O debate em torno do Projeto de Lei Nº 867, de 2015, de autoria do parlamentar Izalci Lucas (PSDB-DF), que altera substantivamente os artigos 2º e 3º da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996), é acalorado, intenso e profundo, mas ainda restrito aos meios educacionais. Se transformado em lei, as escolas brasileiras de educação básica se tornam escolas sem partido, isto é, neutras política, ideológica e religiosamente, sendo vedadas a veiculação de conteúdos que conflitem com as convicções familiares dos estudantes. Há quem já o adjetive, com razão, de projeto da mordaça escolar.
À primeira vista, os seus defensores pretendem restringir as escolas à exclusiva tarefa de instruir, deixando às famílias a árdua tarefa de educar conforme os valores que prezam e às suas concepções de mundo. Querem, com muita limitação de visão educacional, que o ensino de determinadas competências e habilidades ocorra com absoluta neutralidade, como se a ciência fosse neutra e osseus problemas decorressem ética e exclusivamente do uso que é feito de seus produtos. A ideia que os norteiam, além da limitação da liberdade de ensino, portanto, é a de quebrar a unidade dialética educação-instrução, em cujo interior as ações reciprocas são de transformação e enriquecimento das práticas e horizontes de uma e de outra; somente de um ponto de vista metafísico tal isolamento seria possível.
O Supremo Tribunal Federal, agora em outubro, por ocasião do assédio autoritário e repressor à liberdade de expressão e pensamento das universidades brasileiras às vésperas da realização do segundo turno das eleições presidenciais, não apenas considerou inconstitucional as ações de vários tribunais regionais eleitorais, como também sinalizou sua dificuldade de ser favorável ao PL Nº 867, de 2015, pelas mesmas razões. O Ministro Luis Roberto Barroso chegou a declarar que o Projeto Escola Sem Partido é vago, genérico e capaz de servir a imposições ideológicas e a perseguições aos que dela divergem. A posição do STF veda a aplicação da Escola Sem Partido em Alagoas e, como efeito colateral, deverá suspender a tramitação de todos os projetos semelhantes nos legislativos dos estados e municípios.
À primeira vista a pendenga é esta. Mas, mais profundamente há questões muito mais preocupantes que advém da teoria neoliberal, a começar daquela desenvolvida pelo pai do neoliberalismo: Friedrich August von Hayek (1899-1922) na obra O Caminho da Servidão (Instituto Liberal, 1990). Sem dúvida, a mais importante e essencial ao debate em curso é a questão da liberdade e, neste sentido, é imperioso questionar o apreço de sua teoria à liberdade que herdamos do Iluminismo e que se acha inscrita na Declaração Universal dos Direitos do Homem, nomeadamente em seu Artigo 19º:
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, este direito implica a liberdade de manter as suas próprias opiniões sem interferência e de procurar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio de expressão independentemente das fronteiras (ONU, 2009)[2]
Para o neoliberalismo a defesa intransigente da liberdade individual tem elevado preço, e, por essa razão talvez fosse adequado trocá-la pelo termo “tolerância”. Entre optar pela liberdade e um bem maior, é preferível a opção pelo último. O que pode facilitar tal tomada de decisão é a existência de uma escola “neutra” e, por consequência, alienante, que leve os indivíduos a abrir mão de suas liberdades.
A liberdade, entretanto, sempre vista com exclusividade de uma perspectiva econômica,precisa existir como condição de progresso. É também fundamental garantir que exerça a sua função de impulsionadora do progresso intelectual, sem que isto denote “que todos sejam capazes de pensar ou escrever”; antes significa somente que “toda causa ou ideia pode ser contestada” (Hayek, 1990, p. 177)[3], mas por grupos restritos, nem todos estarão aptos as fazê-las. Na sociedade regulada pelo livre mercado,o grau de liberdade individual, então,será variável conforme as circunstâncias materiais e hierarquizado. O descarte da liberdade pela maioria poderá sempre que necessário ser sacrificado em nome de bens maiores com os devidos aceites das consequências dessa decisão.
Da mesma forma a democracia também merece pouco apreço dos neoliberais. Como realizar um plano econômico coerente em uma assembleia democrática? Seria possível diante de um todo econômico, grande e complexo, ajustar todas as suas partes umas às outras e ainda assim acomodar as ideias conflitantes? Para Hayek isto seria inimaginável numa sociedade plenamente democratizada, tanto quanto conduzir uma campanha militar por processos democráticos (Hayek, 1990, p. 88).
Como se pode deduzir, a tentativa de transformar em lei o projeto Escola Sem Partido não constitui uma ação isolada de parlamentares leigos e religiosos; é uma peça inicial e importante no canteiro de edificação da sociedade neoliberal em sua plenitude, é como se fosse uma escola preparatória. Neutralizar as ideias e valores em crianças e jovens que possam futuramente se conflitar com as leis do mercado livre é essencial. Afinal, a mercadoria em si mesma não tem pátria, religião ou quaisquer outros valores que não sejam os de troca e de uso, pouco importa se é produzida num país católico, islâmico, protestante ou budista.
À luz da laicidade do neoliberalismo, os elementos moralistas e religiosos que hoje são fortes e se encontram entranhados em tal projeto, tais como a negação da questão de gênero e a recusa das teorias evolucionistas, aglutinam forças e interesses diferentes, mas têm, entretanto, data de vencimento marcada. O livre mercado não poderá ele próprio excluir consumidores potenciais. Dificilmente, perder-se-á um nicho de consumidores transgêneros e evolucionistas. Da mesma forma como é antieconômica a produção de automóveis com volantes do lado esquerdo e do lado direito e a variedade de padrões de medidas em diversas partes do Planeta, também haverá de ser a dualidade de mercado. A racionalidade mercadológica é inclemente e ciosa de realizar a maior acumulação.
A sociedade na qual vivem os personagens da obra de Aldous Huxley – Admirável Mundo Novo – parece estar a se desenhar no horizonte imaginado por Hayek e tantos outros seguidores. Nela tudo, também, seria organizado conforme as determinações do mercado, todos estariam presos às suas castas e condicionados a abrir mão das suas vontades individuais, aceitariam a servidão e seriam felizes com boas doses de felicidade química, as ortodoxias e ideologias seria ministradas por hipnopedia, sem necessidade de professores ou textos de Shakespeare que poderiam quebrar e subverter a ordem indispensável à prosperidade econômica.
Para algumas pessoas estas reflexões talvez possam parecer exercícios de futurologia, mas se voltamos os nossos olhos para os resultados eleitorais de 2018 a realidade toma um vulto que nos assombra. Como desconsiderar que a sociedade brasileira dá passos largos para sacrificar a democracia e as nossas liberdades individuais e coletivas em nome de “bens maiores”, ao eleger um candidato sem qualquer apreço pela democracia, liberdade e direitos humanos?
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