Zacarias Gama
O filósofo chileno, Wladimir Safatle, professor titular da Universidade de São Paulo, no artigo “Uma revolução molecular assombra a América Latina”, publicado no jornal El País, na edição de 19 de maio de 2021, apresenta-nos a síntese das mediações que construiu a partir de uma visão de totalidade do que ele chama de “insurreições não centralizadas em uma linha de comando” e que adjetiva de “revolução molecular”. Tais insurreições, em sua perspectiva, tanto podem criar situações de explosão social quanto de “sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social”. A chamada Primavera Árabe, como afirma, marcou o início desta revolução molecular, à qual se somam outros eventos igualmente importantes: Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago. Para Safatle são “sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios à mostra nas redes sociais e greves gerais”.
Concordando com as suas análises, posso acrescentar que, de fato, o Brasil se situa nos limites dessa revolução molecular e que as Jornadas de Julho de 2013 foram manifestações dela. Da mesma forma que as demais sublevações populares pelo mundo afora, a característica comum a todas foi o uso das redes sociais e as bandeiras contra a corrupção, altos preços dos transportes públicos, má qualidade da educação, saúde etc. acima das negações de direitos, preconceitos, exploração do trabalho e outras pautas. Também a volatilidade dos atos deixou tontos os aparelhos de repressão, ao mobilizarem milhares de ativistas com uma rapidez jamais vista e os direcionar a praças e avenidas poucos usuais em manifestações anteriores.
A análise de Safatle é cristalina e oportuna, sobretudo, ao chamar a atenção para a latência da revolução molecular na América Latina e no Brasil e para a sua recente vitória no Chile, a qual culminou com o processo de constitucionalização de uma nova sociabilidade. No Brasil, ao contrário de outros lugares, a Jornadas de Julho 2013, muito embora tivessem caraterísticas difusas, acabaram por favorecer o caminho para o Golpe de 2016 que derrubou a Presidente Dilma Rousseff e permitiu “mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular” como afirma Safatle.
A conjuntura brasileira nessa primeira metade de 2021 é outra e muito diferente. A pandemia de Covid-19, a crise econômica que o país atravessa, o sequestro da política cidadã por grupos ligados à grande corrupção e as oscilações e hesitações dos Poderes Judiciário e Legislativo criam ambiente favorável a novas explosões sociais no Brasil às vésperas das eleições gerais de 2022 e posteriormente a elas. A sociedade nunca esteve tão distante dos partidos políticos tradicionais, tão banalizada a política e desmoralizadas as instituições da República.
Há, porém, novas formas de organização de muitos setores da sociedade em coletivos de lutas. A maioria ainda permanece invisível para grande parte da população, além de serem pouco estudados e compreendidos pelos nossos brilhantes sociólogos e cientistas políticos. São coletivos de lutas ou moléculas políticas, como Safatle se referiu a eles, que surpreenderam a todos nas Jornadas de Julho de 2013, lotaram as ruas e não se desapegaram dos seus telefones celulares. Existem aos borbotões no Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter, Telegram e nas universidades e comunidades populares aglutinando milhões; a eles poderia ainda agregar as torcidas antifascistas de clubes de futebol e entregadores de aplicativos... Organizam-se em defesa da educação popular e de melhores condições de trabalho, das populações indígenas, da LGTBQIA+ e das mulheres da classe trabalhadora contra a exploração do trabalho feminino e pela superação da sociedade de classes, das cotas raciais, da população negra; são também grandes apoiadores de jovens moradores de comunidades populares que guerrilham contra as mentiras da grande mídia Unidos, da saúde pública e educação de qualidade, habitações dignas etc. Eles constituem uma força político-social de enormes proporções e apontam inúmeras possibilidades no horizonte político, social, cultural, econômico e religioso do Brasil.
É paradigmática essa nova forma de organização popular que se contrapõe ao capital e à própria democracia burguesa. Seu horizontalismo organizativo, a recusa de se abrigar em partidos políticos e a crença na obsolescência do Estado são as suas características principais. Com fortes inspirações neo-anarquistas, que essencializam o Estado, a democracia parlamentar e a mídia conservadora, enxotaram as bandeiras de partidos políticos tradicionais e os repórteres das grandes emissoras de TV das multidões que lotaram as ruas nas Jornadas de Julho de 2013.
A ascensão do fascismo bolsonarista a partir de 2018 provocou, todavia, uma profunda mudança no cenário nacional. Muito embora suas hostes sejam propensas à volta do regime militar e a um golpe que perpetue o mandato do quadrunvirato exercido pelo presidente Jair Bolsonaro e seus três filhos, é inegável o refluxo que sofrem promovido pela inépcia governamental, negacionismo da ciência e das vacinas anti-covid19, falta de empatia diante da morte de quase quinhentas mil e da contaminação de milhões de pessoas, corrupção praticada pela “primeira família”, ligações com milícias... Como efeito, as últimas pesquisas de opinião pública constatam a disparada do ex-Presidente Lula da Silva nas intenções de votos e a elevação da rejeição do presidente Bolsonaro.
Safatle, diante da situação dramática que se desenha no Brasil, prevê as forças da reação agindo com intensidade em 2022, exigindo um golpe militar e defendendo o bolsonarismo contra a revolução molecular; ele pede que estejamos preparados para tanto.
É fácil acreditar e prever tal embate; difícil é prever o dia seguinte. Uma impensável vitória da reação poderia nos conduzir a um regime ditatorial hereditário de longa duração. A vitória da revolução molecular, com intensa participação dos coletivos de luta como força extraparlamentar contra o capital e consensos bem construídos poderia nos aproximar incrivelmente do que aconteceu e acontece no Chile. Ela poderá nos conduzir a uma nova sociabilidade com mais igualdade, justiça, segurança, liberdade, solidariedade e estima social.
É chegada a hora e a vez dos nossos coletivos de luta.
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