15.1.22

Dificuldades de avaliar a aprendizagem e crise da educação brasileira. O que fazer?

 


 

Zacarias Gama[1]

Os jovens professores brasileiros nos seus primeiros anos de docência tendem a ser assombrados pela avaliação dos seus alunos, em especial nos seus primeiros anos de docência. Como avaliar corretamente? Como ser imparcial e justo? O que fazer? Qual teoria de avaliação colocar em prática?

Há jovens professores que buscam a ajuda de algum colega mais experiente ou que repetem as práticas de algum ex-professor que lhes servem de inspiração. Essas duas alternativas podem ajudar imediatamente, mas, regra geral, remetem a determinados padrões e tendências de avaliação, no mínimo discutíveis. Em comunicação na 26ª Reunião Anual da Anped (Gama, 2003), chamei a atenção para a existência de sólidos “padrões e tendências[2] recorrentes nos processos avaliativos escolares, que convivem uns com os outros sem se modificarem” e por causa da inexistência de um discurso avaliativo unificado. Em seu lugar predominam diversas e diferentes maneiras de avaliar a aprendizagem dos estudantes as quais, regra geral, são objetivistas e subjetivistas filiadas às tendências de avaliar como operação de medida, construtivistas, fenomenológicas, dialético-transformadoras ou crítico-libertadoras, e socioculturais.

A partir dos anos 1980, face às críticas às práticas de avaliação herdadas da escola tradicional, baseadas em rigorosos testes e provas que reprovavam impiedosamente e contribuíam para o abandono escolar, a tendência de avaliação para o sucesso tornou-se hegemônica, muito conhecida na época como avaliação para a tomada de decisão. É grande a sua contribuição na contestação e desconstrução da educação herdada dos anos da primeira metade do século XX. Seus principais teóricos e divulgadores foram Stufflebeam & Shinkfield,1985; De Ketele & Roegiers, 1992; e Luckesi, 1998, 2002 (apud Oliveira; Gama, 2010). Esta avaliação se definia como emissão de um juízo de qualidade a partir de dados relevantes, tendo em vista uma tomada de decisão. Cabia ao professor compor um verdadeiro relatório das atividades estudantis (desempenho em testes e trabalhos variados, participação, comprometimento com as tarefas escolares, pontualidade e assiduidade e até o seu contexto social), emitir juízo valorativo sobre elas, e decidir qual nota ou conceito o aluno deveria receber. Nos dizeres de Luckesi (Oliveira; Gama, 2010) tomar decisão significa levar o estudante é superar determinadas condutas observadas; sem isto o ato amoroso de avaliar não completa seu ciclo constitutivo.

A avaliação para a tomada de decisão como ato amoroso e inclusivo curvou a vara em sentido contrário com grande força. A sobrevivência das práticas características da escola tradicional se tornou marginal e démodé. Os testes e provas praticamente desapareceram do cenário educacional. Houve, porém, quem questionasse os instrumentos de avaliar desta avaliação como ato amoroso, assim como a capacidade dos professores de realizar de forma correta o que se propunham a avaliar. Outros questionavam os limites dos docentes: quais as fronteiras entre a indiscrição e a ajuda à vida estudantil; a coleta de dados relevantes expunha a vida particular de crianças e jovens nos conselhos de classe. Alguns ainda questionaram se os professores e estudantes são detentores do poder de realizar escolhas de maneira lógica e objetiva. Por fim se observou que confunde o processo de avaliação com a análise das situações, a obtenção de indicadores. (Oliveira; Gama, 2010). Perrenoud, um dos arautos mais bem sucedidos do neoliberalismo e do neotecnicismo em avaliação, também se insurgiu contra as práticas de avaliação para a tomada de decisão destacando a ausência de normas de excelência em suas práticas:

sem normas de excelência, não há avaliação; sem avaliação, não há hierarquias de excelência; sem hierarquias de excelência, não há êxitos ou fracassos declarados e, sem eles, não há seleção, nem desigualdades de acesso às habilitações almejadas do secundário ou aos diplomas (Perrenoud, 1998).

Muito embora eu tenha profundas divergências relativas às teorias defendidas por Perrenoud, sou forçado a concordar com a sua crítica à perda de excelência. A incorporação à avaliação para a tomada de decisão de influências advindas da fenomenologia, por exemplo, levou os professores a enfatizar as intenções e a criatividade dos alunos na solução de problemas, considerando principalmente os seus locais de pertencimentos e suas faculdades de percepção no “mundo vivido” sob determinações opressivas. Admitiu-se que seus trabalhos escolares tinham a forma do mundo em que se realizavam e desvelavam as suas visões de mundo.

A massa de alunos se tornou disforme e acentuadamente grande com a aceitação de quaisquer trabalhos estudantis, fossem bons ou não, considerando-se as condições em que viviam; com as progressões ou aprovações automáticas instituídas por governos e prefeitos populistas responsáveis pelo funcionamento das escolas públicas esta massa aumentou ainda mais. A inexistência de tomada de decisão em favor da excelência por parte das autoridades educacionais brasileiras agravou o problema de forma avassaladora. Nos dias atuais a realidade continua, sobretudo, perversa com os estudantes de níveis socioeconômicos mais baixos: 7 de cada 10 alunos do ensino médio têm nível insuficiente em português e matemática (G1, 2018)

Seria, contudo, uma leviandade superdimensionar a avaliação para a tomada de decisão e responsabilizá-la pela crise de qualidade da educação nacional. Muito embora tenha considerável parcela de responsabilidade, outras determinações são importantes e mais impactantes.  Duas delas, entretanto, têm grande destaque.  

A primeira diz respeito às nossas leis educacionais que primam pouco pela excelência educacional e desenham para o alunado um horizonte muito estreito. A Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), como exemplo maior, tem como finalidade “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” a ser garantida por “padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem”. A Lei não define o que é “pleno desenvolvimento”, qual cidadania e qual grau de excelência da qualificação para o trabalho; tampouco outras leis complementares. A apuração da qualidade da educação oferecida utiliza indicadores de qualidade da educação básica divulgados pelo MEC/INEP, mas passam longe de apurar a excelência dos desempenhos em disciplinas ou áreas do conhecimento, preferindo apurar a adequação da formação docente; complexidade da gestão escolar; esforço docente; finanças da escola; média de alunos por turma; média de horas-aula diária; nível socioeconômico; percentual de docentes com nível superior; regularidade do corpo docente; remuneração média dos docentes; taxas de distorção idade-série; taxas de rendimento, transição e não-respostas. Nenhum, como se pode observar, visa definir o nível de proficiência dos estudantes em qualquer disciplina do currículo escolar. Os domínios que podem ter em determinado campo do conhecimento ou, em outras palavras, o aproveitamento traduzido em bons desempenhos nas disciplinas curriculares passa ao largo das preocupações legais, do Ministério da Educação e de seu principal instituto de pesquisas educacionais, o INEP.

Duas outras determinações são, sem dúvida, o descaso com a formação do professorado nas instituições superiores públicas e particulares e a subordinação da educação pelo mercado intensamente preocupado com a reprodução e conservação de uma cidadania pautada pelas relações de trabalho do modo de produção capitalista e com a qualificação dos estudantes para o trabalho. Em recente estudo, observei que a grande maioria das IES públicas e particulares de formação de professores, com qualidade comprovada em diversos rankings nacionais e estrangeiros, se concentra nas capitais da regiões Sudeste, em Porto Alegre e Brasília. As IES particulares regra geral são religiosas. A subordinação da educação pelo mercado vem acompanhada de pedagogias imediatistas para a qualificação para o trabalho, sendo a pedagogia das competências o melhor exemplo. O gerencialismo da educação, que transmuta métodos de administração de empresas para as escolas, define-lhes as suas visões, valores e missões, consegue elevados níveis de eficiência e rende excelentes campanhas publicitárias, é ainda assim incapaz de elevar o desempenho médio de seus estudantes, por exemplo, nas avaliações aplicadas pelo PISA, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes patrocinado pela OCDE – Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico.  

O que fazer?

Diante de tantos problemas é preciso encontrar e apurar os modos de solucioná-los com eficácia. E, desde já, é preciso esclarecer: não será fácil porquanto demandam grande mobilização política de dimensões nacionais.

a.        Individualmente

Em nível individual pouco se poderá fazer. Mas sempre serão bem-vindos os docentes comprometidos com a oferta de educação de qualidade com valor de uso, troca e excelência referenciada socialmente. Os jovens professores que aprofundarem as suas formações básicas com leituras de fôlego e esforço para desentranharem de si mesmos as internalizações reprodutoras do status quo, além de se diferenciarem, mais cedo do que imaginam, adquirirão condições para o necessário exercício de sua autoridade pedagógica e salto de qualidade. Bourdieu & Passeron enfatizam a importância desta autoridade como condição de inculcação do arbitrário cultural dominante; eu, entretanto discordo da condição que eles lhe atribuem, mas devo dizer que sou favorável a que os professores a resgatem aos olhos dos estudantes e da sociedade em geral. A desvalorização social do magistério que vem ocorrendo sistematicamente liquidou essa autoridade pedagógica, chegando ao ponto de se aceitar que qualquer um com algum saber pode ser professor. Os governos golpistas negacionistas que tomaram o poder a partir de 2016 chegaram ao cúmulo de deliberar em favor da atuação de quaisquer profissionais apenas com notório saber comprovado para ministrar “conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional” na educação básica (Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.).

O passo seguinte de um jovem professor é assumir uma prática avaliativa que não anula a realidade individual e a autonomia de cada aluno, com cuidados para promover a produção de trabalhos de qualidade superior. Diagnosticar o nível real em que se encontram os estudantes é fundamental para a expressão subjetiva de ideias no momento seguinte.  O nível real de cada estudante é dado pela capacidade de resolver atividades sem qualquer ajuda, é o que efetivamente dominam. Os testes objetivos facilitam identificar o potencial de aprendizagem e as fragilidades ainda existentes, como diagnósticos revelam quais bases os estudantes têm para uma cognição superior e mais complexa. O diagnóstico, nunca entendido como ponto de chegada, dá ao professor as bases para elevar o potencial dos alunos e a capacidade de se expressarem subjetivamente em textos escritos por eles mesmos. São de grande importância neste momento as indicações de livros, filmes, visitas educativas etc. para incentivar os alunos a realizarem novas mediações e interagirem com colegas e adultos. É a partir das mediações que eles podem fazer, e só eles podem fazê-las, é que se apropriam definitivamente dos novos conhecimentos aprendidos. As mediações são atividades que ocorrem no interior da mente, são elas que permitem a passagem de uma situação para outra, é quando as quantidades são transformadas em qualidade; o aluno se torna outro, diferente do que era; ele se apossa do conhecimento conforme o seu nível de consciência, ou com outras palavras, conforme as suas estruturas mentais, mais ou menos desenvolvidas. Ninguém pode mediar por ninguém. O professor quando muito se põe como intermediário entre o aluno e o conhecimento, incentivando o estudante a se apropriar dele; para tanto expõe aos alunos a sua síntese atual sobre determinado conhecimento, apresenta métodos, fornece bibliografia, projeta filmes... e, com carinho e ternura, incentiva que produza sínteses cada vez mais elaboradas, seja por meio oral ou por meio da produção de textos de forma autônoma. Os conhecimentos adquiridos e mediados funcionam como ferramentas a partir dos quais o aluno pode interagir com o mundo real das pessoas humanas, objetos e acontecimentos. Quanto mais conhecimentos, consciência, interação social e mediações tanto maior a capacidade de se empenhar nas atividades produtivas e construtivas. Ontologicamente, é a partir das interações sociais que homens e mulheres se humanizam e se tornam poetas, professores, engenheiros, bombeiros...

As interações que podem ocorrer na sala de aula por meio de trabalhos em grupo têm elevada importância no processo de aprendizagem. Elas favorecem aos estudantes a realização de catarses coletivas e mediações individuais que ultrapassam a impressão inicial das ideias e dos novos conhecimentos, buscam o que está além e as instrumentalizam para o exame da realidade; as novas sínteses que resultam das interações e mediações com colegas mais experientes e adultos conferem novos significados e olhares para a vida. As interações ainda favorecem o processo de internalização dos conhecimentos e ideias, isto é, o processo de desenvolvimento de sua memória de longo prazo, e a capacidade de utilizá-los de forma autônoma, sem ajudas.

a.            Politicamente

É no campo da grande política que reside a possibilidade de superar os problemas da educação nacional, quaisquer tentativas individuais estão condenadas ao fracasso ou à conquista de resultados efêmeros. Urge que a sociedade subordine a educação das nossas crianças e jovens, definindo perfis de saída para além dos interesses imediatistas do mercado, presente tão somente na qualificação de mão de obra. Uma simples comparação com as leis de educação de outros países deixa transparecer a mesquinhez das elites empresariais do país quando se trata de educação (ver Novo Ensino Médio: aos estudantes nem as batatas, Gama, 2021).

Uma frente extraparlamentar constituída de partidos políticos, Confederação Nacional de Trabalhadores de Educação (CNTE), Centrais Sindicais, Movimentos Sociais, igrejas progressistas etc. pode compor um campo capaz de alterar a relação de forças existente e encaminhar ao Congresso Nacional uma reforma da educação nacional que priorize a educação de qualidade com valor de uso, valor de troca, com desempenhos escolares de excelência, professores bem qualificados, garantia de financiamento, escolas bem aparelhadas e salários competitivos. Também será imperativo que tal frente extraparlamentar pela educação alargue as finalidades da educação nacional para além que dispõe a LDB, (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) e as coloque a serviço das demandas sociais.

Em outros países, cuja razão do Estado não é o mercado, as finalidades da educação têm outros alvos. Daí que nada impede que, como no México, a finalidade da educação brasileira para além das necessidades mercadológicas seja a busca da equidade, da excelência e a melhoria contínua na educação de forma a promover o desenvolvimento integral do aluno, influenciar a cultura educacional pela corresponsabilidade e promover transformações sociais na  escola e na comunidade (México, Ley General de Educación Federal, Artículo 11); ou como na França, onde a educação é a primeira prioridade nacional, organizando-se inclusivamente em torno dos estudantes para promover a igualdade de oportunidades, o combate às desigualdades sociais e territoriais, os valores da República, a igual dignidade do ser humano, liberdade de consciência e laicidade.  No México e na França, como se observa, a educação está longe de ser organizada para atender a uma razão de estado voltada para o mercado (França, Code de l'éducation,2022).

Istvan Mészàros (apud Rodrigues de Souza, 2014[3]) é quem nos dá apoio teórico para pleitear a formação de uma frente extraparlamentar pela educação, cuja força de ação haverá de ser grande no enfrentamento do executivo e legislativo.  Somente tal força pode negar o controle da educação pelos movimentos patrocinados pela elite do atraso: Movimento Todos pela Educação, Fundação Lemman, Itaú BBA, Fundação Bradesco, Instituto Ayrton Senna e muitos outros. Ela defenderia nacionalmente a reforma de educação construída a partir das bases como alternativa ao modelo atual subordinado ao mercado. Como movimento de massas, a frente extraparlamentar também se encarregaria de organizar o novo funcionamento de todos os níveis e modalidades de ensino, da creche às universidades. 

Sua vitória anunciaria um novo tempo, mais justo, equânime e democrático.  

 

 

 



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS), colaborador do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH).

[2] A noção de tendência em uso designa correntes de ideias ou opiniões possíveis de existir no âmbito de um mesmo padrão avaliativo.

[3] SOUZA, R. B. Rodrigues de. O Estado e a transição em Mészáros: rompendo a camisa de força da democracia burguesa. Lutas Sociais, São Paulo, vol.18 n.32, p.24-32, jan./jun. 2014

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