4.4.20

Educação a distância em tempos de pandemia e a reprodução da desigualdade social





A pandemia provocada pelo novo coronavirus – Covid-19 – que assola o mundo e impõe o isolamento social generalizado, fechando as pessoas em suas casas, está mantendo metade dos estudantes de todo o mundo longe das salas de aulas, em ambos hemisférios do globo terrestre. A OMS – Organização Mundial da Saúde – já prenunciou a perda do semestre letivo. Os pais estão em polvorosa com a suspensão das aulas,  com os filhos em isolamento dentro de casa e com criatividade insuficiente para mantê-los calmos e ocupados. Alguns segmentos da sociedade começam a pressionar as autoridades escolares exigindo oferecimento de lições por meio das novas tecnologias de comunicação.
Aqui no Estado do Rio de Janeiro oferecer ou não oferecer educação a distância está na agenda do dia. Grande quantidade de pais exige-a. A Secretaria de Educação – SEDUC – é favorável e exerce pressão sobre o professorado para o seu oferecimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda que a SEDUC suspenda as atividades não presenciais por meio de qualquer plataforma educacional previstas para começar no dia 13 de março.
O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital não é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento agem açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e de forma autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de Internet fosse gratuito, universal e de qualidade igual para aproximadamente 250 mil estudantes e 40 mil professores. Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à realidade socioeconômica de discentes e docentes que, em grande parte, somente têm acesso por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro. Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm péssima cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance.
Um dia admiti igualmente fetichizado e com arrogância a possibilidade de oferecer ensino de qualidade universalmente a todos os estudantes de todas as regiões brasileiras. Hoje admito o meu grau de idealismo e a impossibilidade de oferecer EaD, dadas as desigualdades sociais e regionais do Brasil. Ainda há regiões desprovidas de luz elétrica de qualidade durante as vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores a diesel são desligados às 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas ainda são indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que habita estes lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade de usar os recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem tenha de subir em árvores para obter melhores sinais.
Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de Internet, mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteligentes. Não são todos os usuários que acessam esta rede e têm dinheiro suficiente para pagar os serviços técnicos indispensáveis. O consórcio público de educação a distância, do qual sou um dos fundadores, organizado pelas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, o CEDERJ, registra anualmente elevado índice de evasão exatamente por conta de dificuldades técnicas que os estudantes enfrentam com as suas máquinas e locais de recepção.
A cidade do Rio de Janeiro, dada a sua geografia, também reproduz a mesma realidade das demais regiões do país, a despeito de ser uma capital. Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico, Humaitá ou Barra da Tijuca é uma coisa que chega a ser prazerosa; outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça. Muitos estudantes destes lugares, inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais quando eles permitem e mesmo assim com tempo contado.
O ciberespaço está longe de conhecer a igualdade social, ele reproduz com integralidade a mesma divisão de classe da sociedade capitalista. As classes populares sofrem nele as mesmas agruras do mundo real. Os mais ricos se deliciam e se enriquecem mais e mais com os avanços científico-tecnológicos e a subordinação deles como rápidas e eficientes forças de produção.
Por esta razão, a determinação de oferecer educação a distância para o alunado do Estado do Rio de Janeiro é desprovida de empatia e alteridade, ao mesmo tempo em que pode contribuir para aprofundar as desigualdades sociais existentes. Não vem acompanhada de políticas garantidoras da igualdade de acesso para os estudantes fluminenses. Os mais abonados e remediados poderão acessar a plataforma onde se encontram os textos, vídeos, bibliotecas online etc. nos seus próprios tempos, os mais vulneráveis que se virem. O utilitarismo das autoridades educacionais, que favorece a uns com base num cálculo, desconhece e desdenha o imperativo categórico formulado por Kant: o princípio da universalidade, o fundamento da democracia social: ou é para todos, de igual modo, ou é imoral e antiético.  
O pragmatismo que a impregna a determinação da SEDUC se preocupa com os fins, sem observar a iniquidade e imoralidade dos meios que usa para satisfazer parte da sociedade e obter bons dividendos políticos, já que o calendário eleitoral de 2020 ainda está em curso. Na equação político-eleitoreira com a qual opera, dar uma satisfação social, ainda que promova mais desigualdade educacional, é melhor do que nada. O oferecimento de uma educação de qualidade pode ser postergado, pode continuar a ser uma poderosa promessa de campanha eleitoral.



[1][1][1][1] Professor Titular da UERJ/EDU/Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação. Membro do LPP-UERJ e Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio dos Santos – ProDEd-TS

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