27.11.20

Ensino Remoto em tempo de Covid-19: o que as resistências estudantis têm a nos dizer?

 

 


A epidemia de Covid-19 disseminada pelo Coronavírus, que tem contaminado milhões e já levou a óbito mais de 170 mil brasileiros, forçou o isolamento social, o consequente fechamento das escolas desde março de 2020 e impôs o oferecimento emergencial de ensino remoto ao conjunto de estudantes, da educação infantil às pós-graduações. De uma hora para outra o professorado e os estudantes, querendo ou não, transladaram-se para ambientes virtuais com dificuldades técnicas de várias ordens e com os recursos disponíveis, nem sempre contando com os apoios necessários das autoridades educacionais. A mudança da pedagogia utilizada para os ambientes virtuais tem sido um esforço de guerra com resultados a serem analisados com profundidade, até porque o ensino remoto tem desprezado os acúmulos técnicos e tecnológicos da modalidade educação a distância já instalada.

No presente texto, ensaio uma análise tendo como objeto de estudo o Curso de Políticas Públicas de Educação, oferecido por mim e pelos professores Gaudêncio Frigotto e Roberto Santana, e um conjunto de cento e dezessete estudantes de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, efetivamente matriculados. Para tal oferecimento utilizamos a plataforma AVA-UERJ, desenvolvida pelo Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação (LaTIC/UERJ) na qual disponibilizamos a ementa do Curso, textos e vídeos. Os vídeos para as atividades síncronas e assíncronas foram gravados com o uso da ferramenta Zoom Meeting, editados e publicados na AVA-UERJ, e no YouTube por causa da facilidade de edição e do fornecimento de estatísticas de acesso, tempo de visualização etc.

Nosso envolvimento nesse processo de oferecimento de ensino remoto emergencial se fez com os nossos conhecimentos limitados de informática e do uso de plataformas de ensino. Todos nós três somos grandes usuários do computador como sofisticada máquina de escrever e analfabetos funcionais nos demais recursos. O ambiente virtual colocado à disposição pela Universidade exigiu boas horas de aprendizagem mínima para que navegássemos por ele postando atividades criadas aos trancos e barrancos, realizando e gravando vídeos para as aulas síncronas e assíncronas, enfim, virando-nos nos trinta. Entre os colegas de Departamento as dificuldades foram iguais. As redes emergenciais de comunicações e trocas de informações que se situaram na base de tal esforço de guerra foram providenciais e solidárias para que os avanços se tornassem possíveis e as atividades postadas se apresentassem minimamente atraentes e com os graus de qualidade que pudemos atingir.

Da parte dos estudantes, os inúmeros problemas enfrentados transparecem significativamente as desigualdades sociais persistentes na sociedade brasileira. Grande quantidade ainda não está incluída qualitativamente no ciberespaço criado pela Internet, seja pela incipiente condição de sinal, sombras que dificultam as conexões, internet pré-paga, um único computador para muitos usuários, ausência de locais adequados de estudo, seja pela falta de disciplina e comprometimento com os estudos ofertados remotamente. Uma simples análise estatística da participação deles nas aulas remotas é frustrante. Em atividades apresentados em vídeos, com um tempo de exibição entre vinte e quarenta minutos, têm média de tempo de visualização que nunca ultrapassa 16 minutos. Em duas turmas abarcando todos os estudantes, verifica-se que nas aulas síncronas poucos mantêm as câmeras de vídeo abertas; é regra que estejam desligadas ou com imagens congeladas e a maioria registra duvidosa presença apenas indicando estarem conectados. Os debates existentes quando envolvem cinco alunos é um sucesso de público. Os trabalhos que desenvolvem, abordando algum tema específico, ficam distantes do potencial cognitivo que eles têm. Antes eles traduzem o burocrático cumprimento do dever com pequeno aprofundamento, ou em outras palavras, como exercícios superficiais de mediação. Os esforços para superar o nível real em que se encontram são insuficientes e precários.

Todavia, a despeito da problemática técnica, é imperativo questionar esta atitude blasé e buscar o seu significado. Os sentidos dos estudantes estão enfraquecidos neste ensino remoto emergencial por excesso de atividades síncronas e assíncronas? O distanciamento assumido é por cansaço, tédio ou será por esnobismo face ao amadorismo docente em comparação com os youtubers da moda e as apresentações de videobloggers descolados? Ou, simplesmente, por conta da permanência das aulas na plataforma e da facilidade de acessá-las em momentos de mais disposição?

Por outro lado, é possível questionar tal atitude blasé como forma de resistência ao ensino remoto, mesmo sabendo-se que o conceito de resistência nos discursos educacionais ainda carece de aprofundamento teórico, dado o sentido corrente que o aproxima de negação a determinada ação. A atitude de indiferença e displicência estaria a demonstrar que os estudantes se negam a aceitar ou não aprovar o ensino remoto nos moldes em que se realiza, talvez preferindo que o melhor teria sido o cancelamento do ano letivo?

Nos manuais de Psicologia a resistência, como mecanismo de defesa, é inerente ao indivíduo sempre que se deparar com situações ou circunstâncias que geram conflitos. Nos manuais de Filosofia, o termo adquire outras e maiores dimensões, para além de simples negação. Para Foucault por exemplo, de um ponto de vista político-filosófico a resistência é própria das relações de poder, as quais não existem sem embates entre dominantes e dominados; quem domina exerce força no sentido de manter o seu mando; com mais ou menos força em relação à astúcia e os modos de resistir dos dominados (Foucault, 2003). Neste sentido foucaultiano, também se pode inferir que a resistência, qualquer que seja sua forma, é inerente à nossa constituição como sujeitos. 

No campo da Educação, tomando a resistência estudantil como objeto de estudo, Henri Giroux (1986)a utiliza para criticar as Teorias da Reprodução e a ausência de dialeticidade nelas, aproximando-se bastante da compreensão foucaultiana de relações de poder. Até então era corrente que a escola inculcava inexoravelmente o arbitrário cultural da classe dominante sem que houvesse alguma forma de resistência por parte dos estudantes. Giroux tem os estudantes como classe em uma perspectiva cultural, e como tal destaca suas atitudes em defesa dos seus estilos, linguagens, gostos, modos de ser e de se comportarem. Por esta razão, a escola de qualquer nível ou modalidade nunca é cem por cento reprodutivista e a negação a ela, por alguns ou muitos, permite processos de desalienação ou desinculcação em direções diferentes ou opostas. Contudo, Giroux faz uma advertência severa: os comportamentos resistentes, em situações específicas, também podem atuar a serviço da lógica dominante de reprodução. 

A resistência ao ensino remoto em favor do ensino presencial ou da anulação do ano letivo não pode, ainda, ser vista com exclusividade de forma conservadora. Ela pode sinalizar a necessidade de serem criados ambientes virtuais que não sejam simples transladação da pedagogia tradicional para ambientes virtuais; possivelmente estão a exigir que os professores dominem as linguagens e as ferramentas que a Internet disponibiliza, criando efetivamente novas formas de apresentar os conteúdos indispensáveis à formação que buscam, e, ao mesmo tempo, pressionando as autoridades a dar passos educacionais para além das respostas imediatas e eleitoreiras à sociedade. A dinamicidade que caracteriza o ambiente virtual e as novas tecnologias de comunicação abre portas para uma pedagogia virtualizada e de um mundo educacional jamais imaginados pelos grandes pensadores e filósofos. Neste sentido a resistência é positiva e força a entrada da Pedagogia no mundo virtual.

Não sendo a resistência impregnada de sentidos importantes para a construção dos novos sujeitos, com olhares para o futuro, mas forçando o reino da lei do menor esforço e aproveitamento da situação de pandemia para adiantar créditos ou concluir cursos é um tiro no pé. Todos perdem, e lá na frente, no mercado de trabalho, estarão desvalorizados todos os diplomas da era pandêmica.

 



[1] Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Educação. Coordenador do PPG Desenvolvimento & Educação Theotônio dos Santos (ProDEd-TS), integrante do Comitê Gestor do LPP_UERJ, professor colaborador do PPFH. 




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