28.8.20

Quarenta anos depois da década perdida de 1980, compensamos os prejuízos?



Fila de livros antigos — Fotografia de Stock


Zacarias Gama

Os anos de 1980 foram de vitórias políticas que interromperam a ditadura militar que se abateu sobre o Brasil a partir de 1964 e culminaram com a promulgação da Constituição de 1988, chamada de Cidadã. Iniciou-se a partir dos últimos dias de governo do ditador General João Batista Figueiredo a Nova República e a redemocratização do país. O mesmo, todavia, não se pode dizer em relação à economia e à educação. A década de 1980 foi considerada como perdida: “das taxas de crescimento do PIB à aceleração da inflação, passando pela produção industrial, poder de compra dos salários, nível de emprego, balanço de pagamentos e inúmeros outros indicadores, o resultado do período é medíocre. No Brasil, a desaceleração representou uma queda vertiginosa nas médias históricas de crescimento dos cinquenta anos anteriores” (Marangoni, 2012).  A inflação média ao longo da década foi superior a 230% ao ano, em consequência dos gastos públicos, elevação do endividamento externo e aumento dos preços do petróleo durante o período ditatorial. Economicamente a década foi caracterizada pela inflação galopante, elevação do endividamento externo e defasagem industrial.


 Em relação à educação a situação foi igualmente de década perdida: somente 22.598 milhões de crianças e adolescentes tinham matrículas no Ensino Fundamental e a taxa de distorção idade-série era de 79,8% na 7ª série; no Ensino Médio as matrículas só atingiam a 2.189 milhões de estudantes; no Ensino Superior as 492.232 vagas oferecidas nas universidades públicas eram insuficientes para a população em idade universitária e havia apenas 27 programas de pós-graduação em todo território com a maior avaliação realizada pela Capes – nota 7 (IPEA, 2006). Nesta década, 25,5% dos brasileiros acima dos 10 anos não sabiam ler e escrever. O impacto da reforma educacional feita pela ditadura militar (Lei de Diretrizes e Bases nº 5.692 de 1971) para as escolas públicas de educação básica foi catastrófico por conta da determinação de conferir certificação profissional ao final do Ensino de 2º grau, o que sobrecarregou a grade curricular e dificultou o acesso de muitos ao Ensino Superior. A política educacional brasileira foi vinculada de forma direta às demandas da economia com prejuízo das preocupações pedagógicas. A formação de um corpo técnico de nível médio tornou-se central na reorganização educacional conforme os interesses ditatoriais.

A década de 1990 requereu, por conseguinte, consideráveis esforços teóricos e de investigação para superar a década anterior, a começar pela crítica à escola tradicional e às suas práticas avaliativas, ambas essencialmente reprodutivistas, autoritárias e excludentes. Neste sentido, foram importantes os estudos de Louis Althusser, Cristian Baudelot e Roger Establet, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Samuel Bowels e Herbert Gintis, Mariano Enguita, Dermeval Saviani e diversos outros, como inspirações e referências teóricas da intensa produção textual no Brasil.

As práticas avaliativas, fundamentalmente pautadas pelas teorias e práticas docimológicas e comportamentalistas, também foram amplamente criticadas. O destaque brasileiro cabe a Carlos Cipriano Luckesi que as criticou visceralmente e levou o professorado a aceitar a avaliação como ato amoroso e inclusivo, sem classificações e reprovações. A ordem avaliativa passou a ser acolher e qualificar com base em dados relevantes. A entrada em cena de outras teorias, sobretudo a Fenomenologia e a Gestalt, geraram outros formas de observar e avaliar os produtos escolares realizados pelos estudantes.

Mas, como bem observou Saviani (2013) ao estudar a escola tradicional e a escola nova, também aqui a vara foi curvada com muita força para o outro lado, sem que encontrasse um ponto de equilíbrio a partir do qual ficaria desenvergada.  Com a inflexão realizada, é verdade que a pedagogia tradicional teve o seu espaço reduzido, mas tal redução deu lugar a uma nova pedagogia que tenha sido capaz de melhorar os indicadores de qualidade da educação básica oferecida na rede pública de escolas? Quarenta anos depois, a resposta está longe de ser positiva. Muito embora sejam evidentes diversas melhorias no sistema nacional de educação, o Relatório do PISA 2018 destaca que muitos alunos ainda conseguem pontuação abaixo do nível mínimo em leitura, matemática e ciências” e que somente 1% dos alunos brasileiros obteve notas altas em matemática.

Por hipótese, a superação da pedagogia tradicional, considerada como cheia de vícios e nenhuma virtude, deixou de ser acompanhada de uma nova pedagogia e práticas avaliativas que pudessem levar os nossos estudantes “a compreender, usar, avaliar, refletir sobre e envolver-se com textos, a fim de alcançar um objetivo, desenvolver conhecimento e potencial, e participar da sociedade; formular, empregar e interpretar a matemática em uma série de contextos, o que inclui raciocinar matematicamente e utilizar conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas matemáticos para descrever, explicar e prever fenômenos;  envolver-se com as questões relacionadas com a ciência e com a ideia da ciência, como cidadão reflexivo; participar de discussão fundamentada sobre ciência e tecnologia, o que exige as competências para explicar fenômenos cientificamente, avaliar e planejar investigações científicas e interpretar dados e evidências cientificamente” (PISA 2018).

A nossa lerdeza para desenvolver uma nova pedagogia e instrumentos de avaliação adequados, em uma sociedade marcada pela desigualdade social, agrava-se ainda mais frente aos desafios trazidos pela revolução científico-tecnológica que vivemos. É imperativo que mundo da educação instrumentalize os nossos estudantes para que possam viver num mundo digitalizado no qual, a cada dia, as forças produtivas exigem menos trabalho vivo. Segundo dados do IBGE (2020), na comparação com o primeiro trimestre deste ano (2020), a taxa de desocupação subiu 1,1 ponto percentual e fechou o segundo trimestre em 13,3%. O percentual de desocupados chegou a 12,8 milhões de pessoas. O nível de ocupação da força de trabalho caiu 5,6 pontos percentuais frente ao trimestre anterior, atingindo 47,9%, o menor da série histórica. Em outras palavras, mais da metade da força de trabalho do Brasil está desocupada e cada vez mais com restrições de direitos trabalhistas.

Lamentavelmente, estamos longe de estar compensando as nossas perdas ao longo dos últimos quarenta anos. Estamos nos enredando nas teorias pós-modernas que individualizam e fragmentam tudo e todos e ainda propõem transformar as instituições escolares em organizações socais como se não houvesse diferenças entre as escolas e as montadoras de veículos, por exemplo. Em termos de avaliação da aprendizagem escolar o que foi produzido a partir de Luckesi é deveras incipiente e idealista. As teorias que campeiam hoje, vem de fora. Este é o caso de Phillipe Perrenoud que coloca a avaliação entre a lógica de seleção e uma formatividade conforme os anseios dos neoliberais e em atenção às demandas imediatas do mercado de trabalho. 

Como tantas outras teorias também esta condena eternamente os jovens ao trabalho como se nascessem exclusivamente para ele. 

21.8.20

Uma reflexão possível a partir da obra “Crer e Destruir” de Christian Ingrao






Who Were the Hitler Youth? | History Hit
Zacarias Gama[1]

Nestes tempos de bolsonarismo o livro de Christian Ingrao – Crer & Destruir, os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Zahar, 2015), é assaz aterrorizante como expressou o Wall Street Journal. Ingrao é ligado ao Centro Nacional de Pesquisa Científica e foi diretor do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), ambas instituições são francesas. Sua pesquisa para obter o grau de Doutor na Fundação para a Promoção da Ciência e Cultura, em Hamburgo, é importante, original e relata como oitenta jovens inteligentes e cultos, formados pelas melhores universidades alemãs se deixaram cooptar pela ideologia nazista e pela ideia de extermínio em massa. Ele reconstrói os trajetos de economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas que escolheram o lado do mal.  Seus objetivos: “compreender em que medida as molduras da experiência vivida foram capazes de modelar seu sistema de representações” e “analisar o nazismo como um sistema de crenças ‘desangustiante’, cuja coerência entre discursos e práticas fosse apontada pelas ferramentas de análises e se encarnasse em percursos e carreiras” (p.11). Ou, em outras palavras, “como esses homens fizeram para crer e para destruir”. O que une os sujeitos investigados é o fato de terem participado de campanhas de repressão no Leste Europeu, de matanças e do genocídio de judeus, eslavos, latinos, ciganos e homossexuais.

A relevância deste estudo para entendermos a ascensão do bolsonarismo e a sua chegada ao Palácio do Planalto é grande. À semelhança do que Ingrao investigou, aqui também entre nós, inúmeros jovens com carreiras promissoras em diversos campos do conhecimento humano e diplomas referenciados socialmente se tornaram os pilares de sustentação de um governo que a cada dia se mostra mais autoritário, antidemocrático, impopular, homofóbico, aporofóbico, machista e fundamentalista, e nada faz para conter o genocídio de jovens pretos e pobres. A pergunta que fez, também vale para nós: como promissores e bem formados jovens podem apoiar este governo e contribuir para destruir os avanços democráticos conquistados nos últimos anos, restringir direitos sociais e transferir recursos naturais e riquezas socialmente produzidas para as mãos de grandes exploradores internacionais?

Ingrao faz as suas apostas nos sentimentos de angústia de muitos jovens alemães típicos do período entreguerras, que os levaram a determinados engajamentos políticos, a ver na formação elitista das SS os meios para se distanciarem das hordas ignaras e a entrar no jogo político-institucional, a partir do qual contribuiriam para justificar científica e ideologicamente as atrocidades do regime hitlerista. Angústia e representações das organizações paramilitares nazistas seriam os motivos maiores da adesão à construção do III Reich, aos quais eu ainda acrescentaria: ambição e busca de poder e prestígio social.
O autor da obra enquanto se fixa em sentimentos de angústia e trajetórias não se pergunta, entretanto, quem eram estes jovens, quais as suas concepções de mundo antes da chegada ao poder do Partido Nacional Socialista, que capacidade tinham de realizar elaboradas mediações a partir da realidade concreta. Considera-os como jovens formados em níveis superiores nas melhores universidades e analisa os seus percursos e engajamentos. Seu ponto de partida é a sua surpresa ao constatar que economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas contribuíram para “cientificizar” e justificar os horrores praticados pelas Waffen-SS.

A participação e o engajamento de indivíduos com boa formação superior seja como apoiadores ou quadros, não é, todavia, uma exclusividade das SS ou do nazismo. A história nos fornece muitos outros exemplos ao longo de todo tempo da cristandade. Aqui entre nós poderíamos recorrer a diversos outros, a começar pelos intelectuais orgânicos das ditaduras de Vargas e Civil-militar de 1964-1985. Minha hipótese é que o comprometimento com regimes autoritários está diretamente ligado à construção de uma dada concepção de mundo. Vejamos.
O ser humano, diferente de outros seres que agem conforme as suas inscrições genéticas, é um ser aprendente a partir de seus primeiros momentos de vida e, como diz Lukács, as suas apreensões do mundo externo das objetividades se dá imediatamente e na imediaticidade insuprimível sob forma de coisa. Paulo Freire diria que neste estado os indivíduos têm uma consciência intransitiva mítica, mágica e ingênua. São limitados em suas capacidades de apreensão do real, utópicos, irracionais e fanáticos. A consciência deles é em si e por si, na mais pura formalidade. Eles vivem em um mundo de representações comuns, cujos fenômenos penetram em suas consciências e os fazem ver o mundo com movimentos próprios e naturais. Em tal mundo, subordinam-se a manipulações de outros.  São incapazes de indagar, descrever e, portanto, de captar a essência dos fenômenos. Paulo Freire se dispôs a ajudar o homem simples e analfabeto a superar a sua compreensão de mundo, a inércia, a passividade e a alienação. Seu objetivo era que desenvolvessem uma consciência crítica, isto é, um nível avançado de consciência que tudo submete à análise e crítica, porque, afinal, o que é verdadeiro hoje pode deixar de sê-lo amanhã.  Contudo, como afirmei em outra oportunidade (Gama, 2020), não se chega a este estado de modo abrupto, há que haver esforço, um processo de conscientização no qual vão se desenvolvendo os graus de tomada de consciência. É imperativo fazer mediações e mais mediações diante do real.

Sem tal esforço, isto é, sem mediações complexas e cada vez mais abrangentes, os indivíduos, quando muito, tendem a atingir somente um estágio de consciência um pouco mais elevado no qual as respostas continuam contaminadas de teor mágico, porquanto se encontram distantes de apreenderam a essência dos fenômenos e as suas múltiplas determinações. Determinismo e fatalismo também permanecem presentes, daí que os fenômenos continuam sujeitos a leis naturais e às relações de causa e efeito; são poucas ou nenhuma as alternativas reais. Nada acontece fora de seu tempo, a vida de todas as coisas vivas ou inanimadas está subordinada à lógica criativa divina.

O processo educacional escolarizado deveria ser importante para todos chegarem ao estado de desalienação, mas pela própria complexidade na qual de funda, é incapaz de garantir certificados a todos que participam dele. Já houve quem tenha afirmado que a mesma escola tradicional do alvorecer do século XX formou Einstein e Hitler. E o porquê disto se deve aos movimentos contraditórios que caracterizam os processos escolares; a dialeticidade reinante, como já sabemos, tanto permite a formação de indivíduos reprodutores do status quo quanto de outros que o negam e o revolucionam. De igual modo, uns tantos completam os seus tempos escolares sem atingir os elevados níveis de consciência crítica ou de desalienação; outros tantos, apesar de tudo, alcançam na mesma trajetória escolar a superação das determinações e fatalidades fenomênicas, tornam-se sujeitos de suas histórias e da história da humanidade.
Com essa compreensão, fica relativamente fácil entender o porquê de existir economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas em estado de intransitividade ou transitividade crítica incompleta, na terminologia de Freire. O projeto Escola Sem Partido, felizmente vetado pelo Supremo Tribunal Federal, permitiria a existência exponencial de pessoas alienadas portadoras de diplomas de nível superior, bastando tão somente que as instituições de formação restringissem os conteúdos disciplinares a coisas em si, incapazes de serem compreendidos para além de si mesmos e, praticamente, sem relações com os demais componentes curriculares e com a realidade concreta.

Conheço diversos indivíduos com diplomas de cursos superiores que sustentam o bolsonarismo, a despeito de sua elevada rejeição social. O que fizeram para crer e o que fazem para destruir é resultante da modelagem dos seus sistemas de representações em níveis de consciências mítica e transitiva. É sintomático que concebam o atual presidente da República como um mito, isto é, como um ser com forças da natureza e aspectos gerais da condição humana.  As trajetórias que são capazes de seguir no interior do bolsonarismo variam conforme os seus sentimentos de angústia face ao que chamam de “marxismo cultural”, à corrupção e desrespeito aos cânones bíblicos. A ideia de construir um Brasil, sintetizada no lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, serve para demonstrar a imersão, alienação, imitação e idealismo utópico existentes. 

A mesma irracionalidade e o fanatismo que caracterizaram as Waffen-SS, distinguem o bolsonarismo e seus seguidores, apropriadamente chamados publicamente de bolsominions, em nítida alusão aos “minions”, que segundo a Wikipedia são personagens de uma animação cinematográfica, evoluídos de organismos aquáticos, unicelulares e amarelos, para seres com um único propósito: subserviência aos vilões mais malvados da história. 

Por último vale dizer que as trajetórias dos jovens alemães e brasileiros são difíceis de serem enquadradas em conceitos como o de oportunismo. Antes, eles se regem por suas concepções de mundo e encontram os seus lugares ao conectarem os seus saberes às demandas dos simpatizantes e eleitores do partido. Eles igualmente tendem a reprimir os oportunistas e não se abalam frente aos comandos de destruir.

Eles creem cegamente.



[1] Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ. Colaborador do PPFH.

13.8.20

2020: o ano que não vai à escola






A pandemia de Covid-19 está pressionando os sistemas públicos e particulares de educação a oferecer ensino remoto a distância. Mais de 28,6 milhões de estudantes da educação básica e 3,7 milhões da educação superior, em pesquisa realizada pelo Senado Federal passaram a ter aulas remotas (Senadorense, agosto de 2002). Aparentemente são números estonteantes que devem agradar a muitos políticos que prezam pelas formas utilitaristas mais antidemocráticas, que Stuart Mills certamente reprovaria. Mas, se olhamos de outra perspectiva, a realidade é perversa, sobretudo, com os estudantes mais pobres: 59,7% dos estudantes da educação básica e 44% da educação superior estão excluídos. Grande quantidade afirma não ter internet em casa e apenas 24% usam PC para receber os conteúdos postados; a maioria usa celulares, mas a pesquisa deixa de especificar se são pré-pagos ou pós-pagos e o tamanho dos seus pacotes de dados. 

Nesta mesma pesquisa chama a atenção a resposta expressamente subjetiva dos participantes quanto à qualidade das aulas: para 64% a qualidade diminuiu; aumentou para 8% e 22% afirmaram que permaneceu igual; 6% abstiveram-se. Como em todas pesquisas, nada ficaremos sabendo em que piorou, melhorou ou continua igual. É, entretanto, significativo que a maioria tenha atestado a diminuição da qualidade e isto é deveras preocupante porque, conforme demonstrei em texto anterior, a qualidade da educação básica e da educação superior no Brasil está muito aquém da qualidade desejada, como atestam os indicadores de qualidade da OCDE, utilizados pelo MEC, e da Clarivate Analytcs

Como se pode observar é forte o impacto da pandemia sobre a educação brasileira que, imediatamente aprofunda as desigualdades sociais existentes e rebaixa mais ainda a qualidade da educação brasileira. E pasmem: o governo federal nada faz a respeito. O novo ministro, o professor Milton Ribeiro, empossado como quarto ministro de educação deste malfadado governo, desde a sua posse em 16 de julho nenhuma palavra pronunciou a respeito desta grave crise educacional. A Presidência da República por sua vez, por opção, também fecha os olhos à morte de mais de 100 mil brasileiros e mais de 3 milhões de contaminados, preferindo uma falsa interpretação de humanitarismo ao enviar ajuda material ao povo do Líbano após a explosão no porto de Beirute. 
A sensatez no campo da educação começa a ser revelada pelos estudantes de vários estados brasileiros. O BBC News (10 agosto 2020) conversou com diversos e, segundo pensam a educação a distância, deveria ser “pensada com seriedade, não como paliativo ou improviso, como estamos fazendo, de qualquer maneira". Muitos estão chegando ao ponto de preferir a reprovação: “Não é que vou tomar bomba, eu só vou realmente fazer meu terceiro ano, ano que vem. Aprender de verdade para ter condições de fazer um Enem decente, digno". "Se eles não cancelarem essas aulas, eu vou reprovar de propósito. Não dá, mano, tá impossível estudar via internet". "No caso, não seria reprovar, seria fazer mesmo o segundo ano. A gente não está fazendo o segundo ano, nem sei o que a gente está fazendo. Todos os meus amigos estão com dificuldade, todos reclamam, ninguém está entendendo nada das matérias".

Não fossem as razões de sobrevivência das instituições particulares de ensino básico e superior, o melhor que poderia ser feito seria declarar inexistente o período letivo de 2020 até a suspensão do isolamento social. Nestas grandes férias escolares o MEC coordenaria a retomada das aulas presenciais sem prejuízos para os estudantes, desenvolveria plataforma digital para ações emergenciais e coordenadas e proporia um calendário acadêmico nacional para todos os estudantes de forma a garantir os seus prazos de conclusão e a aquisição de conteúdos de qualidade.

Mas isto, dependeria de vontade política social, o que não parece ser preocupação do atual governo federal: ele prefere passeios de moto e helicóptero nos finais de semana, assistir a partidas de futebol e até oferecer comprimidos de cloroquina às emas que habitam o jardim do Palácio da Alvorada.


Este ano, 2020, não tenho muita dúvida, entrará para a História, como sendo o ano que não foi à escola!


11.8.20

Paulo Freire: para ler a palavra e o mundo.


Paulo Freire – Caricaturas do Kim – Brasília/DF


Caricatura do Kim - Disponível no site: https://kimcartunista.com.br/2014/01/09/paulo-freire/



Introdução 
Paulo Regulus Neves Freire (1921-1997), era pernambucano da cidade do Recife. Nos anos duros da Ditadura Militar, por causa das suas ideias político-pedagógicas, trabalho em Angicos (RN), no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife - do qual foi um dos fundadores – e no Programa Nacional de Alfabetização (PNA) do governo federal a partir de 1963, foi preso em 16 de junho de 1964. Respondeu a inquéritos na Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPe), e no Quartel da 2ª Companhia de Guardas no Recife, sendo ainda intimado a depor em Inquérito Policial Militar na cidade do Rio de Janeiro. 
Forçado a se exilar do Brasil, inicialmente foi para a Bolívia (outubro de 1964) e depois para o Chile (novembro de 1964), Estados Unidos (1969), Suíça (1970) e África a partir de 1975. Em seu exílio, como ele próprio disse, deixou de ter uma mente paroquial, abrindo-se “a outras formas de estar sendo” (Ceccon e Oliveira in Araújo Freire, 2006)[3]. Faleceu em 2 de maio de 1997 no Hospital Albert Einstein em São Paulo de enfarte agudo do miocárdio. 
Ainda em vida obteve a consagração devida e foi, inclusive, indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 1995. Hoje é praticamente um mito nacional e internacional, uma referência obrigatória nos meios educacionais brasileiros. Sua obra é discutida em centros de estudos na Finlândia, África do Sul, Áustria, Alemanha, Holanda, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Aqui no Brasil, nomeadamente durante as duas gestões do governador Leonel Brizola, fundador dos CIEPs – centros integrados de educação pública – também chamados de brizolões, Paulo Freire teve dia comemorativo inscrito no calendário escolar e 381 escolas federais, estaduais, municipais e particulares pelo Brasil afora receberam o seu nome.
Um texto curto não daria conta de analisar toda a sua obra e importância sem correr o risco de ser laudatório. Esforcei-me para ser fiel ao campo da análise. Meu intento, primeiramente, restringiu-se ao período de sua produção teórica, situado entre 1959 e 1967, quando defendeu a sua tese de doutoramento – “Educação e Atualidade Brasileira”, e publicou o livro “A educação como prática de liberdade” pela Editora Paz e Terra. Meus objetivos são dois: examinar seu “método de alfabetização” e sua vinculação com a utopia nacional-desenvolvimentista elaborada no âmbito do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do qual faziam parte grandes intelectuais: Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nélson Werneck Sodré. 
A escrita deste texto ocorre em um momento difícil vivido pela sociedade brasileira. Está sendo assolada pela epidemia de covid-19, disseminada pelo novo coronavírus, e por um governo que se aproxima de forças reacionárias de matizes neofascistas que se mantém em estado de inércia diante de milhares de óbitos e milhões de contaminados. É parte desta mesma tragédia nacional o conjunto de denúncias e perseguições levadas a efeito por agentes públicos ao que está sendo denominado de “marxismo cultural”, isto é, um suposto plano para a dominação da ideologia marxista. As ideias e a obra de Freire não escapam a detrações e a tais perseguições. O próprio ex-ministro da Educação A. Weintraub (de 09/04/2019 a 19/06/2020) que certamente nunca o leu, de uma perspectiva rasteira e rancorosa afirmou que ele é “muito mais uma bandeira do que realmente uma referência tão importante assim. Vejo-o, nesse caso, como um bom adversário. Porque o sistema que ele montou é ruim, as falas dele são super confusas, o resultado é péssimo” (Bonin, 2020)[4]. Freire, contudo, nunca foi marxista ou comunista. Além das influências advindas de G. W. F. Hegel e, consequentemente do idealismo alemão, ele próprio reconheceu sua filiação epistemológica a Karl Mannheim (1893-1947), “sobretudo na ênfase que dá à necessidade de uma educação capaz de resguardar o homem contra o perigo de sua massificação” (Araújo Freire, 2006, p. 188). Freire, além de idealista, era cristão e durante os anos de exílio em Genebra trabalhou durante dez anos no Conselho Mundial de Igrejas (CMI). 
O desenvolvimento do presente texto é apresentado em duas partes. Na primeira, o objeto central de análise é o método de alfabetização que propôs e colocou em prática. O mesmo, entretanto, não é considerado como um simples conjunto de técnicas de leitura e escrita, porque isto implicaria em sua redução e o simplismo analítico impediria ressaltar sua proposta “antropológica, ética e política de resgate da vocação ontológica dos homens e das mulheres que, entre outras, se concretiza no direito de ler a palavra e o mundo” (Araújo Freire, 2006, p. 332). Na segunda, tomo como objeto as relações entre o pensamento pedagógico de Paulo Freire e a teoria do nacionalismo-desenvolvimentista brasileiro tão recorrente no período compreendido entre 1959 e 1964. Argumento que a sua posição se contrapõe à das elites da sociedade fechada e identificada com os matizes do populismo conservador que massifica, fanatiza e impede que os homens simples possam ser participantes e agentes do processo de transformação que ele considera fundamental; a educação que propunha era essencialmente transformadora e libertadora.  
O Método de Alfabetização.
Seu método de alfabetização, como ele próprio o caracterizou, funda-se no diálogo, ação, criticidade e participação dos sujeitos envolvidos. Como dizia: “o diálogo é o indispensável caminho”; mas não o diálogo verticalista arrogante, autossuficiente, desesperançoso e acrítico, o qual denominava de antidiálogo. Não é um simples método de alfabetização porquanto visa levar o alfabetizando à compreensão de seu papel como sujeito consciente e produtor de cultura, deixando de ser mero expectador e permanente objeto. O homem para Freire vive em um domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura. Como sujeito histórico e produtor de cultura, deve se tornar criador, recriador e capaz de produzir respostas aos desafios de seu meio e, ao mesmo tempo, objetivar-se a si próprio. Na sociedade elitista e fechada que denuncia e quer superar, estes homens simples, mas concretos, devem se libertar de suas crenças mitificadas e deixar de serem “comandados pela publicidade organizada, ideológica ou não” (Freire, 1976, p.43)[5]. Não podem mais estar submissos às “elites” e à manipulação populista que interpretam o mundo e lhes apresentam as tarefas de seu tempo em forma de receitas e prescrições, até porque quando as seguem acabam se afogando “no anonimato nivelador da massificação” e se rebaixam à condição de puro objeto. 
As situações existenciais características do método, visam, então, a ajudar o homem simples e analfabeto a suplantar sua compreensão de mundo ou, em outras palavras, o seu estágio de consciência mítica, mágica e ingênua, próprio da totalidade histórica que se quer superar. Estas situações desafiam os grupos de alfabetizadores e alfabetizandos a discutir as suas situações existenciais com o intuito de superarem a inércia, a passividade e a alienação, incluindo a necessidade de aprender a ler e a escrever (Freire, 1976)[6]
O domínio propriamente dito da escrita e da palavra corresponde, ao mesmo tempo, à decodificação da palavra escrita e a da situação existencial a partir de palavras geradoras – como tijolo, favela, arado, governo etc., decompostas em sílabas e famílias fonêmicas (ta-te-ti-to-tu). Com o domínio cognitivo da palavra e das famílias fonêmicas, os alfabetizandos adquiririam condições de compreender os mecanismos de formação das palavras, juntar sílabas e letras, formar novas palavras e até mesmo frases inteiras. As palavras geradoras provocariam novas discussões e níveis de consciência. A palavra “trabalho”, por exemplo, ao ser analisada como situação existencial, levá-los-iam a distinguirem as diferentes formas de trabalho, bem como a identificarem a importância do trabalho na ontocriatividade do homem. A estratégia subjacente sempre presume que os alfabetizandos desenvolvam processos de tomada de consciência dos problemas ético-políticos-sociais e contestem as históricas condições de submissão e de injustiças impostas secularmente. Eles deveriam não mais captar os fatos em sua exterioridade nem lhes emprestar poderes superiores aos quais devem ser dóceis. 
Neste ponto vale questionar o propósito de conscientização que o método contém: estaria ele se dispondo a situar as classes populares no epicentro das forças motrizes dos acontecimentos históricos? Conscientizar seria a base de um amplo movimento de conscientização de classe?
Em termos teóricos a obra em análise nos permite responder positivamente à primeira questão, muito embora Freire jamais tenha pensado fazer de seu método um instrumento de doutrinação política e sempre tenha admitido que a educação é um ato político. Ele próprio, mais de uma vez, foi enfático ao afirmar que ninguém politiza ninguém, da mesma forma que ninguém pode mediar por ninguém conforme Hegel deixou claro. Em sua opinião, os atos de politizar e/ou doutrinar são um desrespeito à pessoa humana. Quando se tenta fazê-lo ou se faz, já não se educa (Araujo Freire, 2006, p. 189). 
Ele sempre pensou a educação como prática da liberdade de opção e de interferência, como um ato de amor e coragem que não se impõe; que não teme o livre debate, a análise da realidade e a discussão criadora. Como ele escreveu: “à medida que um método ativo ajude o homem a se conscientizar em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por isso de sujeito, se instrumentalizará para as suas opções” (Freire, 1976, p. 120). Weffort, na apresentação que faz do livro “Educação como prática da liberdade” (1976, p. 15)[7], sublinha que, de fato, não pensava ideologizar ou propor palavras de ordem, não obstante tivesse clareza de que sua tarefa continha implicações políticas. Ele sempre soube que “seu campo é a pedagogia e não a política, e que não pode, como educador, substituir o político revolucionário interessado no conhecimento e na transformação das estruturas”. Qualquer orientação especificamente política, em seu entendimento, caberia aos políticos. 
Até a edição do livro “Educação como Prática da Liberdade” a conscientização transformadora de Paulo Freire, objetivamente, tem todo o seu interesse voltado para tirar da situação de submissão, imersão e passividade aqueles que ainda desconhecem a palavra escrita e permanecem submissos no mundo, num estado de inconsciência crítica. Entretanto, jamais pressupõe que os oprimidos passem à condição de opressores ou façam a luta de classe.  O que pretende é educar para a decisão, responsabilidade social e política com a criticidade possível numa sociedade historicamente determinada, caracterizada por certas formas de produção e relações sociais, na qual o Estado opera como instrumento da classe dominante, potencializando interesses particularistas e supremo regulador. É também um Estado contraditório na medida em que tanto contesta a “vocação natural das pessoas” de serem sujeitos e não objetos, e “o processo de democratização fundamental” em que a sociedade de sua época de situa. Pretende, pois, uma inversão do papel do Estado, o qual deixaria de ser um fim em si mesmo para ser subordinado e condicionado pela sociedade. A necessidade de um método de alfabetização e de conscientização tornar-se-ia estratégica para levar os homens a se tornarem sujeitos de sua historicidade; a começar pela percepção de que “os fundamentos da ordem que os minimizavam já não tem sentido”. (idem, 1976, p. 56). Sem alfabetização e consciência cada vez mais crítica, admite não ser possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade, em transição, intensamente cambiante e contraditória (idem, p. 57). Paradoxalmente o querido mestre não se situava à margem da institucionalidade na mobilização que faz e isto permitiu a Weffort (1976, p.22) questionar sua eficácia: “ao promover a mobilização através do Estado, o educador não estaria comprometendo, através dos resultados políticos de sua ação, seu próprio projeto de criticização da consciência popular?”.
A conscientização crítica do homem simples é, ainda assim, a grande meta, mas que significado conceitual Freire lhe dá? Estaria admitindo diferentes graus ou estados de consciência? A consciência crítica em perspectiva pode ser tomada como sinônimo de consciência de classe? 
Vejamos estas questões dentro dos limites aos quais estou circunscrito. Paulo Freire distinguia três momentos de consciência. A consciência intransitiva, o primeiro deles, é própria da totalidade histórica que denomina de “sociedade fechada” e à qual pertencem os homens simples das zonas fortemente atrasadas do país limitados em suas capacidades de apreensão do real. Nesta totalidade predomina a imersão, a alienação, a imitação de modelos externos e o idealismo utópico. Irracionalidade e fanatismo são características que identifica como sendo coloniais e puramente reflexas. Este momento, na perspectiva de Fichte e Hegel assumida por Freire, constitui a tese a ser superada; nele a consciência é em si e por si, na mais pura formalidade. A consciência transitiva, e ainda ingênua, em um segundo momento nitidamente antitético, se situa diante da totalidade na qual se intensificam a urbanização, industrialização e decadência da economia agrária e o “povo” começa a emergir ou a se desalienar descruzando os braços, renunciando à expectação e exigindo ingerência. Os interesses e preocupações populares transcendem à simples reprodução da existência material e espiritual, mas ainda há respostas de teor mágico na medida em que os homens simples continuam a apreender os fatos ou fenômenos a partir de sua exterioridade, sem penetrar em suas essências e abranger suas múltiplas determinações. O fatalismo que caracteriza este momento induz os indivíduos à passividade e à descrença na possibilidade de agir contra um destino fixo e inevitável. A consciência transitiva crítica, como último momento, é a síntese que compreende os fatos ou fenômenos como se dão na existência empírica e atinge suas correlações causais e circunstanciais autênticas. Tudo é submetido à análise, porque o que é verdadeiro hoje pode deixar de sê-lo amanhã. Contudo, não se chega a este estado de modo abrupto, há que haver esforço. A consciência crítica decorre de um processo de conscientização no qual vão se desenvolvendo os graus de tomada de consciência (Freire, 1976, p. 61). 
Vanilda Paiva (1980)[8] em sua tese de doutoramento também associou Freire à ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista dos anos 1950, ao tratar especificamente da conscientização: ela ressalta que ele visava tão somente um determinado grau de consciência crítica, e que não tendia absolutamente à consciência de classe. De um lugar epistemológico onde se situam Hegel e Mannheim, Paiva destaca que o que pretendia era tão somente um grau de consciência capaz de levar o “homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço”; à criação de disposições democráticas, novos hábitos de participação e ingerência, mais compatíveis com o clima da fase de transição que sociedade brasileira dos anos 1950 vivia. Ficava, pois, distante de admitir a possibilidade de a sociedade ser organizada em seu conjunto conforme os interesses e consciência de classe, nomeadamente das classes populares. Nos inquéritos policiais-militares aos quais foi submetido nos porões da ditadura, mais de uma vez negou ser comunista ou pretender organizar a luta de classe. 
Na obra “Educação como prática da Liberdade”, a consciência crítica é uma condição para a superação da inexperiência democrática brasileira, enfrentamento da batalha do desenvolvimento nacional, ampliação de “nossos quadros técnicos em todos os níveis, e para a humanização do homem brasileiro. (Freire, 1976, p. 97). É também condição para se chegar a uma “visão harmônica entre a posição verdadeira humanista (...) e a tecnológica” superando-se o dilema humanismo-tecnologia pelo fato de ser importante que os técnicos deixem de serem postos diante de problemas outros, que não os de sua especificidade. Mas, se porventura alguns dos recém-alfabetizados acaso optam pela adesão aos movimentos sindicais e político-partidários fazem-no por opção própria, que consideram como legítima para a defesa dos seus interesses (Weffort, 1976). 
O nacionalismo-desenvolvimentista
O nacionalismo-desenvolvimentista brasileiro, no período recortado, é impulsionado pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, e está interessado na transferência dos comandos da economia e dos destinos do país para mãos nacionais. Teoricamente foi elaborado pelos isebianos, muito embora, seja necessário reconhecer não se tratar de um grupo homogêneo de intelectuais; havia aqueles que defendiam a prevalência de capitais nacionais capitaneados por uma burguesia nacional como condição para a emancipação e soberania do país, e outros que não viam obstáculos aos investimentos estrangeiros. O grupo nacionalista, que se fez hegemônico, tornou o ISEB mais aberto, ampliou os seus cursos e se dedicou a promover mobilizações políticas de forma a superar as estruturas agroexportadoras. As ligações mais diretas entre Freire e o ISEB são perceptíveis por meio de suas relações com Álvaro Vieira Pinto, para o qual cultura e educação seriam os pilares da consciência crítica; a educação era como um “encontro entre consciências livres, encontro dos educadores entre e com os alunos”; e que os professores deveriam “possuir noção crítica do próprio papel”, que a finalidade deles era “transformar a nação”. De seu ponto de vista “a atividade educadora, eminentemente social, só era válida se o educando admitisse participar dos acontecimento no seu meio social” (Do Vale, 2006 p.119-120)[9]. Freire revela-se sempre impregnado pelas condições históricas de seu tempo. Também ele quer superar a sociedade que avalia como reflexa econômica e culturalmente, alienada, agroexportadora, predatória, objeto de si mesma, elitista e, portanto, sem povo. 
Em sua tese de doutoramento – “Educação e Realidade Brasileira” (1959)[10] – Freire não se esquiva de exprimir preocupações com o estado opressivo das relações sócio-políticas brasileiras e com as tendências culturais paternalistas e fatalistas; preocupações estas que seriam elementos fundantes de sua prática pedagógica para a transformação da sociedade brasileira. Mais tarde, na obra “Educação como Prática da Liberdade” ele introduziu o conceito de sociedade em trânsito ou sociedade transitiva, tendo como ponto de partida a sociedade fechada, isto é, a sociedade antidialogal, verticalista, comandada por uma elite superposta ao seu mundo e com alarmantes índices de analfabetismo. 
Para Vanilda Paiva, o modo de pensar de Freire tem como marco inicial de reflexão, a análise da situação fundamental do homem, e indiscutivelmente apresenta diversas aproximações com os escritos dos isebianos históricos, destacando-se dentre eles, os escritos de Corbisier e Jaguaribe. Com efeito, todos admitiam a ideia de aproveitar as rachaduras da sociedade provocadas pela industrialização e pela urbanização crescente, bem como a necessidade de superar os desafios inerentes ao estabelecimento da sociedade aberta. Todos tinham urgência de tornar hegemônica a ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista. Freire, como os demais, acreditava que a abertura serena e a autonomia da sociedade brasileira decorreriam pacificamente em bases racionais e não populistas, como efeito da emersão popular e do processo de democratização fundamental instalado na época de trânsito (Freire, 1976, p. 49)
Outras ideias igualmente compartilhadas pela elite isebiana também podem ser identificadas na obra de Freire, como por exemplo, a de uma “revolução brasileira” em termos autênticos, isto é, que supõe optar por uma “captação crítica do desafio”; mas que não deve resultar nem de prescrições nem de expectativas alheias. A “radicalização desta opção”, entretanto, deveria ser crítica, amorosa, humilde e comunicativa (Freire, 1976, p. 50) e suporia um forte senso de responsabilidade e de consenso entre os homens radicais que, entretanto, não negariam ao outro o direito de poder optar. 
O processo de democratização fundamental na perspectiva idealista de Freire previa que “o senso de responsabilidade de verdadeiros representantes das elites dirigentes que cada vez mais se identificam com o povo, a comunicar-se com ele por seu testemunho e pela ação educativa, ajudaria a sociedade a evitar possíveis distorções a que está sujeita” (Freire, 1976, 54). Nesta antevisão Freire deixa claro que sua concepção de democracia funda-se no consenso da maioria, mas ao mesmo tempo permite ser levantada a seguinte questão: o fato de haver mais pessoas participando politicamente com mais ou menos radicalidade, assumindo-se como sujeitos conscientes, armados contra a força dos irracionalismos, por si só garantiria a plena realização da democratização fundamental que pretende? Carlos Nelson Coutinho (2002)[11] assevera-nos que não, porque a plenitude democrática implica em superação da ordem social capitalista e socialização dos meios de produção e do poder. Nos moldes em que Freire a pretende, concretamente, pouco avança e pouco difere das teorizações liberais, para as quais no regime democrático pouco importa o grau de racionalidade do voto popular se se garante o rodízio de grupos elitistas no poder. 
A personalização dos indivíduos, tal qual Freire pretendia, é indiscutível que resulta na formação de pessoas livres, participantes e integradas à sua sociedade em transição. Mas isto é suficiente para a construção de uma vontade coletiva, considerando-se que as bases materiais da sociedade capitalista, ainda que ainda em trânsito, mantêm-se intactas? Concretamente se pode pensar em processo de democratização fundamental quando a desigualdade material e econômica hierarquiza os indivíduos e leva alguns a mercadorizar os seus votos?
Algumas considerações
As fragilidades e contradições possíveis de serem encontradas na obra de Paulo Freire, no recorte feito, não elidem as suas contribuições e importância para o atual pensamento pedagógico brasileiro; muito pelo contrário. As ideias que começou a esboçar em meio à efervescência urbanizadora e industrial da época estabelecem importantes conexões válidas ainda hoje, sobretudo porque a questão nacional continua posta com alguma variação de matizes. Nossa dependência ao capital estrangeiro continua grande e atrofia a nossa soberania, as elites dominantes ainda mantém os seus pés na casa grande, é cada vez mais egoísta e prefere manter o nosso atraso social e econômico. Seu lugar de importância é de destaque e é marcado pelas articulações teóricas que foi capaz de fazer. 
A produção intelectual que Freire realizou, posterior à época que abordei, é um continuum, revisitando temas e realizando mediações cada vez mais complexas e abrangentes. Jamais se aquietou. Em sua maturidade intelectual, com a radicalidade que o caracterizou, manteve-se indignado com as diferentes formas de opressão, distorções da a-eticidade humana, neoliberalismo e globalização, assim como se posicionou contra as vilezas dispensadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e aos povos originais do Brasil. 
Toda sua obra e seu pensamento pedagógico continuam vívidos. É um manancial que ainda precisa ser estudado com profundidade no sentido de alcançar seu significado social, político e pedagógico. É indispensável examinar a sua importância na atual conjuntura brasileira. De modo algum merece ser citado a torto e a direito, sem criticidade e de modo ideologizado, como se estivesse destituído de um lugar apropriado e significativo na história da educação brasileira. De modo algum pode ser enxovalhado por quem quer que seja, ainda mais quando investido de autoridade educacional.  

[1] Grande parte deste texto foi produzido e comunicado no simpósio “O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento”, realizado pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas no período de 22 de novembro a 9 de dezembro de 2008. O texto que apresento agora é a versão mais atualizada, ampliada e revisada da comunicação original. 

[2] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Coordenador Geral do PPG Educação e Desenvolvimento Teotonio dos Santos (ProDEd-TS) e colaborador do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH). Ex-coordenador do Colégio São Vicente de Paulo-Cosme Velho/RJ (1984-1995), o qual, desde a sua fundação em 1959, procurou educar as suas crianças, jovens e adultos fundando sua prática pedagógica na Teologia da Libertação e na Pedagogia Freiriana. 
[3] FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. São Paulo: Villa das Letras, 2006, p. 207
[4] BONIN, R. Weintraub, a sofisticação de ideias no MEC: ‘Paulo Freire é muito feio’. São Paulo: Revista Veja, Coluna Radar, 2020. Disponível no site: https://veja.abril.com.br/blog/radar/weintraub-a-sofisticacao-de-ideias-no-mec-paulo-freire-e-muito-feio/. Acesso em agosto de 2020. 
[5] FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
[6] FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
[7] WEFFORT, F. Educação e Política (Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da Liberdade). In Freire, P. Educação como prática da liberdade. Petrópolis: Vozes, 1976.
[8] PAIVA, V. P. Paulo Freire e o Nacionalismo-Desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
[9] DO VALE, A. M. O ISEB, os intelectuais e a diferença: um diálogo teimoso na educação. São Paulo, UNESP, 2006.
[10] FREIRE, P. Educação e Realidade Brasileira. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez Editores, 2001. 
[11] COUTINHO, C. N. A democracia na batalha das ideias e nas lutas políticas do Brasil de hoje. In FÁVERO, O; SEMERARO, G. (Orgs). Democracia e Construção do Público no Pensamento Educacional Brasileiro. Petrópolis: vozes, 2002.

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