Nestes tempos de bolsonarismo o livro de Christian Ingrao – Crer &
Destruir, os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Zahar, 2015),
é assaz aterrorizante como expressou o Wall Street Journal. Ingrao é ligado ao Centro
Nacional de Pesquisa Científica e foi diretor do Instituto de História do Tempo
Presente (IHTP), ambas instituições são francesas. Sua pesquisa para obter o
grau de Doutor na Fundação para a Promoção da Ciência e Cultura, em Hamburgo, é
importante, original e relata como oitenta jovens inteligentes e cultos,
formados pelas melhores universidades alemãs se deixaram cooptar pela ideologia
nazista e pela ideia de extermínio em massa. Ele reconstrói os trajetos de
economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas que
escolheram o lado do mal. Seus
objetivos: “compreender em que medida as molduras da experiência vivida foram
capazes de modelar seu sistema de representações” e “analisar o nazismo como um
sistema de crenças ‘desangustiante’, cuja coerência entre discursos e práticas
fosse apontada pelas ferramentas de análises e se encarnasse em percursos e
carreiras” (p.11). Ou, em outras palavras, “como esses homens fizeram para crer
e para destruir”. O que une os sujeitos investigados é o fato de terem
participado de campanhas de repressão no Leste Europeu, de matanças e do
genocídio de judeus, eslavos, latinos, ciganos e homossexuais.
A relevância deste estudo para entendermos a ascensão do
bolsonarismo e a sua chegada ao Palácio do Planalto é grande. À semelhança do
que Ingrao investigou, aqui também entre nós, inúmeros jovens com carreiras
promissoras em diversos campos do conhecimento humano e diplomas referenciados
socialmente se tornaram os pilares de sustentação de um governo que a cada dia
se mostra mais autoritário, antidemocrático, impopular, homofóbico,
aporofóbico, machista e fundamentalista, e nada faz para conter o genocídio de
jovens pretos e pobres. A pergunta que fez, também vale para nós: como
promissores e bem formados jovens podem apoiar este governo e contribuir para
destruir os avanços democráticos conquistados nos últimos anos, restringir
direitos sociais e transferir recursos naturais e riquezas socialmente
produzidas para as mãos de grandes exploradores internacionais?
Ingrao faz as suas apostas nos sentimentos de angústia de
muitos jovens alemães típicos do período entreguerras, que os levaram a
determinados engajamentos políticos, a ver na formação elitista das SS os meios
para se distanciarem das hordas ignaras e a entrar no jogo político-institucional,
a partir do qual contribuiriam para justificar científica e ideologicamente as
atrocidades do regime hitlerista. Angústia e representações das organizações
paramilitares nazistas seriam os motivos maiores da adesão à construção do III
Reich, aos quais eu ainda acrescentaria: ambição e busca de poder e prestígio
social.
O autor da obra enquanto se fixa em sentimentos de angústia
e trajetórias não se pergunta, entretanto, quem eram estes jovens, quais as
suas concepções de mundo antes da chegada ao poder do Partido Nacional
Socialista, que capacidade tinham de realizar elaboradas mediações a partir da
realidade concreta. Considera-os como jovens formados em níveis superiores nas
melhores universidades e analisa os seus percursos e engajamentos. Seu ponto de
partida é a sua surpresa ao constatar que economistas, advogados, filósofos,
geógrafos, historiadores e linguistas contribuíram para “cientificizar” e
justificar os horrores praticados pelas Waffen-SS.
A participação e o engajamento de indivíduos com boa
formação superior seja como apoiadores ou quadros, não é, todavia, uma
exclusividade das SS ou do nazismo. A história nos fornece muitos outros
exemplos ao longo de todo tempo da cristandade. Aqui entre nós poderíamos
recorrer a diversos outros, a começar pelos intelectuais orgânicos das
ditaduras de Vargas e Civil-militar de 1964-1985. Minha hipótese é que o
comprometimento com regimes autoritários está diretamente ligado à construção
de uma dada concepção de mundo. Vejamos.
O ser humano, diferente de outros seres que agem conforme as
suas inscrições genéticas, é um ser aprendente a partir de seus primeiros
momentos de vida e, como diz Lukács, as suas apreensões do mundo externo das
objetividades se dá imediatamente e na imediaticidade insuprimível sob forma de
coisa. Paulo Freire diria que neste estado os indivíduos têm uma consciência intransitiva mítica, mágica e
ingênua. São limitados em suas capacidades de apreensão do real, utópicos,
irracionais e fanáticos. A consciência deles é em si e por si, na mais pura
formalidade. Eles vivem em um mundo de representações comuns, cujos fenômenos
penetram em suas consciências e os fazem ver o mundo com movimentos próprios e
naturais. Em tal mundo, subordinam-se a manipulações de outros. São incapazes de indagar, descrever e,
portanto, de captar a essência dos fenômenos. Paulo Freire se dispôs a ajudar o
homem simples e analfabeto a superar a sua compreensão de mundo, a inércia, a
passividade e a alienação. Seu objetivo era que desenvolvessem uma consciência
crítica, isto é, um nível avançado de consciência que tudo submete à análise e
crítica, porque, afinal, o que é verdadeiro hoje pode deixar de sê-lo
amanhã. Contudo, como afirmei em outra
oportunidade (Gama, 2020), não se chega a este estado de modo
abrupto, há que haver esforço, um processo de conscientização no qual vão se
desenvolvendo os graus de tomada de consciência. É imperativo fazer mediações e
mais mediações diante do real.
Sem tal esforço, isto
é, sem mediações complexas e cada vez mais abrangentes, os indivíduos, quando
muito, tendem a atingir somente um estágio de consciência um pouco mais elevado
no qual as respostas continuam contaminadas de teor mágico, porquanto se
encontram distantes de apreenderam a essência dos fenômenos e as suas múltiplas
determinações. Determinismo e fatalismo também permanecem presentes, daí que os
fenômenos continuam sujeitos a leis naturais e às relações de causa e efeito;
são poucas ou nenhuma as alternativas reais. Nada acontece fora de seu tempo, a
vida de todas as coisas vivas ou inanimadas está subordinada à lógica criativa
divina.
O processo
educacional escolarizado deveria ser importante para todos chegarem ao estado
de desalienação, mas pela própria complexidade na qual de funda, é incapaz de
garantir certificados a todos que participam dele. Já houve quem tenha afirmado
que a mesma escola tradicional do alvorecer do século XX formou Einstein e
Hitler. E o porquê disto se deve aos movimentos contraditórios que caracterizam
os processos escolares; a dialeticidade reinante, como já sabemos, tanto permite
a formação de indivíduos reprodutores do status quo quanto de outros que
o negam e o revolucionam. De igual modo, uns tantos completam os seus tempos escolares
sem atingir os elevados níveis de consciência crítica ou de desalienação;
outros tantos, apesar de tudo, alcançam na mesma trajetória escolar a superação
das determinações e fatalidades fenomênicas, tornam-se sujeitos de suas
histórias e da história da humanidade.
Com essa
compreensão, fica relativamente fácil entender o porquê de existir economistas,
advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas em estado de
intransitividade ou transitividade crítica incompleta, na terminologia de
Freire. O projeto Escola Sem Partido, felizmente vetado pelo Supremo Tribunal
Federal, permitiria a existência exponencial de pessoas alienadas portadoras de
diplomas de nível superior, bastando tão somente que as instituições de
formação restringissem os conteúdos disciplinares a coisas em si, incapazes de
serem compreendidos para além de si mesmos e, praticamente, sem relações com os
demais componentes curriculares e com a realidade concreta.
Conheço diversos indivíduos com diplomas de cursos
superiores que sustentam o bolsonarismo, a despeito de sua elevada rejeição
social. O que fizeram para crer e o que fazem para destruir é resultante da
modelagem dos seus sistemas de representações em níveis de consciências mítica
e transitiva. É sintomático que concebam o atual presidente da República como um
mito, isto é, como um ser com forças da natureza e aspectos gerais da condição
humana. As trajetórias que são
capazes de seguir no interior do bolsonarismo variam conforme os seus
sentimentos de angústia face ao que chamam de “marxismo cultural”, à corrupção
e desrespeito aos cânones bíblicos. A ideia de construir um Brasil, sintetizada
no lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, serve para demonstrar a
imersão, alienação, imitação e idealismo utópico existentes.
A mesma irracionalidade
e o fanatismo que caracterizaram as Waffen-SS, distinguem o bolsonarismo e seus
seguidores, apropriadamente chamados publicamente de bolsominions, em
nítida alusão aos “minions”,
que segundo a Wikipedia são personagens de uma animação cinematográfica, evoluídos
de organismos aquáticos, unicelulares e amarelos, para seres com um único
propósito: subserviência aos vilões mais malvados da história.
Por último vale dizer que as trajetórias dos jovens alemães
e brasileiros são difíceis de serem enquadradas em conceitos como o de
oportunismo. Antes, eles se regem por suas concepções de mundo e encontram os
seus lugares ao conectarem os seus saberes às demandas dos simpatizantes e eleitores
do partido. Eles igualmente tendem a reprimir os oportunistas e não se abalam
frente aos comandos de destruir.
Eles creem cegamente.
[1]
Professor
Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de
Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e
membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ. Colaborador do PPFH.
2 comentários:
Muito bom.motivou-me ler o livro
Interessante ver como a falta de perspectiva em um futuro melhor faz com que a alienação cresça em grupos extremistas e multiplique os seus desejos mesquinhos de "soberania nacional", como podemos ver foi bem lembrado como houve uma troca de ética por "economia de sucesso", mas a que preço? Infelizmente vemos a história se repetir com o "líder" que buscará o sucesso de sua nação, ou seria de amigos alinhados aos seus objetivos...
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