileira é acusada de não ser inovadora, penso ser necessário
verificar quanto de recursos ela dispõe para investir em inovação, ciência e
tecnologia.
O GLOBO - A reforma universitária realizada na
década de 1960 rompeu com o modelo de cátedras e introduziu a organização por
departamentos. Houve algum avanço nesta mudança ou só há pontos negativos?
Quais são os maiores problemas do modelo implantado na época e seguido até hoje
com poucas modificações?
ZG. A reforma em questão subordinou definitivamente
a universidade brasileira ao modelo de universidades americanas. As cátedras
eram acusadas de personalistas etc. Positivamente os departamentos dão mais
dinamicidade à vida universitária. Eles democratizam-na. O problema, segundo
minha perspectiva, não está na organização estrutural da universidade, muito
embora ela sempre possa ser objeto de novas melhorias, de aperfeiçoamentos. Para
mim o problema deve ser deslocado para a compreensão que os nossos governantes
têm sobre a Universidade e o papel estratégico que ela pode ter no
desenvolvimento da sociedade. As greves deste ano, nas federais e estaduais,
demonstram que essa compreensão é estreita. Acredito que para muitos dos nossos
governantes a Universidade é sinônimo de um grande colégio, aliás, bastante
problemático e reivindicador.
O GLOBO - Na Europa, principalmente com o Tratado
de Bologna, encurtou-se a duração dos cursos de graduação, entre outras
medidas. As medidas foram tomadas num contexto em que o acesso ao ensino
superior é muito mais fácil do que no Brasil, onde permanece excludente. Este
modelo poderia ser aproveitado? Quais são os problemas trazidos por ele também?
ZG. O Processo de Bolonha que resulta deste Tratado
realmente encurtou a duração dos cursos de graduação e pós-graduação. Ele
estabeleceu a fórmula 3-2-3, isto é, 03 anos para a graduação, 02 para o
mestrado e 03 para o doutoramento; isto sem dúvida representa o aligeiramento
da formação universitária, São menos dois anos em relação ao Brasil. Todos os
27 países da União Europeia estão se adaptando ao Processo. Mas as contestações
já começaram a aparecer. São muitas as contestações que este modelo enfrenta
perante o Movimento Estudantil, particularmente em um contexto de recessão
econômica. Já houve grandes movimentos de rua na Inglaterra, Itália, Portugal,
Espanha e Alemanha. Todos fazem grandes restrições ao Processo de Bolonha. De
fato, este Processo, por um lado cria este aligeiramento que barateia a
manutenção das universidades para o Estado, e por outro despeja no mercado um
enxame de diplomados que não encontra trabalho e emprego na União Europeia
forçando a migração. A UE hoje em dia é exportadora de mão de obra altamente
qualificada. Contam-se às centenas os emigrantes para outros países onde há
oportunidade de trabalho e emprego. Em meu ponto de vista, não precisamos
importar modelos, especialmente o de Bolonha para a reforma das nossas
universidades. O que precisamos, insisto, é situar estrategicamente a
universidade no centro de nosso projeto de desenvolvimento, com independência e
sustentabilidade.
O GLOBO - No Brasil, as principais experiências de
inovações curriculares e de organização da universidade se deram dentro do
âmbito do projeto "Universidade Nova". Este é caracterizado, tanto na
UFBA quanto na UFABC, por bacharelados interdisciplinares de cunho generalista.
A especialização profissional seria realizada em uma etapa posterior, assim
como a formação de licenciatura ou de pesquisador (mestrado e doutorado). Como
senhor avalia essas iniciativas?
ZG. A ideia de ciclos básicos interdisciplinares é
interessante, incluindo a interdisciplinarização
dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Estou ligado a um Programa
de Pós-graduação Interdisciplinar e a avaliação que fazemos é que há grandes
vantagens para a produção de novos conhecimentos em contextos mais amplos.
Contudo, é preciso que o desenho de cursos interdisciplinares não seja pautado
pela redução de custos. Os processos de educação, de quaisquer níveis e
modalidades, não podem ser compreendidos como gastos, mas sim como
investimentos não apenas na formação profissional, como também na formação do
cidadão.
O GLOBO - A universidade brasileira vive um momento
de abertura para diferentes classes sociais, com a aprovação das ações
afirmativas em todas as instituições federais. A universidade precisa se
adaptar a essa nova realidade?
ZG. As ações afirmativas são praticadas nas
universidades públicas, com as cotas sociais representando a correção parcial
de injustiças sociais históricas. Digo parcial, porque só elas não bastam. É
preciso que o país corrija a sua distribuição de riquezas, restringindo os
processos de concentração de riquezas nas mãos de poucos. Considero uma pena
que tais ações não sejam universalizadas para todo o sistema de ensino superior
– público e privado, laico e religioso. Além disso, cabe perguntar: a adaptação
da universidade aos cotistas significa o quê?
Organizar-se como universidade para pobres, negros etc.? Dicotomizar o
mundo universitário, com instituições diferenciadas para pobres e ricos? Isto
não seria preconceituoso? Penso que se a universidade tiver centralidade
estratégica para responder às necessidades criadas pela sociedade, com os
investimentos necessários à carreira docente e ao ensino, pesquisa e extensão
esta questão perde o peso que vem adquirindo em alguns setores elitistas da
sociedade que ainda guardam ranços da sociedade senhorial. Nenhuma
universidade, pública ou particular, precisa de qualquer adaptação para dar
respostas às ações afirmativas. A riqueza da universidade está exatamente na
sua composição plural e na pluralidade de conhecimentos que é capaz de produzir
para o nosso desenvolvimento atual e futuro.
O que é preciso é que a universidade pública seja compreendida em todas
as suas dimensões e como importante instituição, gratuita e qualidade para a
formação do cidadão. A universidade laica, autônoma, gratuita e de qualidade,
mantida pelo Estado, está historicamente comprometida com a autonomia do
cidadão, titular de direitos e fonte do poder republicano.
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