9.6.19

A violência escolar tem coisas importantes a nos dizer


Zacarias Gama[1]

Em menos de uma quinzena, a sociedade brasileira assistiu boquiaberta a dois graves atos de indisciplina em salas de aula. Em uma escola pública da cidade de Carapicuíba - SP, estudantes de uma turma hostilizaram uma professora arremessando-lhe livros e vandalizaram a sala de aula quebrando carteiras[2]. Na escola particular da próspera cidade de Simões Filho, no interior da Bahia, alguns estudantes humilharam um professor veterano e o chamaram de fedorento, como se pode ver na gravação que os próprios fizeram[3]
Nas redes sociais, nem é preciso dizer, ambos os casos adquirem grande proporção e suscitam as mais diversas reações e opiniões. É grande a facilidade de adjetivar os estudantes como grosseiros, animais selvagens, vermes e filhos de lares desestruturados, ao que se segue o desejo de os ver mofar na Fundação Casa. A generalização acaba por incluir a todos no mesmo saco, como se não houvesse algum estudante de boa índole, estudioso e incapaz de atos civilizados. De certa forma, querem caracterizar o alunado da escola pública deste modo, nenhum presta.  
As reações aos estudantes da escola particular soam diferentes. A generalização cede lugar a outra forma de percepção: uns “vermes”, bando de idiotas e vagabundos, uma reação praticada por alguns. Eles são tratados como tendo outra natureza, os casos de indisciplina são isolados e merecem tratamento especial do tipo “se fosse filho meu iria levar ao colégio para pedir desculpas pra todos e iria bater nele na frente de todos”, “mano se eu pego uns vermes desses que gostam de humilhar as pessoas , eu quebro no pau”
A escola pública, aos olhos de muitos, não tem salvação: a indisciplina com a qual convive decorre do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – “uma fábrica de marginais”, da pedagogia de Paulo Freire, das práticas didático-político-pedagógicas de “professores comunistas merecedores da violência desses demônios”; os professores são verdadeiros “agentes sóciocomunistas insidiosos que agem nas sombras da ignorância que eles mesmos promovem”. Sem a criminalização da violência escolar, supervisão militar diária das escolas, militarização da educação, isto é, dos processos de ensino e aprendizagem e de convívio social, a escola pública não tem salvação.
Em todas as falas de condenação aos atos de violência a presença constante é o preconceito contra a coisa pública e seus agentes. Na escola particular a violência aparece como evento isolado, quase como exceção; na escola pública é o que a caracteriza, juntamente com a baixa qualidade de ensino e os tais professores comunistas e freirianos. Nenhuma se detém minimamente em alguma reflexão mais aprofundada. A condenação sumária está à flor da pele e muitos corações se deixaram inundar de ódio. São incapazes de observar a as diversas formas de violência escolar como aspectos das contradições que são produzidas no trato da educação pública pelas autoridades educacionais e pela sociedade. A redução dos seus financiamentos, sucateamento generalizado, desvalorização social e salarial dos profissionais de educação, cortes de pessoal de apoio, ao lado da obrigatoriedade escolar, diminuições de exigências de aprendizado, currículos exclusivamente voltados para a formação de mão de obra, prédios escolares malconservados e mal aparelhados, cria espaços de tensões constantes, muitas vezes explosivas. Quem já parou para pensar no que significa colocar trinta estudantes ou mais diante de professores que a sociedade se encarrega de lhes diminuir a autoridade pedagógica indispensável ou simplesmente considerá-los como profissionais fracassados, incapazes de sustentar as próprias famílias com o rendimento dos seus salários? Quem se sentiria confortável e disposto disciplinadamente a receber os conhecimentos de alguém que somente tem como objetivo o proselitismo repudiado por grande fração social, de alguém que, afinal de contas, vem sendo desconsiderado como responsável pela transmissão de saberes construídos historicamente?
Sem qualquer pretensão de passar a mão na cabeça de qualquer estudante indisciplinado ou postergar a necessidade imediata de diminuir os indicadores de violência nas escolas brasileiras, sou de opinião ser urgente à sociedade discutir o tipo de escolas públicas e particulares que temos e que sonha ter, a atual percepção social dos professores, a baixa remuneração de todos os profissionais de educação, a adequação das instalações escolares e o aparelhamento didático-pedagógico delas para a realização de processos de ensino de tempo integral.
Urge ainda que a sociedade se posicione firmemente diante da famosa Emenda Constitucional do Teto de Gastos que congela durante vinte anos os investimentos em educação de todos os níveis e modalidades, das políticas do atual governo que desprezam as metas estabelecidas para serem cumpridas até 2024 que definitivamente garantem a universalização da educação pública, gratuita, laica e de qualidade referenciada socialmente e da hostilidade governamental contra professores e universidades públicas.
Em outras palavras, a sociedade precisa subordinar a educação nacional aos seus interesses de educar os seus filhos para além da condição de simples trabalhadores mal renumerados, como se estivessem predestinados divinamente a serem explorados pelo capital. Para além de futuros trabalhadores os filhos de todos nós precisam ser educados para fruir as delícias existentes no Planeta Terra.
Afinal, parafraseando o evangelista Marcos, o trabalho é para o homem, mas o homem não é para o trabalho. Uma destinação maior está à sua espera.


[1] Professor Associado da Uerj. Ex-professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana. Coordenador Geral do Programa Desenvolvimento e Educação – Teotonio dos Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ).

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