25.5.22

A universidade está se liquefazendo. Vamos abrir os olhos?

Publicado na minha coluna no  Brasil 247

https://www.brasil247.com/blog/a-universidade-esta-se-liquefazendo-vamos-abrir-os-olhos



As aulas presenciais nas universidades estão de volta depois de pelo menos cinco semestres de ensino remoto e de levar o professorado a entrar no mundo digital a toque de caixa, a despeito do pequeno apoio financeiro e tecnológico oferecido pelo Estado. Cada professor em seu isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 teve de se virar com os seus aparelhos eletrônicos da forma que pôde. E houve de tudo, desde quem tivesse usado as teclas ctrl+alt+del pela primeira vez, até quem tivesse se achado um grande influenciador digital ou um George Lucas criando efeitos mirabolantes para as suas aulas. O fato é que o aprendizado de todos foi grande, muito embora se possa afirmar que a entrada da Universidade, em sua completude, no mundo digital tenha sido postergada. Ela se fixou no ensino remoto e demonstrou a sua inaptidão, má vontade ou incapacidade de oferecer uma educação a distância de qualidade.

Os estudantes, grande quantidade nascida neste século XXI, constituem um mundo à parte em se tratando de ensino remoto e, como disse Henry Giroux na obra Teoria Crítica y Resistencia em Educacion (Siglo XXI, 1992), com muita criatividade apreenderam e dominaram de imediato as artimanhas desta modalidade de ensino, somando-as às que desenvolvem com maestria no ensino presencial. Elas foram tão bem apreendidas que houve Departamento obrigado a limitar o número de matrículas em disciplinas para evitar diplomações em tempo recorde; enquanto as inscrições foram livres houve quem requeresse matrícula em mais de vinte disciplinas em um único semestre. Durante as aulas remotas os estudantes também aprenderam a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, desde namorar, fazer as unhas e cabelos, arrumar os armários, produzir Reels para o Instagram, vídeos para o TikTok e outras coisas que até Deus foi incapaz de pensar. Aprenderam, inclusive, a participar de aulas remotas com vídeos desligados e, não duvido, que até com o som.

Esse comportamento estudantil, à distância ou presencial, nos força a pensar sobre os seus significados. Ele é uma simples malandragem juvenil ou contém elementos de maior profundidade e preocupação social? Duas hipóteses são plausíveis.

Com base teórica em Giroux ele pode ser compreendido como força para anular ou subordinar as formas docentes de dominação. O poder, afinal de contas, não é unidimensional e tanto pode ser exercido como modo de dominação e de resistência “ou mesmo como expressão de uma forma criativa de produção cultural e social fora da força imediata de dominação” (Giroux, 1992, p. 145). Positivamente é a astúcia estudantil que consegue impedir o reprodutivismo absoluto que Bourdieu afirmou haver nas instituições escolares; ela vai além de uma simples vadiagem. Como produto cultural e social este comportamento tende a se tornar longevo e ter consequências importantes, ao naturalizar formas de agir, ser e estar na universidade. Ele é parte substantiva da cultura escolar e estudantil.

Se, contudo, apoiamo-nos em Jameson para o compreender, outras de suas facetas se tornam visíveis. Ele apresenta ares de um movimento que refuta a seriedade e a racionalidade da instituição escolar, a afirmação das manifestações formais.  São “reações específicas a formas canônicas da modernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações” (Jameson, 1985). Não são mais simples resistências como Giroux as apreendeu, mas complexos movimentos reativos que refutam a herança social recebida. As análises de Baumann, revelam que são poderosas forças de liquefação da modernidade que trazem à boca de cena o grande público que devora a moderna elite cultural, assiste aos programas populares de TV e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, populares e até intelectualizadas desde que contenham importantes rebaixamentos. Debates e leituras profundas se tornam enfadonhas e as preferências recaem sobre os debatedores e leitores que são engraçados e que aligeiram as coisas para consumo rápido.

É preciso, todavia, esclarecer que numa época de transição, as sólidas instituições e valores antigos tendem a se liquefazer, ou como dizia Marx a se desmanchar no ar. É o novo se impondo sobre o velho, muito embora ambos ainda possam conviver por bastante tempo. O primado da burguesia na modernidade custou a liquidação das instituições do Antigo Regime feudal; hoje é a voraz classe dominante deste capitalismo tardio que impõe à sociedade o individualismo mais radical e fragmentador, a liquidação dos tribunais da razão e a superação da modernidade cheia de amarras que não mais lhe convém.  

O território universitário de hoje, onde tais estratégias coletivas e individuais vicejam, além de fluído, está bastante próximo do mundo do pastiche típico da pós-modernidade, no qual a produção acadêmica se torna neutra, perde a combatividade de antes e a originalidade; o mesmo ocorre nas artes em geral, com destaque para o que acontece na música e artes plásticas. Tudo ou quase tudo já se encontra pronto e à mão no Google, Wikipédia e nos tutoriais do YouTube. O pastiche reina.  Tudo é imitável e a prática acadêmica se torna neutra, sem graça e sem combatividade, “é uma fala em língua morta”, nos dizeres de Jameson. Segundo o Google, somente na WEB há mais de 14 páginas com aproximadamente 138 milhões de resultados para trabalhos acadêmicos prontos, gratuitos ou com preços módicos.  

Nas universidades os professores mais modernos e inflexíveis e até o ministério público se mostram sem vontade ou forças para deter os avanços do pastiche. Dialeticamente, elas e eles também se tornam outras e outros, alinham-se com a ordem social emergente do capitalismo tardio para alegria dos conservadores e da direita politicamente organizada. Os estudantes e simpatizantes empurram elas e eles em direção ao futuro de um mundo globalizado com astúcias cada vez mais novas, tirando proveito delas e até os forçando a se abdicarem de funções sociais herdadas da modernidade; tudo isto com muitas dancinhas no TikTok ao som do funk e do sertanejo.  A universidade iluminista em processo de liquefação vai se tornando outra e diferente.

A universidade brasileira vai sendo impelida a reassumir a condição de grande escola de diplomação de profissionais de nível superior sem compromissos com a ciência. Estamos sendo forçados a voltar à condição de compradores de saberes produzidos alhures. Lyotard em sua obra A Condição Pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, em tom quase profético já chamava a nossa atenção para a monopolização da produção de saberes pelos países avançados e da disposição deles de escamotear ou sonegar tais saberes aos países periféricos:

As sociedades periféricas só terão pleno acesso a eles se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial (Lyotard, 2009, p. 126).

As reformas das universidades brasileiras e latino-americanas dos anos 1980 para cá já traduzem os interesses destes países. inspiradas no Processo de Bolonha e no que deriva delas, com grande financiamento do Banco Santander, como por exemplo o Espaço Comum de Ensino Superior da União Europeia, América Latina e Caribe (ECES – UEALC) submetem as universidades da região a determinados parâmetros e indicadores de qualidade definidos pelos países centrais e ao que está sendo chamado de sociedade do conhecimento. Na divisão internacional de produção de conhecimentos que vai se desenhando, reserva-se para nós, brasileiros e latino-americanos o papel de compradores de conhecimentos de alta complexidade e vendedores de conhecimentos básicos, da mesma forma como nos tornamos produtores e vendedores de commodities.  

É preocupante a inexistência de reações conscientes e organizadas a essa liquefação da modernidade. De certa forma assistimos bestializados aos acontecimentos e às surpreendentes novidades em todos os setores da vida social como se fosse uma simples fatalidade e não como sendo expressão da mais importante e abrangente luta de classe em escala planetária.

Quando abrirmos os olhos já será tarde.

Il est désolant!





4.5.22

Educar é amar as nossas crianças e jovens e impedir que sejam expulsos do nosso mundo.

 


É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, diz um ditado cheio de sabedoria corrente na África. Sábio por quê? Porque concebe a educação de alguém, quem quer que seja, como um processo coletivo, inclusivo e multidisciplinar; porque atribui a responsabilidade de educar as crianças e jovens a todos os membros da aldeia de modo a que cada um ensine o que sabe.  O sucesso ou o insucesso educacional é de responsabilidade coletiva.

Nós, os urbanos, ao contrário, somente nos responsabilizamos pela educação dos nossos filhos, mesmo assim se não vivemos em situação de vulnerabilidade social. No Brasil de hoje, grande quantidade de crianças e jovens vivem nesta situação e têm os seus processos educativos prejudicados. E isto não é de hoje. Desde o período colonial tem sido assim. As crianças, com as suas relações familiares ou comunitárias esgarçadas, passam a viver amizades e parcerias instáveis e inseguras nas ruas, em absurdas situações de pobreza e isolamento social. Atualmente mais de 40% de crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em situação domiciliar de pobreza. São 17,3 milhões de crianças e jovens vivendo com rendimentos mensais domiciliares per capita de até meio e até um quarto de salário mínimo, segundo informes da Agência Brasil. Vivem fora de uma rede de proteção social e educacional tentando conseguir onde podem os elementos materiais de sobrevida até o dia seguinte. Perambulam pelas ruas sozinhos ou em grupos e atemorizam quem passa por eles.

Essa situação de vulnerabilidade de milhares de crianças e jovens é extremamente preocupante, demanda eficazes políticas sociais e esforços de muitos indivíduos, instituições, fundações e cidades. Precisa ser forte o combate à desigualdade que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

As redes escolares têm sido pressionadas a dar respostas a este problema. É comum que lhes atribuam poderes de afastar o contingente de vulneráveis das ruas com oferecimento de ensino de tempo integral. A Meta 6 do Plano Nacional de Educação (2014-2024), por exemplo, visa “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” até o fim da vigência do Plano. Contudo, supondo que tal meta seja alcançada há ainda a perguntar: todas as crianças e jovens receberão uma educação de qualidade ministrada por docentes bem qualificados, com valor de uso e troca? Muito embora a Meta 7 do PNE busque “Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir [boas] médias nacionais” estamos sem garantias efetivas de que a educação de qualidade com valor de uso e troca seja alcançada ainda nesta década.

A crise política e institucional que vivemos tem impedido o desenho de um horizonte alvissareiro e pleno de boas novas para esta juventude com vida provisória e em suspensão, como Frigotto (2020) a adjetivou. Desde 2016, quando ocorreu o golpe que promoveu o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, os seis ministros que ocuparam a pasta da educação nas gestões dos presidentes Temer e Bolsonaro pouco ou nada fizeram em seu favor. As escolas, em geral, nem avançaram no oferecimento de ensino de tempo integral e tampouco melhoraram significativamente a qualidade da educação oferecida.

Nenhum dos seis ministros sequer fez algum tipo de chamado às famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.  para constituir uma rede de proteção social e educacional para as nossas crianças e jovens. Eles antes distribuíram verbas do MEC aos prefeitos da mesma religião, compraram kits robótica para escolas sem água e computadores... (Folha de São Paulo, 2022) e deixaram crescer a onda que culpa e criminaliza a pobreza. Cada vez mais a sociedade exige do Estado ações para reduzir a maioridade penal, promover as “guerras às drogas”, aparelhar tropas de choque militar, encarcerar em massa e militarizar as escolas, como se tais ações pudessem atingir a raiz do problema, a desigualdade social que castiga o país (Andrade, 2018).

O envolvimento das famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.. é o que pode nos restituir a educação solidária e coletiva como a das aldeias africanas. A escola por si só é incapaz, mesmo que seja de tempo integral. É indispensável a existência de espaços fora de seus muros que favoreçam processos multidisciplinares, sentido de coletividade e inclusão. Se as prédicas religiosas se tornam mais educativas, menos escatológicas e submissivas já ajudariam bastante. A mídia em geral também tem condições de contribuir com temas relevantes para a promoção humana em lugar das fofocas e outras matérias de consumo fácil e alienante; as letras e belas artes também cumpririam papel relevante contribuindo para a superação da realidade transformada em pura aparência (estética, fetichizada e libidinizada), um “repositório de imagens e de simulacros”, como Jameson (1997) a descreveu.

A ação cooperativa e consciente destes agentes educativos seria como uma grande cruzada em favor da educação das nossas crianças e jovens. As cidades inteiras, com os seus agentes educativos já nomeados estariam educando as nossas crianças e jovens ao oferecer tamanho apoio ao trabalho docente feito no interior das escolas.

Hanna Arendt, no texto em que discute a Crise na Educação,1961, lembra-nos que educar é amar as nossas crianças, evitando que sejam expulsas do nosso mundo,  fiquem entregues a si próprias e deixem de ter possibilidade se prepararem para a tarefa de criação de um mundo melhor e imprevisto por nós.

Divagando

  A rigor a esquerda latino-americana é radicalmente contra o neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 para cá é um belo exemplo d...