A ordem unida que se tornou viral na Internet.
Zacarias Gama[1]
Vazou e viralizou o primeiro vídeo registrando o que se
passa no pátio da escola Cívico-Militar General Abreu na cidade do Rio de
Janeiro. À frente do alunado em ordem unida um militar levava-o repetir aos
gritos: "Muitos querem, mas não podem / Nós queremos e podemos / Nós somos
nós e o resto é o resto / Brasil acima de tudo, abaixo de Deus”. A viralização
foi inevitável e imediata, assim como os abalos que promoveu na sociedade. Até
então as escolas militarizadas eram fenômenos distantes que deveriam reproduzir
o modelo consolidado dos colégios militares existentes sob a responsabilidade
do Exército, Aeronáutica e Marinha
As escolas militarizadas como a General Abreu são
administradas pela Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, têm rígida disciplina militar
e padronização visual, ensino de civismo e constantes ordens unidas. Há estudos
encomendados pela Revista
Brasileira de Política e Administração da Educação demonstrando o impacto
de tal gestão nos projetos político-pedagógicos das escolas públicas e a
subordinação deles às concepções de mundo da corporação militar gestora. Muitos
destacam a mescla de interesses públicos e privados na gestão delas, das
secretarias de educação e de segurança pública, e grande quantidade flagra o
caráter seletivo, elitista e dispendioso de tais escolas face à exigência de doações
espontâneas” e fardamentos caros.
O lamentável vídeo viralizado nas redes sociais é
emblemático e coloca a necessidade de reações críticas face o combate de
conservadores e reacionários ao que chamam de “marxismo cultural” e “ideologia de
gênero”. Dois movimentos tornaram-se fortes neste sentido: o Movimento Escola
Sem Partido e o movimento pela militarização das escolas que já somam 120 em
todo território nacional. O Movimento Escola Sem Partido advoga que os
professores deixem de aproveitar da audiência cativa dos estudantes para
promover opiniões e interesses próprios, assim como as suas preferências
ideológicas, religiosas, políticas, morais, partidárias e de gênero; que não
façam propaganda de políticas e partidos nem incitem a participação em atos
públicos ou passeatas; enfim, que sejam neutros em questões políticas,
socioculturais e econômicas. Outros setores do bolsonarismo, liderados pelo próprio
presidente da República, defendem a militarização das escolas como modelo a ser
seguido pela escola pública brasileira. A subsecretaria criada com a finalidade
de implantá-las, tem-nas como “modelo de escolas de alto nível” e espera que
sigam os padrões de ensino dos colégios militares dirigidos pelo Exército,
Marinha e Aeronáutica. Experiências isoladas em alguns estados forneceram as
bases para serem apresentadas como política a ser adotada em todo o país. Atualmente
já existem 120 escolas públicas administradas Polícia Militar e Corpo de
Bombeiros, a maioria no estado de Goiás.
Não há, porém, uma teoria pedagógica que as possam nortear e
unificar. Ou melhor, é nítida em todas elas a construção pragmática de uma
prática pedagógica caracterizada pela multiplicidade de processos, diferentes
origens e locais, repetições, imitações, aplicáveis em distintos campos que se
impõe para responder às exigências de conjuntura do momento bolsonarismo que a
sociedade vive. O objetivo de todas é tornar hegemônica a concepção de mundo do
bolsonarismo.
Na história das ideias pedagógicas nada existe à semelhança
nem nas matrizes pragmáticas fornecidas por John Dewey e Anísio Teixeira. Menos
ainda entre os românticos idealistas, tais como J. F. Herbart (1776-1841) e Auguste
Comte (1798 – 1857). Herbart foi primeiro a formular uma teoria
pedagógica que separasse a instrução da educação. Em sua visão a instrução
deveria unicamente aperfeiçoar a bagagem adquirida no âmbito familiar, social e
religioso (Gama, 2017). Ele
atribuía grande importância à disciplina escolar para a autodisciplinação, isto
é, para o desenvolvimento da competência de “observar e retificar durante todo
o processo de educação a relação entre uma deformação e a moral”. Auguste Comte
propôs uma pedagogia positiva, mas jamais imaginou separar a
educação da instrução. O que reivindicava era uma educação em bases científicas
adaptada às demandas da modernidade de modo a superar as práticas pedagógicas
essencialmente teológicas, metafísicas e literárias. O ensino das ciências em
sua proposta seria a base de uma educação geral verdadeiramente racional. Seu
objetivo seria a formação de cidadãos capazes de servir à família, à pátria e à
humanidade, tendo o “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por
fim". Aqui no Brasil, a Reforma
Benjamim Constant (1890), em
plena República dos Marechais, aplicou ao ensino nacional os princípios de
Comte cuidando para sobrepujar o currículo das escolas do Império mediado pela
religião cristã; o currículo republicano seria pelas ciências. É interessante
observar que tanto Herbart quanto Comte, contemporâneos das revoluções
burguesas da primeira metade do século XIX, buscaram formas educacionais que
promovessem a formação de um indivíduo novo para uma nova sociedade, moderna e
progressista. Não há registros de que tenham pensado em militarizar as escolas,
promover o aprendizado da obediência, inculcar valores tidos como importantes para
determinada classe ou fragmentos sociais. Ambos sempre estiveram distantes de
práticas autoritárias de embotamento dos jovens quando buscam construir as suas
próprias personalidades. Roupas de determinadas cores ou estilos, cortes de
cabelo padronizados, unhas sem pinturas e no tamanho expresso em regulamentos
nunca estiveram presentes em suas formulações teóricas. O conceito de
disciplina escolar em ambos era necessário e indispensável, mas para a
autodisciplinação e obtenção “em toda parte do grau de precisão compatível com
a natureza dos fenômenos e conforme as exigências de nossas verdadeiras
necessidades”. Nenhum jamais pensou na docilização dos corpos e na obediência
incondicional.
O que se assiste no
vídeo em questão deturpa profundamente as propostas verdadeiramente pedagógico-educacionais
e permite aproximar o que se vê da economia e práticas de docilização dos
corpos tal como enunciou Michel
Foucault (Vigiar e Punir, 1999). Em ordem unida, conforme se pode ver, o
que os estudantes praticam na Escola Cívico-Militar General Abreu é a
disciplinação de corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. São aumentadas
as suas forças físicas em termos de utilidade e diminuídas em termos políticos
de contestação e transformação. Faz-se da potência dos corpos uma relação de
sujeição estrita. Nas palavras de Foucault: “estabelece-se no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”.
A escola militarizada, bem ao gosto do
presidente Bolsonaro e de setores conservadores e reacionários, se esmera para tornar
dóceis os jovens, designar-lhes os lugares na sala de aula e as distancias que
os separam dos outros praticamente condicionando-os com abnegação aos seus
lugares sociais. Antecipa-se os seus posicionamentos no mundo do trabalho, a
aceitar com docilidade o que lhes reserva o metabolismo do capital. O processo
de disciplinação tampouco esmorece a vigilância geral e individual, conferindo
as presenças, a aplicação às tarefas escolares e a qualidade delas, comparando
os estudantes entre si, classificando-os conforme as suas habilidades;
acompanhando os seus estágios de aprendizagem.
Não foi por acaso que a sociedade assistiu estarrecida ao
vídeo. O que se viu foi o sequestro da escola pública democrática, gratuita e
laica pela ordem militar e uma ordem unida para a obediência cega. Ficou chocada
com a transformação da escola pública em um quartel, que sujeita os seus filhos
aos rigores dos regulamentos de disciplina militar e os transformam em sujeitos
acomodados à hierarquia e obedientes aos comandos que vêm do alto.
Uma palavra de Paulo Freire vem a calhar neste momento: “Não
é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.
[1]
Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do
Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos
(ProDEd-TS). Membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas - LPP
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