Muita gente tem a educação como remédio para todos os males sociais. Quando alguma coisa deixa de funcionar bem, há sempre quem deposite nela toda responsabilidade como se fosse a única agência educativa.
Há ainda quem atribua à baixa ou má educação do povo brasileiro a nossa dependência econômica, a vandalização de monumentos públicos, as más escolhas eleitorais etc. como se não houvesse diversas outras determinações, incluindo aquelas contidas em nossa legislação educacional. E esta esta questão tem sido ainda pouca estudada ou falada. Aqui entre nós, predomina a subordinação da educação pelo mercado a qual exige que o estudante de educação básica seja qualificado para o trabalho e que sua formação para o exercício da cidadania possa ocorrer sem o concurso das disciplinas de história, sociologia e filosofia.
Um dos que aportam fundamentos teóricos ao grupo de pessoas que atrela o nosso desenvolvimento aos níveis educacionais de nossa gente foi o ganhador do prêmio Nobel de Economia (1979) Theodore Schultz, desenvolvedor da Teoria do Capital Humano. Em suas afirmações os indivíduos precisam investir educacionalmente em si mesmos, não apenas como condição para conquistar melhores posições e renda, mas porque o capital humano acumulado por cada um teria grande impacto no crescimento econômico de uma sociedade. A sua tese é explícita: quanto maiores os investimentos pessoais em educação tanto maior o desenvolvimento do país. Os estados a despeito dos investimentos pessoais, deveriam também ser grandes investidores na educação pública de sua população como forma de aumentar o capital humano nacional e elevar a economia a outros patamares.
Esta teoria, embora seja aceita em grande parte dos campos educacional, econômico e político brasileiros por muitas autoridades, tem problemas sérios, por exemplo, ao mascarar as determinações da desigualdade entre nações, indivíduos, grupos e classes sociais, como Frigotto (2009) já demonstrou. Com alto nível de perversidade a Teoria do Capital deixa de explicitar os fundamentos reais da desigualdade social, o pertencimento a determinada classe social e a não-neutralidade dos processos de conhecimento, conscientes ou inconscientes.
As leis brasileiras de educação, entretanto, ainda obedecem aos cânones desta teoria. A LDB (Lei 9394 de 1996), em seu segundo artigo, define que os fins da educação nacional é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Este “pleno” desenvolvimento, no entanto, se restringe “ao domínio da leitura, da escrita e do cálculo”; “compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade”; o desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender; e “fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social” (Brasil, 1996). Em comparação com as leis educacionais de outros países, o perfil de saída do estudante brasileiro que se deseja é tão somente o de um trabalhador que saiba ler, escrever e contar; seja conservador do ambiente natural, social, político, tecnológico, artístico e axiológico; e defensor da família tradicional e da solidariedade característica da sociedade liberal. Comparando os fins da educação brasileira com os da Argentina, México e Estados Unidos é possível ter a dimensão exata da mesquinhez da educação brasileira. Na Argentina os jovens são educados para a construção de uma sociedade justa, soberana e com identidade nacional, aprofundar a cidadania democrática, respeitar os direitos e as liberdades fundamentais e fortalecer o desenvolvimento do país. A finalidade precípua da educação argentina está expressa no Art. 8 da Lei de Educação Nacional (Argentina, 2006): “formação integral das pessoas ao longo de toda a vida, promover em cada estudante a capacidade de definir seu projeto de vida, com base nos valores de liberdade, paz, solidariedade, igualdade, respeito à diversidade, justiça, responsabilidade e bem comum”. No México a educação é “é meio fundamental para adquirir, transmitir e aumentar a cultura; é processo permanente para o desenvolvimento do indivíduo, transformação da sociedade e é fator determinante para a aquisição de conhecimentos e formação das pessoas com sentido de solidariedade social” (México, 2018). Os EUA, entre 2009 e 2010, criaram os Padrões Estaduais do Núcleo Comum (Common Core State Standards), já aceitos em 43 estados, com a finalidade de padronizar minimamente a educação nacional dadas as especificidades existentes no território americano. Com eles projetam o perfil de saída dos estudantes ao fim da escolaridade básica em matemática e artes da linguagem : eles devem estar preparados para a carreira pessoal e para a universidade, assim como para tornar os EUA mais competitivos academicamente.
Comparativamente o perfil de saída dos estudantes brasileiros, como se pode observar, é o mais recatado e o único fortemente preocupado com a qualificação do trabalhador em atenção às demandas mais gerais do mercado. A formação mais ampla do indivíduo, presente nas legislações da Argentina e México, considerada indispensável a uma sociedade justa, soberana e com identidade nacional, é canhestra em nossa LDB e em nossas Bases Nacionais Curriculares Comuns (BNCC). Mesmo a atenção em criar garantias de preparo e sucesso para as carreiras de nível médio e acesso aos cursos universitários, como faz o Common Core americano, é muito tímida ou inexistente. Se nos atentamos que a legislação americana exige que as instituições de ensino cuidem do “desenvolvimento do pensamento crítico, solução de problemas e habilidades analíticas que os estudantes precisam para ter sucesso” ficamos estarrecidos com a podadura pretendida pelos partidários do Movimento Escola Sem Partido que confundem pensamento crítico com doutrinação e manipulação.
Com a enorme pobreza da legislação brasileira há pouco que possamos esperar do futuro cidadão brasileiro, para além de mão de obra a ser explorada pelo capital. Estamos longe de educar para construção de uma sociedade justa, soberana e com identidade nacional, aprofundar a cidadania democrática, respeitar os direitos e as liberdades fundamentais e fortalecer o desenvolvimento do país como os argentinos. O egresso da escola básica brasileira é tão somente "jogado" no mundo como futura mão de obra, ingênuo e pouco instrumentado para desenvolver seus projetos pessoais no inferno que os outros constroem. É praticamente um cego em meio ao tiroteio.