Art.1º. Todos os homens nascem e são livres e iguais
em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 6º. Todos os cidadãos são iguais aos olhos da Lei
e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade e sem outra distinção que
não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão - 1789
Passados mais de duzentos e trinta anos da promulgação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a sociedade mundial ainda se
encontra distante de garantir a liberdade e a igualdade de direitos a todos. No
Brasil então nem se fala, a distância é enorme entre a cidadania plena e a de
segunda classe. Pobres, negros, LGBT, indígenas, quilombolas, mulheres,
portadores de necessidades especiais, imigrantes pobres e outras minorias continuam
sendo tratados como cidadãos de segunda classe, isto é, continua a lhes ser
negada a cidadania plena, são estigmatizados como menos capazes.
Inúmeras razões de diversas ordens contribuem para alijar
estas pessoas da cidadania plena. Em uma sociedade de classes, todos aqueles
abaixo da classe dominante são tratados cotidianamente como inferiores seja
porque são despossuídos de bens materiais; são de etnias, idioma, religião e
gêneros diferentes. Muito embora a ciência contemporânea já tenha demonstrado
que todos os seres humanos têm o mesmo genoma, isto é, as mesmas informações
hereditárias codificadas no DNA, ainda persistem as diferenças historicamente
construídas.
Ora, mas se tais diferenças são históricas é, então,
possível que possam deixar de existir; por exemplo, se algum dia ocorrer a
extinção da propriedade privada, desaparecerá, consequentemente, a distinção
entre proprietários e não-proprietários. O direito de exploração da terra será
igual para todos e a partição dos produtos agrícolas obedecerá a outras
combinações. O mesmo ocorrerá com o fim da exploração do trabalho alheio por
meio de escravização, corveias e assalariamento; quando somente existir o trabalho
associado, ou melhor, quando os produtores livremente se associarem para
produzir e suprir as necessidades materiais da humanidade, a ninguém mais será
negado sequer um pedaço de pão.
A educação escolar, pública, gratuita e de qualidade referenciada
socialmente pode contribuir concretamente para a inexistência de cidadãos de
segunda classe, como se lê no clássico Didática Magna: “ensinando tudo a todos
de igual modo” (Comenius, 2001)[2]. A
falta de qualidade necessária à promoção e emancipação dos indivíduos é
perversa e favorece a reprodução das diferenças sociais. Enquanto a educação
escolar, nos termos em que a coloco, estiver longe de ser equalizadora e
democrática, haverá discriminação entre aqueles que a receberam e aqueles que
estiveram distantes de usufruir dela.
No mundo ocidental há muito se reconhece a importância da
educação para tornar as pessoas, como sujeitos históricos iguais a todos os
demais, donas de seu próprio destino com pensamento próprio e autônomo. J-J.
Rousseau, em sua obra Emílio, defendeu exatamente isto, a educação como
instrumento de emancipação dos homens e mulheres. John Dewey seguiu esta mesma
linha e em sua perspectiva a educação deve propiciar aos educandos condições
para que resolvam por si mesmos os seus problemas. Durkheim reivindicou para
educação a capacidade de desenvolver nos educandos estados físicos,
intelectuais e morais indispensáveis à participação do indivíduo na sociedade. O
patrono da educação brasileira, o grande mestre Paulo Freire, acrescentou as
suas preocupações com a humanização coletiva da sociedade; para ele cabe,
também, à educação a responsabilidade de alargar os horizontes cognitivos dos
estudantes e apontar caminhos que favoreçam a construção de uma nova
sociabilidade, mais justa, igual, fraterna e humanizada. Toda a legislação
escolar brasileira está afinada com este entendimento acerca das finalidades da
educação; na LBD está escrito que a educação tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (Brasil, 1996)[3].
Entre os grandes pensadores é consensual que a educação deve
promover a emancipação e a autonomia dos educandos, o alargamento dos seus
horizontes cognitivos e a sua formação moral, ética e política para a sua
inserção social como cidadãos. Em todos eles está presente a ideia de igualdade
entre todos os seres humanos. A única nota fora do tom, no entanto, é dada pela
legislação brasileira na medida em que visa conservar a sociedade conforme o
seu ordenamento jurídico, social, político etc. e qualificar os estudantes para
o trabalho segundo a lógica da Teoria do Capital Humano. Numa simples
comparação com a Didática Magna de Comenius vê-se o quanto a LDB restringe as
possibilidades humanas. Segundo esse bispo protestante, que viveu na Morávia no
século XVII, a escola deve “ensinar tudo a todos de igual modo” para que possam
igualmente fruir as delícias existentes no Planeta Terra, colocadas à
disposição:
As próprias coisas, enquanto nos dizem respeito, não
podem ser divididas senão em três espécies. Na verdade: algumas são apenas
objeto de observação, como o céu e a terra e as coisas que neles existem;
outras são objeto de imitação, como a ordem admirável espalhada por toda a
parte, a qual o homem tem obrigação de exprimir também nas suas obras; outras,
enfim, são objeto de fruição, como o favor da divindade e a sua multíplice
benção, neste mundo e para sempre. Se o homem deve ser semelhante a estas
coisas, importa necessariamente que se prepare, tanto para conhecer as coisas,
que, neste maravilhoso anfiteatro, se oferecem à sua observação, como para
fazer aquelas coisas que se lhe ordena que faça, como, finalmente, para gozar
daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo Criador lhe oferece (como a um
hóspede que esteja em sua casa) para sua fruição (Comenius, 2001).
A condenação da estudantada brasileira ao trabalho e à
reprodução de uma sociedade burguesa e classista tem como efeito a manutenção
do status quo da classe dominante atrasada, egoísta e concentradora da riqueza
nacional. Ademais, nega-se-lhe a capacidade de adquirir competências para além
do mundo do trabalho. Em uma pequena comparação entre a Base Nacional
Curricular Comum, promulgada pelo governo brasileiro em 2017 e a Nova Agenda de
Competências Para a Europa (2016), vê-se, por exemplo, como os europeus primam
para que os seus estudantes desenvolvam com espírito crítico competências mais
elevadas voltadas ao empreendedorismo, mundo digital e à cultura financeira;
mas, não apenas isto. Esperam ainda que
o futuro cidadão – livre, autônomo, democrático, despido de preconceitos,
criativo, responsável e consciente de si e do mundo em que se insere – seja
capaz de rejeitar todas as formas de discriminação e exclusão social,
reconhecer a importância e os desafios colocados pelas Artes, Humanidades, Ciência
e Tecnologia “para a sustentabilidade social, cultural, econômica e ambiental”
do seu país e do mundo; que saiba lidar “com a mudança e a incerteza num mundo
em rápida transformação”, que “valorize o respeito pela dignidade humana, pelo
exercício da cidadania plena, pela solidariedade com os outros, pela
diversidade cultural e pelo debate democrático” (Gama, 2018)[4].
A finalidade da educação, portanto, vai além do preparo do
estudante para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É
preciso que ela o prepare para jamais ser inferior aos seus semelhantes em suas
relações sociais costumeiras e para que possa fruir as delícias planetárias
colocadas à disposição para o seu deleite e elevação espiritual.
Precisamos, então, rever a educação nacional! O Brasil
precisa de homens e mulheres iguais, livres, democratas e sem submissão ao o
quê ou a quem quer que seja.
[1]
Professor Titular do Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da
Educação (DEPAG), Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa
Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê
Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ)
[2]
COMENIUS, I. Didática Magna. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 Disponível no site: https://www2.unifap.br/edfisica/files/2014/12/A_didactica_magna_COMENIUS.pdf.
Acesso em dezembro de 2019.
[3]
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases. Disponível no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
Acesso em dezembro de 2019
[4]
GAMA, Z. A elite do
atraso e a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Disponível no
site: http://www.justificando.com/2018/01/16/elite-do-atraso-e-base-nacional-curricular-comum-bncc/.
Acesso em dezembro de 2019.
3 comentários:
A educação formal tem sim um papel fundamental na tomada de consciência e portanto de contribuição à emancipação das relações humanas que viabiliza uma outra sociedade. É necessário o fortalecimento de uma ética universal para o fim das relações amesquinhadas, opressivas, repressivas. Não ha como sustentar uma sociedade emancipada economicamente com essas relações medíocres que estamos reproduzindo, ja dizia o velho Marx e também Lukács. Há uma tarefa árdua de reconhecimento e sustentação da necessidade de mudanças nas nossas relações no cotidiano, no convívio direto, só assim conseguiremos sustentar a viabilidade de uma outra sociedade. A revolução está no chão do cotidiano, está em todas as estruturas, relações e instituições que deixam brechas na reprodução das relações capitalistas e a escola é uma delas.
Meu caro, vc tem razão no seu comentário. A emancipação da sociedade depende do desenvolvimento das forças produtivas para a produção da abundância, sem a qual tudo fica difícil; historicamente já vimos que onde isto deixou de ocorrer - caso de Cuba, China e outros - buscaram soluções em regimes autoritários. O Reino da Abundância ou da Liberdade é a utopia necessária de ser realizada. Para tanto, a superação das relações das relações egoístas e amesquinhadas precisa acontecer, a começar com uma educação para além do capital
Meu caro, vc tem razão no seu comentário. A emancipação da sociedade depende do desenvolvimento das forças produtivas para a produção da abundância, sem a qual tudo fica difícil; historicamente já vimos que onde isto deixou de ocorrer - caso de Cuba, China e outros - buscaram soluções em regimes autoritários. O Reino da Abundância ou da Liberdade é a utopia necessária de ser realizada. Para tanto, a superação das relações das relações egoístas e amesquinhadas precisa acontecer, a começar com uma educação para além do capital
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