23.12.12
Educar para qual sociedade? Humanística, republicana e democrática ou para uma sociedade de homens “alfa” e “ípsilon”?
Na história da República brasileira, a educação como direito de todos, inspirada em princípios de liberdade e em ideais de solidariedade humana, é bem recente em comparação, por exemplo, com países da Europa. Aqui entre nós foi inscrita pela primeira vez na Constituição do Brasil de 1946. Apenas a partir daí é que o ensino primário tornou-se obrigatório e gratuito, oferecido desta forma pelo Estado e pelas empresas industriais, comerciais e agrícolas com mais de cem trabalhadores.
A Lei de Diretrizes e Bases – Lei 4024 de 1961 – que complementou a Constituição de 1946 foi o instrumento legal encarregado de explicitar as finalidades da educação nacional para o período de democratização que se iniciava após a ditadura do Estado Novo varguista. O projeto de uma nova sociabilidade pressupunha um cidadão que fosse compreendedor dos seus direitos e deveres, respeitador da dignidade e das liberdades fundamentais do homem, e fortalecedor da unidade nacional e da solidariedade nacional. Os processos educativos escolares deveriam, por conseguinte, contribuir para desenvolver integralmente a sua personalidade e as suas formas de participar na obra do bem comum, despido de preconceitos sociais, filosóficos, políticos e religiosos.
A Constituição Federal de 1946 e a LDB de 1961, pilares fundamentais para a democratização do Brasil, traduziam o credo republicano segundo o qual a educação deve estar comprometida com o “projeto de autonomia do cidadão como titular de direitos e fonte do poder republicano”, segundo nos informa Luiz Gonzaga Belluzzo em excelente artigo publicado na revista Carta Capital, edição de setembro de 2012.
A ditadura que se instaurou a partir de 1964 não apenas se encarregou de rasgar ambos os documentos e interromper o processo de redemocratização do país, mas também tratou imediatamente de abastardar os “valores originais do humanismo iluminista”, básicos para a República e Democracia. Seu projeto de educação se propôs a desenvolver as potencialidades do educando para qualificá-lo para o trabalho e para uma cidadania restringida pela Lei de Segurança Nacional e pelas exigências do processo sociometabólico do capital.
A Constituição Cidadã de 1988, em seu esforço de varrer o autoritarismo hegemônico do período de 1964-1984, retomou o ideal de educação humanista e republicano. Ela se inspirou nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, e se baseou em princípios de igualdade de condições para acesso e permanência na escola, pluralismo de ideias, liberdade e tolerância, gratuidade de ensino de qualidade, gestão democrática do ensino público e valorização do profissional da educação escolar. Deixou, entretanto, de defender diversos flancos nos quais se aninham e proliferam hoje em dia os especialistas, técnicos e arrivistas educacionais produtores de “um exército de subjetividades mutiladas”, segundo a expressão de Belluzzo. Estes são os mesmos que derramam qualificações e certificados esvaziados de capacidades de compreensão do mundo, as quais, ao mesmo tempo, “pauperizam as mentalidades e massacram a capacidade crítica”. O ideal de educação está sendo reduzido à qualificação para o trabalho, consumo e vivência numa sociedade produtiva e competitiva, enquanto os cidadãos são apartados da formulação das políticas públicas e transformados em simples trabalhadores de execução. Os cidadãos cada vez mais podem menos na condição de “indivíduos médios”.
A educação, abastardada como valor humanístico e republicano, vem sendo atrelada à marcha do progresso e tornando-se funcionalista; seu ideal passa a ser o de preparação de todos para integrar a sociedade capitalista atual e diminuir a exclusão de amplos setores do mercado de trabalho e de consumo. A escola básica, por sua vez, vem sendo reformada para harmonizar-se com o compasso do novo padrão de desenvolvimento científico, tecnológico e de acumulação de capital.
A classe média tradicional e os segmentos emergentes das classes populares, por sua vez, tratam de se deixarem encantar com as promessas de uma educação de qualidade subsumida por esta racionalidade mercadológica. Desprezam a educação pública, laica, gratuita e de qualidade social para matricular os seus filhos em dispendiosos educandários privados, a grande maioria deles de qualidade duvidosa.
O IDEB 2012 – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – demonstra que o grande grupo massivo de escolas frequentado pela classe média e segmentos emergentes, sequer é capaz de superar em larga medida as médias das escolas públicas estaduais, mas mesmo assim esta classe e segmentos emergentes insistem na afirmação e conservação das aparências parecendo não se incomodar com os cortes no orçamento familiar e demais sacrifícios a que são obrigadas. A alienação de ambas impede-lhes o uso da razão crítica em defesa da educação pública do cidadão omnilateral como direito social e dever do Estado, e da retomada do processo de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e republicana.
A mais recente promessa da razão neoliberal para a educação nacional é a de que esteja entre as melhores do mundo no Bicentenário da Independência, em 2022. Resta-nos, porém, questionar: a ênfase atual em Linguagem, Matemática e Ciências será suficiente para construir um legado educacional que supere a sociedade dos homens “alfa” e “ypsilon” que nos foi descrita por Huxley na obra Admirável Mundo Novo e para a qual nos encaminhamos com o abastardamento do ideal de educação humanista, republicano e democrático?
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