Publicado na minha coluna no Brasil 247
https://www.brasil247.com/blog/a-universidade-esta-se-liquefazendo-vamos-abrir-os-olhos
As aulas presenciais nas universidades estão de volta
depois de pelo menos cinco semestres de ensino remoto e de levar o professorado
a entrar no mundo digital a toque de caixa, a despeito do pequeno apoio
financeiro e tecnológico oferecido pelo Estado. Cada professor em seu
isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 teve de se virar com os
seus aparelhos eletrônicos da forma que pôde. E houve de tudo, desde quem tivesse
usado as teclas ctrl+alt+del pela primeira vez, até quem tivesse
se achado um grande influenciador digital ou um George Lucas criando efeitos mirabolantes
para as suas aulas. O fato é que o aprendizado de todos foi grande, muito
embora se possa afirmar que a entrada da Universidade, em sua completude, no
mundo digital tenha sido postergada. Ela se fixou no ensino remoto e demonstrou
a sua inaptidão, má vontade ou incapacidade de oferecer uma educação a
distância de qualidade.
Os estudantes, grande quantidade nascida neste século XXI,
constituem um mundo à parte em se tratando de ensino remoto e, como disse Henry
Giroux na obra Teoria Crítica y
Resistencia em Educacion (Siglo XXI, 1992), com muita criatividade apreenderam
e dominaram de imediato as artimanhas desta modalidade de ensino, somando-as às
que desenvolvem com maestria no ensino presencial. Elas foram tão bem apreendidas
que houve Departamento obrigado a limitar o número de matrículas em disciplinas
para evitar diplomações em tempo recorde; enquanto as inscrições foram livres houve
quem requeresse matrícula em mais de vinte disciplinas em um único semestre.
Durante as aulas remotas os estudantes também aprenderam a fazer muitas coisas
ao mesmo tempo, desde namorar, fazer as unhas e cabelos, arrumar os armários,
produzir Reels para o Instagram, vídeos para o TikTok e outras coisas que até
Deus foi incapaz de pensar. Aprenderam, inclusive, a participar de aulas
remotas com vídeos desligados e, não duvido, que até com o som.
Esse comportamento estudantil, à distância ou presencial, nos
força a pensar sobre os seus significados. Ele é uma simples malandragem
juvenil ou contém elementos de maior profundidade e preocupação social? Duas
hipóteses são plausíveis.
Com base teórica em Giroux ele pode ser compreendido como força
para anular ou subordinar as formas docentes de dominação. O poder, afinal de
contas, não é unidimensional e tanto pode ser exercido como modo de dominação e
de resistência “ou mesmo como expressão de uma forma criativa de produção
cultural e social fora da força imediata de dominação” (Giroux,
1992, p. 145). Positivamente é a astúcia estudantil que consegue impedir o
reprodutivismo absoluto que Bourdieu afirmou haver nas instituições escolares; ela
vai além de uma simples vadiagem. Como produto cultural e social este
comportamento tende a se tornar longevo e ter consequências importantes, ao
naturalizar formas de agir, ser e estar na universidade. Ele é parte
substantiva da cultura escolar e estudantil.
Se, contudo, apoiamo-nos em Jameson para o compreender, outras
de suas facetas se tornam visíveis. Ele apresenta ares de um movimento que
refuta a seriedade e a racionalidade da instituição escolar, a afirmação das
manifestações formais. São “reações
específicas a formas canônicas da modernidade, opondo-se a seu predomínio na
Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações” (Jameson, 1985). Não
são mais simples resistências como Giroux as apreendeu, mas complexos
movimentos reativos que refutam a herança social recebida. As análises de Baumann,
revelam que são poderosas forças de liquefação da modernidade que trazem à boca
de cena o grande público que devora a moderna elite cultural, assiste aos
programas populares de TV e, “onivoramente”, consome diversas formas
de arte, populares e até intelectualizadas desde que contenham importantes rebaixamentos.
Debates e leituras profundas se tornam enfadonhas e as preferências recaem
sobre os debatedores e leitores que são engraçados e que aligeiram as coisas
para consumo rápido.
É preciso, todavia, esclarecer que numa época de
transição, as sólidas instituições e valores antigos tendem a se liquefazer, ou
como dizia Marx a se desmanchar no ar. É o novo se impondo sobre o velho, muito
embora ambos ainda possam conviver por bastante tempo. O primado da burguesia
na modernidade custou a liquidação das instituições do Antigo Regime feudal;
hoje é a voraz classe dominante deste capitalismo tardio que impõe à sociedade o
individualismo mais radical e fragmentador, a liquidação dos tribunais da razão
e a superação da modernidade cheia de amarras que não mais lhe convém.
O território universitário de hoje, onde tais estratégias coletivas
e individuais vicejam, além de fluído, está bastante próximo do mundo do
pastiche típico da pós-modernidade, no qual a produção acadêmica se torna
neutra, perde a combatividade de antes e a originalidade; o mesmo ocorre nas
artes em geral, com destaque para o que acontece na música e artes plásticas. Tudo
ou quase tudo já se encontra pronto e à mão no Google, Wikipédia e nos
tutoriais do YouTube. O pastiche reina. Tudo
é imitável e a prática acadêmica se torna neutra, sem graça e sem combatividade,
“é uma fala em língua morta”, nos dizeres de Jameson. Segundo o Google, somente
na WEB há mais de 14 páginas com aproximadamente 138 milhões de
resultados para trabalhos acadêmicos prontos, gratuitos ou com preços módicos.
Nas universidades os professores mais modernos e inflexíveis e
até o ministério público se mostram sem vontade ou forças para deter os avanços
do pastiche. Dialeticamente, elas e eles também se tornam outras e outros,
alinham-se com a ordem social emergente do capitalismo tardio para alegria dos
conservadores e da direita politicamente organizada. Os estudantes e
simpatizantes empurram elas e eles em direção ao futuro de um mundo globalizado
com astúcias cada vez mais novas, tirando proveito delas e até os forçando a se
abdicarem de funções sociais herdadas da modernidade; tudo isto com muitas
dancinhas no TikTok ao som do funk e do sertanejo. A universidade iluminista em processo de
liquefação vai se tornando outra e diferente.
A universidade brasileira vai sendo impelida a reassumir a
condição de grande escola de diplomação de profissionais de nível superior sem
compromissos com a ciência. Estamos sendo forçados a voltar à condição de
compradores de saberes produzidos alhures. Lyotard em sua obra A Condição
Pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, em tom quase profético já
chamava a nossa atenção para a monopolização da produção de saberes pelos
países avançados e da disposição deles de escamotear ou sonegar tais saberes
aos países periféricos:
As sociedades
periféricas só terão pleno acesso a eles se os respectivos governos ou as
empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes
fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de
pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o
alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era
pós-industrial (Lyotard,
2009, p. 126).
As reformas das universidades brasileiras e latino-americanas dos
anos 1980 para cá já traduzem os interesses destes países. inspiradas no
Processo de Bolonha e no que deriva delas, com grande financiamento do Banco
Santander, como por exemplo o Espaço
Comum de Ensino Superior da União Europeia, América Latina e Caribe (ECES –
UEALC) submetem as universidades da região a determinados parâmetros e
indicadores de qualidade definidos pelos países centrais e ao que está sendo
chamado de sociedade do conhecimento. Na divisão internacional de produção de
conhecimentos que vai se desenhando, reserva-se para nós, brasileiros e latino-americanos
o papel de compradores de conhecimentos de alta complexidade e vendedores de
conhecimentos básicos, da mesma forma como nos tornamos produtores e vendedores
de commodities.
É preocupante a inexistência
de reações conscientes e organizadas a essa liquefação da modernidade. De certa
forma assistimos bestializados aos acontecimentos e às surpreendentes novidades
em todos os setores da vida social como se fosse uma simples fatalidade e não
como sendo expressão da mais importante e abrangente luta de classe em escala
planetária.
Quando abrirmos os olhos já
será tarde.
Il est désolant!
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