31.5.21

Escolas militarizadas é o que queremos?

 



A ordem unida que se tornou viral na Internet.

 

Zacarias Gama[1]

 

 

Vazou e viralizou o primeiro vídeo registrando o que se passa no pátio da escola Cívico-Militar General Abreu na cidade do Rio de Janeiro. À frente do alunado em ordem unida um militar levava-o repetir aos gritos: "Muitos querem, mas não podem / Nós queremos e podemos / Nós somos nós e o resto é o resto / Brasil acima de tudo, abaixo de Deus”. A viralização foi inevitável e imediata, assim como os abalos que promoveu na sociedade. Até então as escolas militarizadas eram fenômenos distantes que deveriam reproduzir o modelo consolidado dos colégios militares existentes sob a responsabilidade do Exército, Aeronáutica e Marinha

As escolas militarizadas como a General Abreu são administradas pela Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, têm rígida disciplina militar e padronização visual, ensino de civismo e constantes ordens unidas. Há estudos encomendados pela Revista Brasileira de Política e Administração da Educação demonstrando o impacto de tal gestão nos projetos político-pedagógicos das escolas públicas e a subordinação deles às concepções de mundo da corporação militar gestora. Muitos destacam a mescla de interesses públicos e privados na gestão delas, das secretarias de educação e de segurança pública, e grande quantidade flagra o caráter seletivo, elitista e dispendioso de tais escolas face à exigência de doações espontâneas” e fardamentos caros.  

O lamentável vídeo viralizado nas redes sociais é emblemático e coloca a necessidade de reações críticas face o combate de conservadores e reacionários ao que chamam de “marxismo cultural” e “ideologia de gênero”. Dois movimentos tornaram-se fortes neste sentido: o Movimento Escola Sem Partido e o movimento pela militarização das escolas que já somam 120 em todo território nacional. O Movimento Escola Sem Partido advoga que os professores deixem de aproveitar da audiência cativa dos estudantes para promover opiniões e interesses próprios, assim como as suas preferências ideológicas, religiosas, políticas, morais, partidárias e de gênero; que não façam propaganda de políticas e partidos nem incitem a participação em atos públicos ou passeatas; enfim, que sejam neutros em questões políticas, socioculturais e econômicas. Outros setores do bolsonarismo, liderados pelo próprio presidente da República, defendem a militarização das escolas como modelo a ser seguido pela escola pública brasileira. A subsecretaria criada com a finalidade de implantá-las, tem-nas como “modelo de escolas de alto nível” e espera que sigam os padrões de ensino dos colégios militares dirigidos pelo Exército, Marinha e Aeronáutica. Experiências isoladas em alguns estados forneceram as bases para serem apresentadas como política a ser adotada em todo o país. Atualmente já existem 120 escolas públicas administradas Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, a maioria no estado de Goiás.

Não há, porém, uma teoria pedagógica que as possam nortear e unificar. Ou melhor, é nítida em todas elas a construção pragmática de uma prática pedagógica caracterizada pela multiplicidade de processos, diferentes origens e locais, repetições, imitações, aplicáveis em distintos campos que se impõe para responder às exigências de conjuntura do momento bolsonarismo que a sociedade vive. O objetivo de todas é tornar hegemônica a concepção de mundo do bolsonarismo.

Na história das ideias pedagógicas nada existe à semelhança nem nas matrizes pragmáticas fornecidas por John Dewey e Anísio Teixeira. Menos ainda entre os românticos idealistas, tais como J. F. Herbart (1776-1841) e Auguste Comte  (1798 – 1857).  Herbart foi primeiro a formular uma teoria pedagógica que separasse a instrução da educação. Em sua visão a instrução deveria unicamente aperfeiçoar a bagagem adquirida no âmbito familiar, social e religioso (Gama, 2017). Ele atribuía grande importância à disciplina escolar para a autodisciplinação, isto é, para o desenvolvimento da competência de “observar e retificar durante todo o processo de educação a relação entre uma deformação e a moral”. Auguste Comte propôs uma pedagogia positiva, mas jamais imaginou separar a educação da instrução. O que reivindicava era uma educação em bases científicas adaptada às demandas da modernidade de modo a superar as práticas pedagógicas essencialmente teológicas, metafísicas e literárias. O ensino das ciências em sua proposta seria a base de uma educação geral verdadeiramente racional. Seu objetivo seria a formação de cidadãos capazes de servir à família, à pátria e à humanidade, tendo o “Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim". Aqui no Brasil, a Reforma Benjamim Constant (1890), em plena República dos Marechais, aplicou ao ensino nacional os princípios de Comte cuidando para sobrepujar o currículo das escolas do Império mediado pela religião cristã; o currículo republicano seria pelas ciências. É interessante observar que tanto Herbart quanto Comte, contemporâneos das revoluções burguesas da primeira metade do século XIX, buscaram formas educacionais que promovessem a formação de um indivíduo novo para uma nova sociedade, moderna e progressista. Não há registros de que tenham pensado em militarizar as escolas, promover o aprendizado da obediência, inculcar valores tidos como importantes para determinada classe ou fragmentos sociais. Ambos sempre estiveram distantes de práticas autoritárias de embotamento dos jovens quando buscam construir as suas próprias personalidades. Roupas de determinadas cores ou estilos, cortes de cabelo padronizados, unhas sem pinturas e no tamanho expresso em regulamentos nunca estiveram presentes em suas formulações teóricas. O conceito de disciplina escolar em ambos era necessário e indispensável, mas para a autodisciplinação e obtenção “em toda parte do grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme as exigências de nossas verdadeiras necessidades”. Nenhum jamais pensou na docilização dos corpos e na obediência incondicional.

 O que se assiste no vídeo em questão deturpa profundamente as propostas verdadeiramente pedagógico-educacionais e permite aproximar o que se vê da economia e práticas de docilização dos corpos tal como enunciou Michel Foucault (Vigiar e Punir, 1999). Em ordem unida, conforme se pode ver, o que os estudantes praticam na Escola Cívico-Militar General Abreu é a disciplinação de corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. São aumentadas as suas forças físicas em termos de utilidade e diminuídas em termos políticos de contestação e transformação. Faz-se da potência dos corpos uma relação de sujeição estrita. Nas palavras de Foucault: “estabelece-se no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”.

A escola militarizada, bem ao gosto do presidente Bolsonaro e de setores conservadores e reacionários, se esmera para tornar dóceis os jovens, designar-lhes os lugares na sala de aula e as distancias que os separam dos outros praticamente condicionando-os com abnegação aos seus lugares sociais. Antecipa-se os seus posicionamentos no mundo do trabalho, a aceitar com docilidade o que lhes reserva o metabolismo do capital. O processo de disciplinação tampouco esmorece a vigilância geral e individual, conferindo as presenças, a aplicação às tarefas escolares e a qualidade delas, comparando os estudantes entre si, classificando-os conforme as suas habilidades; acompanhando os seus estágios de aprendizagem.

Não foi por acaso que a sociedade assistiu estarrecida ao vídeo. O que se viu foi o sequestro da escola pública democrática, gratuita e laica pela ordem militar e uma ordem unida para a obediência cega. Ficou chocada com a transformação da escola pública em um quartel, que sujeita os seus filhos aos rigores dos regulamentos de disciplina militar e os transformam em sujeitos acomodados à hierarquia e obedientes aos comandos que vêm do alto.

Uma palavra de Paulo Freire vem a calhar neste momento: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.

 

 

 

 



[1] Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS). Membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas - LPP


22.5.21

A hora e a vez dos coletivos de luta: um novo Brasil é possível

 


Zacarias Gama


O filósofo chileno, Wladimir Safatle, professor titular da Universidade de São Paulo, no artigo “Uma revolução molecular assombra a América Latina”, publicado no jornal El País, na edição de 19 de maio de 2021, apresenta-nos a síntese das mediações que construiu a partir de uma visão de totalidade do que ele chama de “insurreições não centralizadas em uma linha de comando” e que adjetiva de “revolução molecular”. Tais insurreições, em sua perspectiva, tanto podem criar situações de explosão social quanto de “sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social”. A chamada Primavera Árabe, como afirma, marcou o início desta revolução molecular, à qual se somam outros eventos igualmente importantes: Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago. Para Safatle são “sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com seios à mostra nas redes sociais e greves gerais”.

Concordando com as suas análises, posso acrescentar que, de fato, o Brasil se situa nos limites dessa revolução molecular e que as Jornadas de Julho de 2013 foram manifestações dela. Da mesma forma que as demais sublevações populares pelo mundo afora, a característica comum a todas foi o uso das redes sociais e as bandeiras contra a corrupção, altos preços dos transportes públicos, má qualidade da educação, saúde etc. acima das negações de direitos, preconceitos, exploração do trabalho e outras pautas. Também a volatilidade dos atos deixou tontos os aparelhos de repressão, ao mobilizarem milhares de ativistas com uma rapidez jamais vista e os direcionar a praças e avenidas poucos usuais em manifestações anteriores.

A análise de Safatle é cristalina e oportuna, sobretudo, ao chamar a atenção para a latência da revolução molecular na América Latina e no Brasil e para a sua recente vitória no Chile, a qual culminou com o processo de constitucionalização de uma nova sociabilidade. No Brasil, ao contrário de outros lugares, a Jornadas de Julho 2013, muito embora tivessem caraterísticas difusas, acabaram por favorecer o caminho para o Golpe de 2016 que derrubou a Presidente Dilma Rousseff e permitiu “mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular” como afirma Safatle.

A conjuntura brasileira nessa primeira metade de 2021 é outra e muito diferente. A pandemia de Covid-19, a crise econômica que o país atravessa, o sequestro da política cidadã por grupos ligados à grande corrupção e as oscilações e hesitações dos Poderes Judiciário e Legislativo criam ambiente favorável a novas explosões sociais no Brasil às vésperas das eleições gerais de 2022 e posteriormente a elas. A sociedade nunca esteve tão distante dos partidos políticos tradicionais, tão banalizada a política e desmoralizadas as instituições da República.

Há, porém, novas formas de organização de muitos setores da sociedade em coletivos de lutas. A maioria ainda permanece invisível para grande parte da população, além de serem pouco estudados e compreendidos pelos nossos brilhantes sociólogos e cientistas políticos. São coletivos de lutas ou moléculas políticas, como Safatle se referiu a eles, que surpreenderam a todos nas Jornadas de Julho de 2013, lotaram as ruas e não se desapegaram dos seus telefones celulares. Existem aos borbotões no Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter, Telegram e nas universidades e comunidades populares aglutinando milhões; a eles poderia ainda agregar as torcidas antifascistas de clubes de futebol e entregadores de aplicativos... Organizam-se em defesa da educação popular e de melhores condições de trabalho, das populações indígenas, da LGTBQIA+ e das mulheres da classe trabalhadora contra a exploração do trabalho feminino e pela superação da sociedade de classes, das cotas raciais, da população negra; são também grandes apoiadores de jovens moradores de comunidades populares que guerrilham contra as mentiras da grande mídia Unidos, da saúde pública e educação de qualidade, habitações dignas etc. Eles constituem uma força político-social de enormes proporções e apontam inúmeras possibilidades no horizonte político, social, cultural, econômico e religioso do Brasil.

É paradigmática essa nova forma de organização popular que se contrapõe ao capital e à própria democracia burguesa. Seu horizontalismo organizativo, a recusa de se abrigar em partidos políticos e a crença na obsolescência do Estado são as suas características principais. Com fortes inspirações neo-anarquistas, que essencializam o Estado, a democracia parlamentar e a mídia conservadora, enxotaram as bandeiras de partidos políticos tradicionais e os repórteres das grandes emissoras de TV das multidões que lotaram as ruas nas Jornadas de Julho de 2013.

A ascensão do fascismo bolsonarista a partir de 2018 provocou, todavia, uma profunda mudança no cenário nacional. Muito embora suas hostes sejam propensas à volta do regime militar e a um golpe que perpetue o mandato do quadrunvirato exercido pelo presidente Jair Bolsonaro e seus três filhos, é inegável o refluxo que sofrem promovido pela inépcia governamental, negacionismo da ciência e das vacinas anti-covid19, falta de empatia diante da morte de quase quinhentas mil e da contaminação de milhões de pessoas, corrupção praticada pela “primeira família”, ligações com milícias... Como efeito, as últimas pesquisas de opinião pública constatam a disparada do ex-Presidente Lula da Silva nas intenções de votos e a elevação da rejeição do presidente Bolsonaro.

Safatle, diante da situação dramática que se desenha no Brasil, prevê as forças da reação agindo com intensidade em 2022, exigindo um golpe militar e defendendo o bolsonarismo contra a revolução molecular; ele pede que estejamos preparados para tanto.

É fácil acreditar e prever tal embate; difícil é prever o dia seguinte. Uma impensável vitória da reação poderia nos conduzir a um regime ditatorial hereditário de longa duração. A vitória da revolução molecular, com intensa participação dos coletivos de luta como força extraparlamentar contra o capital e consensos bem construídos poderia nos aproximar incrivelmente do que aconteceu e acontece no Chile. Ela poderá nos conduzir a uma nova sociabilidade com mais igualdade, justiça, segurança, liberdade, solidariedade e estima social.

É chegada a hora e a vez dos nossos coletivos de luta.

Divagando

  A rigor a esquerda latino-americana é radicalmente contra o neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 para cá é um belo exemplo d...