Caricatura do Kim - Disponível no site: https://kimcartunista.com.br/2014/01/09/paulo-freire/
Introdução
Paulo Regulus Neves Freire (1921-1997), era pernambucano da cidade do Recife. Nos anos duros da Ditadura Militar, por causa das suas ideias político-pedagógicas, trabalho em Angicos (RN), no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife - do qual foi um dos fundadores – e no Programa Nacional de Alfabetização (PNA) do governo federal a partir de 1963, foi preso em 16 de junho de 1964. Respondeu a inquéritos na Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPe), e no Quartel da 2ª Companhia de Guardas no Recife, sendo ainda intimado a depor em Inquérito Policial Militar na cidade do Rio de Janeiro.
Forçado a se exilar do Brasil, inicialmente foi para a Bolívia (outubro de 1964) e depois para o Chile (novembro de 1964), Estados Unidos (1969), Suíça (1970) e África a partir de 1975. Em seu exílio, como ele próprio disse, deixou de ter uma mente paroquial, abrindo-se “a outras formas de estar sendo” (Ceccon e Oliveira in Araújo Freire, 2006)[3]. Faleceu em 2 de maio de 1997 no Hospital Albert Einstein em São Paulo de enfarte agudo do miocárdio.
Ainda em vida obteve a consagração devida e foi, inclusive, indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 1995. Hoje é praticamente um mito nacional e internacional, uma referência obrigatória nos meios educacionais brasileiros. Sua obra é discutida em centros de estudos na Finlândia, África do Sul, Áustria, Alemanha, Holanda, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Aqui no Brasil, nomeadamente durante as duas gestões do governador Leonel Brizola, fundador dos CIEPs – centros integrados de educação pública – também chamados de brizolões, Paulo Freire teve dia comemorativo inscrito no calendário escolar e 381 escolas federais, estaduais, municipais e particulares pelo Brasil afora receberam o seu nome.
Um texto curto não daria conta de analisar toda a sua obra e importância sem correr o risco de ser laudatório. Esforcei-me para ser fiel ao campo da análise. Meu intento, primeiramente, restringiu-se ao período de sua produção teórica, situado entre 1959 e 1967, quando defendeu a sua tese de doutoramento – “Educação e Atualidade Brasileira”, e publicou o livro “A educação como prática de liberdade” pela Editora Paz e Terra. Meus objetivos são dois: examinar seu “método de alfabetização” e sua vinculação com a utopia nacional-desenvolvimentista elaborada no âmbito do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do qual faziam parte grandes intelectuais: Hélio Jaguaribe, Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nélson Werneck Sodré.
A escrita deste texto ocorre em um momento difícil vivido pela sociedade brasileira. Está sendo assolada pela epidemia de covid-19, disseminada pelo novo coronavírus, e por um governo que se aproxima de forças reacionárias de matizes neofascistas que se mantém em estado de inércia diante de milhares de óbitos e milhões de contaminados. É parte desta mesma tragédia nacional o conjunto de denúncias e perseguições levadas a efeito por agentes públicos ao que está sendo denominado de “marxismo cultural”, isto é, um suposto plano para a dominação da ideologia marxista. As ideias e a obra de Freire não escapam a detrações e a tais perseguições. O próprio ex-ministro da Educação A. Weintraub (de 09/04/2019 a 19/06/2020) que certamente nunca o leu, de uma perspectiva rasteira e rancorosa afirmou que ele é “muito mais uma bandeira do que realmente uma referência tão importante assim. Vejo-o, nesse caso, como um bom adversário. Porque o sistema que ele montou é ruim, as falas dele são super confusas, o resultado é péssimo” (Bonin, 2020)[4]. Freire, contudo, nunca foi marxista ou comunista. Além das influências advindas de G. W. F. Hegel e, consequentemente do idealismo alemão, ele próprio reconheceu sua filiação epistemológica a Karl Mannheim (1893-1947), “sobretudo na ênfase que dá à necessidade de uma educação capaz de resguardar o homem contra o perigo de sua massificação” (Araújo Freire, 2006, p. 188). Freire, além de idealista, era cristão e durante os anos de exílio em Genebra trabalhou durante dez anos no Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
O desenvolvimento do presente texto é apresentado em duas partes. Na primeira, o objeto central de análise é o método de alfabetização que propôs e colocou em prática. O mesmo, entretanto, não é considerado como um simples conjunto de técnicas de leitura e escrita, porque isto implicaria em sua redução e o simplismo analítico impediria ressaltar sua proposta “antropológica, ética e política de resgate da vocação ontológica dos homens e das mulheres que, entre outras, se concretiza no direito de ler a palavra e o mundo” (Araújo Freire, 2006, p. 332). Na segunda, tomo como objeto as relações entre o pensamento pedagógico de Paulo Freire e a teoria do nacionalismo-desenvolvimentista brasileiro tão recorrente no período compreendido entre 1959 e 1964. Argumento que a sua posição se contrapõe à das elites da sociedade fechada e identificada com os matizes do populismo conservador que massifica, fanatiza e impede que os homens simples possam ser participantes e agentes do processo de transformação que ele considera fundamental; a educação que propunha era essencialmente transformadora e libertadora.
O Método de Alfabetização.
Seu método de alfabetização, como ele próprio o caracterizou, funda-se no diálogo, ação, criticidade e participação dos sujeitos envolvidos. Como dizia: “o diálogo é o indispensável caminho”; mas não o diálogo verticalista arrogante, autossuficiente, desesperançoso e acrítico, o qual denominava de antidiálogo. Não é um simples método de alfabetização porquanto visa levar o alfabetizando à compreensão de seu papel como sujeito consciente e produtor de cultura, deixando de ser mero expectador e permanente objeto. O homem para Freire vive em um domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura. Como sujeito histórico e produtor de cultura, deve se tornar criador, recriador e capaz de produzir respostas aos desafios de seu meio e, ao mesmo tempo, objetivar-se a si próprio. Na sociedade elitista e fechada que denuncia e quer superar, estes homens simples, mas concretos, devem se libertar de suas crenças mitificadas e deixar de serem “comandados pela publicidade organizada, ideológica ou não” (Freire, 1976, p.43)[5]. Não podem mais estar submissos às “elites” e à manipulação populista que interpretam o mundo e lhes apresentam as tarefas de seu tempo em forma de receitas e prescrições, até porque quando as seguem acabam se afogando “no anonimato nivelador da massificação” e se rebaixam à condição de puro objeto.
As situações existenciais características do método, visam, então, a ajudar o homem simples e analfabeto a suplantar sua compreensão de mundo ou, em outras palavras, o seu estágio de consciência mítica, mágica e ingênua, próprio da totalidade histórica que se quer superar. Estas situações desafiam os grupos de alfabetizadores e alfabetizandos a discutir as suas situações existenciais com o intuito de superarem a inércia, a passividade e a alienação, incluindo a necessidade de aprender a ler e a escrever (Freire, 1976)[6].
O domínio propriamente dito da escrita e da palavra corresponde, ao mesmo tempo, à decodificação da palavra escrita e a da situação existencial a partir de palavras geradoras – como tijolo, favela, arado, governo etc., decompostas em sílabas e famílias fonêmicas (ta-te-ti-to-tu). Com o domínio cognitivo da palavra e das famílias fonêmicas, os alfabetizandos adquiririam condições de compreender os mecanismos de formação das palavras, juntar sílabas e letras, formar novas palavras e até mesmo frases inteiras. As palavras geradoras provocariam novas discussões e níveis de consciência. A palavra “trabalho”, por exemplo, ao ser analisada como situação existencial, levá-los-iam a distinguirem as diferentes formas de trabalho, bem como a identificarem a importância do trabalho na ontocriatividade do homem. A estratégia subjacente sempre presume que os alfabetizandos desenvolvam processos de tomada de consciência dos problemas ético-políticos-sociais e contestem as históricas condições de submissão e de injustiças impostas secularmente. Eles deveriam não mais captar os fatos em sua exterioridade nem lhes emprestar poderes superiores aos quais devem ser dóceis.
Neste ponto vale questionar o propósito de conscientização que o método contém: estaria ele se dispondo a situar as classes populares no epicentro das forças motrizes dos acontecimentos históricos? Conscientizar seria a base de um amplo movimento de conscientização de classe?
Em termos teóricos a obra em análise nos permite responder positivamente à primeira questão, muito embora Freire jamais tenha pensado fazer de seu método um instrumento de doutrinação política e sempre tenha admitido que a educação é um ato político. Ele próprio, mais de uma vez, foi enfático ao afirmar que ninguém politiza ninguém, da mesma forma que ninguém pode mediar por ninguém conforme Hegel deixou claro. Em sua opinião, os atos de politizar e/ou doutrinar são um desrespeito à pessoa humana. Quando se tenta fazê-lo ou se faz, já não se educa (Araujo Freire, 2006, p. 189).
Ele sempre pensou a educação como prática da liberdade de opção e de interferência, como um ato de amor e coragem que não se impõe; que não teme o livre debate, a análise da realidade e a discussão criadora. Como ele escreveu: “à medida que um método ativo ajude o homem a se conscientizar em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por isso de sujeito, se instrumentalizará para as suas opções” (Freire, 1976, p. 120). Weffort, na apresentação que faz do livro “Educação como prática da liberdade” (1976, p. 15)[7], sublinha que, de fato, não pensava ideologizar ou propor palavras de ordem, não obstante tivesse clareza de que sua tarefa continha implicações políticas. Ele sempre soube que “seu campo é a pedagogia e não a política, e que não pode, como educador, substituir o político revolucionário interessado no conhecimento e na transformação das estruturas”. Qualquer orientação especificamente política, em seu entendimento, caberia aos políticos.
Até a edição do livro “Educação como Prática da Liberdade” a conscientização transformadora de Paulo Freire, objetivamente, tem todo o seu interesse voltado para tirar da situação de submissão, imersão e passividade aqueles que ainda desconhecem a palavra escrita e permanecem submissos no mundo, num estado de inconsciência crítica. Entretanto, jamais pressupõe que os oprimidos passem à condição de opressores ou façam a luta de classe. O que pretende é educar para a decisão, responsabilidade social e política com a criticidade possível numa sociedade historicamente determinada, caracterizada por certas formas de produção e relações sociais, na qual o Estado opera como instrumento da classe dominante, potencializando interesses particularistas e supremo regulador. É também um Estado contraditório na medida em que tanto contesta a “vocação natural das pessoas” de serem sujeitos e não objetos, e “o processo de democratização fundamental” em que a sociedade de sua época de situa. Pretende, pois, uma inversão do papel do Estado, o qual deixaria de ser um fim em si mesmo para ser subordinado e condicionado pela sociedade. A necessidade de um método de alfabetização e de conscientização tornar-se-ia estratégica para levar os homens a se tornarem sujeitos de sua historicidade; a começar pela percepção de que “os fundamentos da ordem que os minimizavam já não tem sentido”. (idem, 1976, p. 56). Sem alfabetização e consciência cada vez mais crítica, admite não ser possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade, em transição, intensamente cambiante e contraditória (idem, p. 57). Paradoxalmente o querido mestre não se situava à margem da institucionalidade na mobilização que faz e isto permitiu a Weffort (1976, p.22) questionar sua eficácia: “ao promover a mobilização através do Estado, o educador não estaria comprometendo, através dos resultados políticos de sua ação, seu próprio projeto de criticização da consciência popular?”.
A conscientização crítica do homem simples é, ainda assim, a grande meta, mas que significado conceitual Freire lhe dá? Estaria admitindo diferentes graus ou estados de consciência? A consciência crítica em perspectiva pode ser tomada como sinônimo de consciência de classe?
Vejamos estas questões dentro dos limites aos quais estou circunscrito. Paulo Freire distinguia três momentos de consciência. A consciência intransitiva, o primeiro deles, é própria da totalidade histórica que denomina de “sociedade fechada” e à qual pertencem os homens simples das zonas fortemente atrasadas do país limitados em suas capacidades de apreensão do real. Nesta totalidade predomina a imersão, a alienação, a imitação de modelos externos e o idealismo utópico. Irracionalidade e fanatismo são características que identifica como sendo coloniais e puramente reflexas. Este momento, na perspectiva de Fichte e Hegel assumida por Freire, constitui a tese a ser superada; nele a consciência é em si e por si, na mais pura formalidade. A consciência transitiva, e ainda ingênua, em um segundo momento nitidamente antitético, se situa diante da totalidade na qual se intensificam a urbanização, industrialização e decadência da economia agrária e o “povo” começa a emergir ou a se desalienar descruzando os braços, renunciando à expectação e exigindo ingerência. Os interesses e preocupações populares transcendem à simples reprodução da existência material e espiritual, mas ainda há respostas de teor mágico na medida em que os homens simples continuam a apreender os fatos ou fenômenos a partir de sua exterioridade, sem penetrar em suas essências e abranger suas múltiplas determinações. O fatalismo que caracteriza este momento induz os indivíduos à passividade e à descrença na possibilidade de agir contra um destino fixo e inevitável. A consciência transitiva crítica, como último momento, é a síntese que compreende os fatos ou fenômenos como se dão na existência empírica e atinge suas correlações causais e circunstanciais autênticas. Tudo é submetido à análise, porque o que é verdadeiro hoje pode deixar de sê-lo amanhã. Contudo, não se chega a este estado de modo abrupto, há que haver esforço. A consciência crítica decorre de um processo de conscientização no qual vão se desenvolvendo os graus de tomada de consciência (Freire, 1976, p. 61).
Vanilda Paiva (1980)[8] em sua tese de doutoramento também associou Freire à ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista dos anos 1950, ao tratar especificamente da conscientização: ela ressalta que ele visava tão somente um determinado grau de consciência crítica, e que não tendia absolutamente à consciência de classe. De um lugar epistemológico onde se situam Hegel e Mannheim, Paiva destaca que o que pretendia era tão somente um grau de consciência capaz de levar o “homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço”; à criação de disposições democráticas, novos hábitos de participação e ingerência, mais compatíveis com o clima da fase de transição que sociedade brasileira dos anos 1950 vivia. Ficava, pois, distante de admitir a possibilidade de a sociedade ser organizada em seu conjunto conforme os interesses e consciência de classe, nomeadamente das classes populares. Nos inquéritos policiais-militares aos quais foi submetido nos porões da ditadura, mais de uma vez negou ser comunista ou pretender organizar a luta de classe.
Na obra “Educação como prática da Liberdade”, a consciência crítica é uma condição para a superação da inexperiência democrática brasileira, enfrentamento da batalha do desenvolvimento nacional, ampliação de “nossos quadros técnicos em todos os níveis, e para a humanização do homem brasileiro. (Freire, 1976, p. 97). É também condição para se chegar a uma “visão harmônica entre a posição verdadeira humanista (...) e a tecnológica” superando-se o dilema humanismo-tecnologia pelo fato de ser importante que os técnicos deixem de serem postos diante de problemas outros, que não os de sua especificidade. Mas, se porventura alguns dos recém-alfabetizados acaso optam pela adesão aos movimentos sindicais e político-partidários fazem-no por opção própria, que consideram como legítima para a defesa dos seus interesses (Weffort, 1976).
O nacionalismo-desenvolvimentista
O nacionalismo-desenvolvimentista brasileiro, no período recortado, é impulsionado pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, e está interessado na transferência dos comandos da economia e dos destinos do país para mãos nacionais. Teoricamente foi elaborado pelos isebianos, muito embora, seja necessário reconhecer não se tratar de um grupo homogêneo de intelectuais; havia aqueles que defendiam a prevalência de capitais nacionais capitaneados por uma burguesia nacional como condição para a emancipação e soberania do país, e outros que não viam obstáculos aos investimentos estrangeiros. O grupo nacionalista, que se fez hegemônico, tornou o ISEB mais aberto, ampliou os seus cursos e se dedicou a promover mobilizações políticas de forma a superar as estruturas agroexportadoras. As ligações mais diretas entre Freire e o ISEB são perceptíveis por meio de suas relações com Álvaro Vieira Pinto, para o qual cultura e educação seriam os pilares da consciência crítica; a educação era como um “encontro entre consciências livres, encontro dos educadores entre e com os alunos”; e que os professores deveriam “possuir noção crítica do próprio papel”, que a finalidade deles era “transformar a nação”. De seu ponto de vista “a atividade educadora, eminentemente social, só era válida se o educando admitisse participar dos acontecimento no seu meio social” (Do Vale, 2006 p.119-120)[9]. Freire revela-se sempre impregnado pelas condições históricas de seu tempo. Também ele quer superar a sociedade que avalia como reflexa econômica e culturalmente, alienada, agroexportadora, predatória, objeto de si mesma, elitista e, portanto, sem povo.
Em sua tese de doutoramento – “Educação e Realidade Brasileira” (1959)[10] – Freire não se esquiva de exprimir preocupações com o estado opressivo das relações sócio-políticas brasileiras e com as tendências culturais paternalistas e fatalistas; preocupações estas que seriam elementos fundantes de sua prática pedagógica para a transformação da sociedade brasileira. Mais tarde, na obra “Educação como Prática da Liberdade” ele introduziu o conceito de sociedade em trânsito ou sociedade transitiva, tendo como ponto de partida a sociedade fechada, isto é, a sociedade antidialogal, verticalista, comandada por uma elite superposta ao seu mundo e com alarmantes índices de analfabetismo.
Para Vanilda Paiva, o modo de pensar de Freire tem como marco inicial de reflexão, a análise da situação fundamental do homem, e indiscutivelmente apresenta diversas aproximações com os escritos dos isebianos históricos, destacando-se dentre eles, os escritos de Corbisier e Jaguaribe. Com efeito, todos admitiam a ideia de aproveitar as rachaduras da sociedade provocadas pela industrialização e pela urbanização crescente, bem como a necessidade de superar os desafios inerentes ao estabelecimento da sociedade aberta. Todos tinham urgência de tornar hegemônica a ideologia do nacionalismo-desenvolvimentista. Freire, como os demais, acreditava que a abertura serena e a autonomia da sociedade brasileira decorreriam pacificamente em bases racionais e não populistas, como efeito da emersão popular e do processo de democratização fundamental instalado na época de trânsito (Freire, 1976, p. 49)
Outras ideias igualmente compartilhadas pela elite isebiana também podem ser identificadas na obra de Freire, como por exemplo, a de uma “revolução brasileira” em termos autênticos, isto é, que supõe optar por uma “captação crítica do desafio”; mas que não deve resultar nem de prescrições nem de expectativas alheias. A “radicalização desta opção”, entretanto, deveria ser crítica, amorosa, humilde e comunicativa (Freire, 1976, p. 50) e suporia um forte senso de responsabilidade e de consenso entre os homens radicais que, entretanto, não negariam ao outro o direito de poder optar.
O processo de democratização fundamental na perspectiva idealista de Freire previa que “o senso de responsabilidade de verdadeiros representantes das elites dirigentes que cada vez mais se identificam com o povo, a comunicar-se com ele por seu testemunho e pela ação educativa, ajudaria a sociedade a evitar possíveis distorções a que está sujeita” (Freire, 1976, 54). Nesta antevisão Freire deixa claro que sua concepção de democracia funda-se no consenso da maioria, mas ao mesmo tempo permite ser levantada a seguinte questão: o fato de haver mais pessoas participando politicamente com mais ou menos radicalidade, assumindo-se como sujeitos conscientes, armados contra a força dos irracionalismos, por si só garantiria a plena realização da democratização fundamental que pretende? Carlos Nelson Coutinho (2002)[11] assevera-nos que não, porque a plenitude democrática implica em superação da ordem social capitalista e socialização dos meios de produção e do poder. Nos moldes em que Freire a pretende, concretamente, pouco avança e pouco difere das teorizações liberais, para as quais no regime democrático pouco importa o grau de racionalidade do voto popular se se garante o rodízio de grupos elitistas no poder.
A personalização dos indivíduos, tal qual Freire pretendia, é indiscutível que resulta na formação de pessoas livres, participantes e integradas à sua sociedade em transição. Mas isto é suficiente para a construção de uma vontade coletiva, considerando-se que as bases materiais da sociedade capitalista, ainda que ainda em trânsito, mantêm-se intactas? Concretamente se pode pensar em processo de democratização fundamental quando a desigualdade material e econômica hierarquiza os indivíduos e leva alguns a mercadorizar os seus votos?
Algumas considerações
As fragilidades e contradições possíveis de serem encontradas na obra de Paulo Freire, no recorte feito, não elidem as suas contribuições e importância para o atual pensamento pedagógico brasileiro; muito pelo contrário. As ideias que começou a esboçar em meio à efervescência urbanizadora e industrial da época estabelecem importantes conexões válidas ainda hoje, sobretudo porque a questão nacional continua posta com alguma variação de matizes. Nossa dependência ao capital estrangeiro continua grande e atrofia a nossa soberania, as elites dominantes ainda mantém os seus pés na casa grande, é cada vez mais egoísta e prefere manter o nosso atraso social e econômico. Seu lugar de importância é de destaque e é marcado pelas articulações teóricas que foi capaz de fazer.
A produção intelectual que Freire realizou, posterior à época que abordei, é um continuum, revisitando temas e realizando mediações cada vez mais complexas e abrangentes. Jamais se aquietou. Em sua maturidade intelectual, com a radicalidade que o caracterizou, manteve-se indignado com as diferentes formas de opressão, distorções da a-eticidade humana, neoliberalismo e globalização, assim como se posicionou contra as vilezas dispensadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e aos povos originais do Brasil.
Toda sua obra e seu pensamento pedagógico continuam vívidos. É um manancial que ainda precisa ser estudado com profundidade no sentido de alcançar seu significado social, político e pedagógico. É indispensável examinar a sua importância na atual conjuntura brasileira. De modo algum merece ser citado a torto e a direito, sem criticidade e de modo ideologizado, como se estivesse destituído de um lugar apropriado e significativo na história da educação brasileira. De modo algum pode ser enxovalhado por quem quer que seja, ainda mais quando investido de autoridade educacional.
[1] Grande parte deste texto foi produzido e comunicado no simpósio “O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento”, realizado pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas no período de 22 de novembro a 9 de dezembro de 2008. O texto que apresento agora é a versão mais atualizada, ampliada e revisada da comunicação original.
[2] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Coordenador Geral do PPG Educação e Desenvolvimento Teotonio dos Santos (ProDEd-TS) e colaborador do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH). Ex-coordenador do Colégio São Vicente de Paulo-Cosme Velho/RJ (1984-1995), o qual, desde a sua fundação em 1959, procurou educar as suas crianças, jovens e adultos fundando sua prática pedagógica na Teologia da Libertação e na Pedagogia Freiriana.
[3] FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. São Paulo: Villa das Letras, 2006, p. 207
[5] FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
[6] FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
[7] WEFFORT, F. Educação e Política (Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da Liberdade). In Freire, P. Educação como prática da liberdade. Petrópolis: Vozes, 1976.
[8] PAIVA, V. P. Paulo Freire e o Nacionalismo-Desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
[9] DO VALE, A. M. O ISEB, os intelectuais e a diferença: um diálogo teimoso na educação. São Paulo, UNESP, 2006.
[10] FREIRE, P. Educação e Realidade Brasileira. São Paulo: Instituto Paulo Freire/Cortez Editores, 2001.
[11] COUTINHO, C. N. A democracia na batalha das ideias e nas lutas políticas do Brasil de hoje. In FÁVERO, O; SEMERARO, G. (Orgs). Democracia e Construção do Público no Pensamento Educacional Brasileiro. Petrópolis: vozes, 2002.