A expressão “novo normal” foi cunhada recentemente por
Mohamed El-Erian, ligado ao think tank Instituto Millenium, para
caracterizar o mundo pós-pandemia ou pós-ruptura estrutural. A expectativa é de
mais intervenção do Estado na economia, maior tributação, menor crescimento
mundial etc. Um indicativo cujo foco é a nova normalidade econômica com uma essência
predominantemente conservadora. A sociedade capitalista de classes continuará a
mesma, sem tirar nem pôr.
É típico dos economistas não se preocuparem com as relações
humanas, a não ser no campo econômico. Eles são incapazes de se deixarem
sensibilizar com os novos comportamentos sociais. Por exemplo, com os gestos de
solidariedade das pessoas, nomeadamente nas periferias mais pobres dada a ausência
do Estado. Também deixam de observar a nova percepção que o professorado passou
a ter na medida em que os pais foram forçados a se travestirem de professores e
ensinar os filhos a escrever a palavra “bola” sem morder os cotovelos.
Penso que um novo normal que queremos e precisamos, tenha que
expressar uma nova sociabilidade brasileira, como ocorreu na Europa Ocidental e
Japão a partir do término da Segunda Guerra. Claro que ela, a Europa, continuou
sendo capitalista, mas o bem-estar social precisou ser estruturado e
disseminado para conter o nazifascismo e o comunismo. Na Inglaterra um sistema
público de saúde demandado pela população, construído em pouco tempo, se tornou
a joia da coroa, e a qualidade de vida na Alemanha Ocidental passou a ser um
ideal a ser conquistado por muitas outras nações. Enfim, poucas lembranças
ficaram daquela desvairada e individualista Europa do entre guerras.
Aqui entre um nós, um novo normal terá de ser construído,
tanto são os estragos feitos pelo governo neofascista de Bolsonaro, quanto os
provocados pelo novo coronavirus e a covid-19. Relativos aos estragos do
governo, será necessário começar por onde foram acentuados os déficits de
democracia e aumentar o processo de democratização do país o máximo que puder.
Também é aconselhável a construção de barreiras legais contra quaisquer
autocratas e suas tentativas de reimplantar regimes ditatoriais, restringir os
direitos humanos e os direitos do cidadão. Definitivamente é imperativo afastar
o mercado do controle da vida econômica e criar mecanismos para que a sociedade
possa traçar os seus próprios rumos. Entre tantas coisas a fazer em um estado
democrático socialmente robusto, há que desmilitarizar a polícia, garantir a segurança
das famílias, urbanizar as comunidades populares. Da mesma forma, é preciso garantir
renda básica aos mais vulneráveis; o país não precisa ter brasileiros abaixo da
linha de pobreza. Em termos de saúde, haverá outros tantos a fazer. Durante
anos assistimos à precarização do sistema público de saúde e agora, em plena
pandemia, milhões de reais têm sido gastos emergencialmente para atender a população
contaminada; tudo a toque de caixa e com muito interesse político-eleitoreiro. A
saúde pública, no entanto, não pode continuar a mercê de arrivistas e dos que a
usam para fins de enriquecimento pessoal. Em cada região metropolitana deve haver
hospitais gerais e em cada município um ou mais hospitais para atendimentos
básicos, isto sem deixar de aperfeiçoar o programa médicos de família e outras
formas de atendimentos às mulheres, crianças e adolescentes e idosos.
A educação nacional jamais deverá ser esquecida na
construção de um novo normal, como condição de equalização social, a começar pela
apuração da qualidade dos cursos de formação de profissionais de educação.
Recentemente escrevi um capítulo de livro me baseando em dados do Ranking
Universitário Folha de São Paulo (RUF
2019)[1] sobre
tais cursos e fiquei perplexo. Se este país fosse sério, a maioria já teria
sido fechada. Somente as melhores universidades públicas de São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal oferecem cursos de
reconhecida qualidade, mesmo assim nenhuma das suas universidades está
ranqueada entre as 100 melhores do mundo. Dos 379 cursos presenciais de Biologia
(Ciências): 143 nas IES públicas (universidades, centros universitários,
faculdades, institutos superiores e CEFET) e 234 nas IES privadas, a maioria destas
com baixa qualidade comprovada, inclusive pelo mercado. Entre as IES públicas,
34,47% não conseguem obter metade dos pontos da USP (62,92) em qualidade de
Ensino de Biologia e 99,14% das IES privadas nem mesmo 20.00 pontos, em 100
possíveis. A situação não é melhor quando são analisados os 283 cursos de
graduação de Matemática: 143 públicos e 140 privados. Entre os cursos privados,
97.14% são incapazes de alcançar 20.00 pontos. Em Pedagogia, a situação
consegue ser mais escandalosa, considerand0-se os 1057 cursos oferecidos: 144
nas IES públicas e 913 nas IES privadas. Dentre estes últimos, 87,52 estão longe
de atingir 29.00 pontos, isto é, metade da média das cinco melhores IES
públicas paulistas e cariocas. Entre os cursos de Letras, 413 ao todo, os 283
oferecidos pelas IES públicas são também decepcionantes. A esmagadora maioria,
98,58%, mal consegue somar 17.00 pontos.
A melhoria de tais cursos em termos de ensino acabaria com o
crônico círculo vicioso: professores com má formação ensinando a estudantes com
baixos desempenhos, os quais futuramente se matricularão em cursos de formação
de professores. É claro que tal círculo não é exclusivo da formação de
professores; ele é igualmente visível em todos os cursos de graduação de todas
as áreas e carreiras. Há 35 anos os EUA viviam uma situação semelhante e o relatório
da Comissão Nacional de Excelência em Educação liderada pelo então Secretário do
Departamento de Educação, Ted Bell, não titubeou em fazer o seguinte alerta:
“Nossa nação está em risco. Nossa preeminência inquestionável no
comércio, indústria, ciência e inovação tecnológica está sendo ultrapassada
pelos concorrentes em todo o mundo. Este relatório trata apenas de uma das
muitas causas e dimensões do problema, mas é o que sustenta a prosperidade, a
segurança e a civilidade americanas. Relatamos ao povo americano que,
embora possamos ter orgulho justificável pelo que nossas escolas e faculdades
historicamente realizaram e contribuíram para os Estados Unidos e o bem-estar
de seu povo, os fundamentos educacionais de nossa sociedade estão atualmente sendo
corroídos por uma crescente maré de mediocridade que ameaça o nosso futuro como
nação e povo. O que era inimaginável uma geração atrás começou a ocorrer -
outros estão combinando e superando nossas realizações educacionais [grifos
meus]. (USA, 1983)[2].
Em um novo normal que queremos e precisamos há muito o que
fazer. Poderíamos durante este extenso período de isolamento social começar a pensar
o que queremos para nós. As eleições municipais já batem à nossa porta e não
seria má ideia as forças progressistas se unirem em prol da eleição de um Prefeito
de caráter íntegro e comprometido com os nossos anseios, tendo uma base forte na
Câmara de Vereadores que o apoie na construção de uma nova sociabilidade, ainda
que restrita ao município, democrática e popular de paz, justiça, equidade e
prosperidade.
[1]
RUF 2019. Ranking de cursos de graduação. Disponível no site: https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-cursos/
. Acesso em junho de 2020.
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