14.11.20

FNDE E FUNDEB: pela qualificação docente já!






Em uma "live" recente, Gaudêncio Frigotto e Eu discutimos o financiamento da educação brasileira (Financiamento da Educação Brasileira, Parte 1 e Parte II, YouTube). Nela ressaltamos diversos aspectos importantes, a começar pela centralidade e importância do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE - e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB.   

O FNDE, segundo informações próprias, repassou R$ 14.181.616.664,77 para a efetivação de programas, o que, convenhamos, não é pouco dinheiro. Em malas não sei em quantas caberia. Toda esta dinheirama foi para o pagamento de bolsa e auxílios diversos; custeio de despesas com manutenção e desenvolvimento da educação infantil; renovação, padronização e ampliação da frota de veículos escolares; fornecimento aos entes federados de instrumento de diagnóstico e planejamento de políticas de educação; aparelhamento das escolas com banda larga de Internet; garantia de merenda escolar e livro didático para mais de 45 milhões de crianças e jovens matriculados na educação básica; promoção do uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação nas redes públicas de educação básica e etc. Isto não é pouca coisa e, ao mesmo tempo, demonstra a grandiosidade dos embates políticos entre a sociedade civil organizada e governo pelo atendimento à educação pública. A quantidade de dinheiro não é maior por conta dos lobbies privatistas no Congresso Nacional que lutam contra a existência de uma escola pública de qualidade referenciada socialmente, gratuita, universal e inclusiva que faria frente à oferta de educação pela iniciativa privada. Se todas as escolas públicas tivessem a qualidade pela qual lutamos ardorosamente a razão de existirem escolas privadas teria sido extinta; dá para imaginar o tamanho do prejuízo dos empresários particulares de educação.  

O FUNDEB, por sua vez, é outro fundo gigantesco que concentra recursos provenientes dos impostos e outros que são transferidos aos estados, DF e municípios vinculados à educação básica, conforme determinações constitucionais (Art. 212 da Constituição Federal). A finalidade de 60% de todos os seus recursos é garantir que o valor por alunos (Custo Aluno Qualidade Inicial - CAQi) seja igual para todos em todo território brasileiro. O 40% restantes são usados para garantir que todos os docentes possam receber pelo menos o salário-mínimo nacional estabelecido pela lei federal nº 11.738 de 2008.  

Algumas características destes fundos públicos devem ser ressaltadas, a começar pelo caráter distributivo de ambos garantindo a melhoria física e qualitativa das escolas públicas do país e a igualdade salarial mínima dos docentes. Imagine o quanto seria fantástico o momento em que todas as nossas 180,6 mil escolas de educação básicas estiverem bem aparelhadas fisicamente, funcionamento em bons prédios escolares, com Internet de banda larga e computadores e equidade salarial docente mínima! As desigualdades educacionais regionais teriam terminado! Matricular os filhos numa escola de São Paulo ou do interiorzão do Brasil faria pouca diferença em termos de comodidade e oferta de mínimos de educação de qualidade referenciada socialmente. Devo também ressaltar o caráter técnico do Fundeb, na medida em que os seus recursos são distribuídos por alunos comprovadamente matriculados e com frequência regular. A objetividade deste caráter pôs fim à politicagem na hora da distribuição dos recursos, porquanto fez cessar a ingerência de políticos na destinação deles. Cada escola recebe pelo quantitativo de alunos matriculados e frequentes. O corolário imediato de tal objetividade é a pressão para liquidar a evasão escolar dada a diligência das escolas: cada aluno evadido passa a ser igual a menos verba de manutenção e custeio. Por mais endiabrado que seja um estudante já se foi o tempo em que os diretores queriam se ver livres dele. Ele agora tem importância econômica para as escolas.  Por fim devo ressaltar de ambos os fundos o caráter e o empenho democrático de oferecer educação de qualidade socialmente referenciada em todo território brasileiro.  

Não obstante todas as virtudes dos dois fundos públicos, há que colocar em destaque a essência quantitativista de ambos. Eles trabalham com a ideia de que a qualidade pode ser medida por indicadores de variedades e quantidades. Em texto escrito em parceria com um colega - Gama & Klagsbrunn, 2005 - ressaltamos que as melhorias físicas nas escolas ou nos salários, necessariamente não se traduzem em qualidade da educação; regra geral as melhorias ocorrem apenas no âmbito do próprio indicador. Se numa dada escola é aumentada a quantidade de computadores e melhorado o acesso à banda larga isto apenas significa que o indicador computador e acesso é melhorado. Nenhum estudo, de Hegel aos nossos dias, comprovou que as alterações no âmbito de algum indicador se transladam para outro ou outros. Marx, por exemplo, nos diz que não basta que um tear de tecidos de linho tenha as melhores instalações e tecnologias para produzir com elevada qualidade sem tecelões altamente qualificados. São as habilidades e conhecimentos de tecelões altamente qualificados que conseguem os melhores resultados com os teares de última geração. Por suposto, um tecelão com baixa qualificação poderia, além de produzir tecidos com baixo valor de troca e uso, danificar os teares em pouco tempo, causando enormes prejuízos.  

Com os docentes ocorre caso semelhante. Muitas instituições escolares privadas com prédios construídos segundo os últimos preceitos de arquitetura escolar e aparelhamento didático-pedagógico up to date, conseguem desempenhos pífios se as comparamos com instituições públicas com professores mais bem qualificados e aprovados em concursos, mesmo que não tenham o mesmo aparato físico e didático-pedagógico. Ou seja, a quantidade e a qualidade dos insumos materiais se influenciam a qualidade, o fazem em pequena quantidade. Sem professores de alto nível pouco se evolui, não basta que a escola seja bonita e bem equipada.  Os ranqueamentos nacionais e internacionais de qualidade das universidades comprovam o que falo. Nossas universidades de padrão mundial são todas públicas, as únicas exceções são algumas universidades pontifícias como as PUCs do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. E nós sabemos o quanto as nossas instituições públicas de ensino superior, pesquisa e extensão vêm sendo sucateadas há longo tempo. Seus docentes, entretanto, transitam com desenvoltura no meio acadêmico mundial e suas publicações científicas são referenciadas pelos seus colegas pelo mundo a fora. O mesmo é válido quando voltamos os nossos olhos para a rede de colégios Pedro II e para muitas outras instituições federais de educação básica.  

Os dois fundos são, sem dúvida, extremamente importantes e a sociedade não pode renunciar a nenhum dos dois. Eles, contudo, precisam avançar para que tenhamos a educação de qualidade referenciada socialmente que desejamos, criando programas de qualificação do professorado com bolsa e liberação de tempo para aprofundamento de estudos, condições de mobilidade acadêmica e intercâmbios de conhecimento. E nem precisam reinventar a roda, bastando tão somente aproveitar a expertise da CAPES para o aperfeiçoamento do professorado de nível superior. O sucesso comprovado da educação básica da Finlândia tem as suas bases na qualidade dos professores, nenhum é admitido sem ter mestrado em sua área de atuação docente.  

E isto é urgente. A maioria das instituições de ensino superior que oferecem cursos de licenciamento de professores, públicas ou particulares, não está formando profissionais de alto nível. Em pesquisa realizada recentemente, pude constatar a precariedade formativa existente. Tomando apenas como exemplo, os cursos de Biologia, Matemática e Letramento (Pedagogia e Letras) avaliados pelo PISAé fácil identificar a claudicância da maior parte Em funcionamento há no Brasil 143 cursos de Biologia nas IES públicas (universidades, centros universitários, faculdades, institutos superiores e CEFET) e 234 nas IES privadastodos em grandes cidades das regiões mais desenvolvidas, mas mais da metade dos cursos oferecidos pelas IES públicas (56,37%) sequer consegue metade dos pontos no quesito Ensino obtidos pela USP (62,92) no Ranking Universitário Folha de São Paulo (RUF 2019)entre as IES particulares o escândalo é ainda mais gritante: 99,14% delas sequer conseguem obter 20.00 pontos no mesmo quesito. Os 283 cursos de Matemática das IES públicas e particulares apresentam problemática semelhante. Fora das capitais e algumas cidades grandes das regiões Sul e Sudeste e do Distrito Federal é impossível encontrar um curso de Matemática com uma qualidade minimamente aceitável. E isto fica pior quando colocamos foco nas IES privadas: 97.14% são incapazes de alcançar 20.00 pontos no quesito qualidade de ensino avaliado pelo RUF 2019.  

A situação dos cursos de Pedagogia (formação de docentes para a Educação Infantil e ano iniciais do Ensino Fundamental da Educação Básica) e de Letras segue o mesmo padrão. O Brasil conta com 144 cursos de Pedagogia oferecidos pelas IES públicas e impressionantes 913, pelas IES privadas. maioria dos cursos privados se concentra em São Paulo (268), seguido de Minas Gerais, 102; Paraná, 80; e Bahia, 56Apenas quatrestados entre os mais ricos da Federação, os da Região Sudeste – Minas GeraisSão Paulo e Rio de Janeiro – e um da Região Sul – Rio Grande do Sul, oferecem cursos de Pedagogia bem avaliados pelo RUF 2019. Todos os demais sequer atingem a metade dos pontos obtidos por qualquer uma das cinco melhores IES PúblicasUFRJ, UNESP, USP UNICAMP e UFRGSA situação dos cursos de Letras oferecidos em 129 IES públicas e 283 IES particulares também se repete, é a mesma catástrofe em termos de qualidade de ensino. A avaliação de todas IES privadas fica bem abaixo da média das IES Públicas. Aliás, 279 delas sequer conseguem 17.00 pontos de avaliação, na escala de 0.00 a 100, e isto corresponde a 98,58% do total.  

São tais constatações que justificam a criação de programas destinados à qualificação dos docentes em nível de pós-graduação, assim como é imperativo categórico a fiscalização séria e eficiente dos cursos em funcionamento. São vultosos os prejuízos sociais, políticos  e econômicos que decorrem da formação de professores com baixa qualificação.   



Publicado em Brasil 247

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