A
epidemia de Covid-19 disseminada pelo Coronavírus, que tem contaminado milhões
e já levou a óbito mais de 170 mil brasileiros, forçou o isolamento social, o
consequente fechamento das escolas desde março de 2020 e impôs o oferecimento emergencial
de ensino remoto ao conjunto de estudantes, da educação infantil às
pós-graduações. De uma hora para outra o professorado e os estudantes, querendo
ou não, transladaram-se para ambientes virtuais com dificuldades técnicas de
várias ordens e com os recursos disponíveis, nem sempre contando com os apoios
necessários das autoridades educacionais. A mudança da pedagogia utilizada para
os ambientes virtuais tem sido um esforço de guerra com resultados a serem
analisados com profundidade, até porque o ensino remoto tem desprezado os
acúmulos técnicos e tecnológicos da modalidade educação a distância já
instalada.
No
presente texto, ensaio uma análise tendo como objeto de estudo o Curso de
Políticas Públicas de Educação, oferecido por mim e pelos professores Gaudêncio
Frigotto e Roberto Santana, e um conjunto de cento e dezessete estudantes de
Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
efetivamente matriculados. Para tal oferecimento utilizamos a plataforma
AVA-UERJ, desenvolvida pelo Laboratório de Tecnologias de Informação e
Comunicação (LaTIC/UERJ) na qual disponibilizamos a ementa do Curso, textos e
vídeos. Os vídeos para as atividades síncronas e assíncronas foram gravados com
o uso da ferramenta Zoom Meeting, editados e publicados na AVA-UERJ, e no
YouTube por causa da facilidade de edição e do fornecimento de estatísticas de
acesso, tempo de visualização etc.
Nosso
envolvimento nesse processo de oferecimento de ensino remoto emergencial se fez
com os nossos conhecimentos limitados de informática e do uso de plataformas de
ensino. Todos nós três somos grandes usuários do computador como sofisticada
máquina de escrever e analfabetos funcionais nos demais recursos. O ambiente
virtual colocado à disposição pela Universidade exigiu boas horas de
aprendizagem mínima para que navegássemos por ele postando atividades criadas
aos trancos e barrancos, realizando e gravando vídeos para as aulas síncronas e
assíncronas, enfim, virando-nos nos trinta. Entre os colegas de Departamento as
dificuldades foram iguais. As redes emergenciais de comunicações e trocas de
informações que se situaram na base de tal esforço de guerra foram
providenciais e solidárias para que os avanços se tornassem possíveis e as
atividades postadas se apresentassem minimamente atraentes e com os graus de
qualidade que pudemos atingir.
Da
parte dos estudantes, os inúmeros problemas enfrentados transparecem
significativamente as desigualdades sociais persistentes na sociedade
brasileira. Grande quantidade ainda não está incluída qualitativamente no
ciberespaço criado pela Internet, seja pela incipiente condição de sinal,
sombras que dificultam as conexões, internet pré-paga, um único computador para
muitos usuários, ausência de locais adequados de estudo, seja pela falta de
disciplina e comprometimento com os estudos ofertados remotamente. Uma simples
análise estatística da participação deles nas aulas remotas é frustrante. Em
atividades apresentados em vídeos, com um tempo de exibição entre vinte e
quarenta minutos, têm média de tempo de visualização que nunca ultrapassa 16
minutos. Em duas turmas abarcando todos os estudantes, verifica-se que nas
aulas síncronas poucos mantêm as câmeras de vídeo abertas; é regra que estejam desligadas
ou com imagens congeladas e a maioria registra duvidosa presença apenas
indicando estarem conectados. Os debates existentes quando envolvem cinco
alunos é um sucesso de público. Os trabalhos que desenvolvem, abordando algum
tema específico, ficam distantes do potencial cognitivo que eles têm. Antes eles
traduzem o burocrático cumprimento do dever com pequeno aprofundamento, ou em
outras palavras, como exercícios superficiais de mediação. Os esforços para
superar o nível real em que se encontram são insuficientes e precários.
Todavia,
a despeito da problemática técnica, é imperativo questionar esta atitude blasé
e buscar o seu significado. Os sentidos dos estudantes estão enfraquecidos neste
ensino remoto emergencial por excesso de atividades síncronas e assíncronas? O
distanciamento assumido é por cansaço, tédio ou será por esnobismo face ao
amadorismo docente em comparação com os youtubers
da moda e as apresentações de videobloggers
descolados? Ou, simplesmente, por conta da permanência das aulas na plataforma
e da facilidade de acessá-las em momentos de mais disposição?
Por
outro lado, é possível questionar tal atitude blasé como forma de resistência
ao ensino remoto, mesmo sabendo-se que o conceito de resistência nos discursos
educacionais ainda carece de aprofundamento teórico, dado o sentido corrente
que o aproxima de negação a determinada ação. A atitude de indiferença e
displicência estaria a demonstrar que os estudantes se negam a aceitar ou não
aprovar o ensino remoto nos moldes em que se realiza, talvez preferindo que o
melhor teria sido o cancelamento do ano letivo?
Nos
manuais de Psicologia a resistência, como mecanismo de defesa, é inerente ao
indivíduo sempre que se deparar com situações ou circunstâncias que geram
conflitos. Nos manuais de Filosofia, o termo adquire outras e maiores dimensões,
para além de simples negação. Para Foucault por exemplo, de um ponto de vista
político-filosófico a resistência é própria das relações de poder, as quais não
existem sem embates entre dominantes e dominados; quem domina exerce força no
sentido de manter o seu mando; com mais ou menos força em relação à astúcia e
os modos de resistir dos dominados (Foucault, 2003). Neste sentido foucaultiano, também se pode inferir
que a resistência, qualquer que seja sua forma, é inerente à nossa constituição
como sujeitos.
No
campo da Educação, tomando a resistência estudantil como objeto de estudo,
Henri Giroux (1986)a utiliza para criticar as Teorias da Reprodução e a ausência de
dialeticidade nelas, aproximando-se bastante da compreensão foucaultiana de
relações de poder. Até então era corrente que a escola inculcava
inexoravelmente o arbitrário cultural da classe dominante sem que houvesse
alguma forma de resistência por parte dos estudantes. Giroux tem os estudantes
como classe em uma perspectiva cultural, e como tal destaca suas atitudes em defesa
dos seus estilos, linguagens, gostos, modos de ser e de se comportarem. Por esta
razão, a escola de qualquer nível ou modalidade nunca é cem por cento
reprodutivista e a negação a ela, por alguns ou muitos, permite processos de
desalienação ou desinculcação em direções diferentes ou opostas. Contudo, Giroux
faz uma advertência severa: os comportamentos resistentes, em situações
específicas, também podem atuar a serviço da lógica dominante de
reprodução.
A
resistência ao ensino remoto em favor do ensino presencial ou da anulação do
ano letivo não pode, ainda, ser vista com exclusividade de forma conservadora.
Ela pode sinalizar a necessidade de serem criados ambientes virtuais que não
sejam simples transladação da pedagogia tradicional para ambientes virtuais;
possivelmente estão a exigir que os professores dominem as linguagens e as
ferramentas que a Internet disponibiliza, criando efetivamente novas formas de
apresentar os conteúdos indispensáveis à formação que buscam, e, ao mesmo
tempo, pressionando as autoridades a dar passos educacionais para além das
respostas imediatas e eleitoreiras à sociedade. A dinamicidade que caracteriza
o ambiente virtual e as novas tecnologias de comunicação abre portas para uma
pedagogia virtualizada e de um mundo educacional jamais imaginados pelos
grandes pensadores e filósofos. Neste sentido a resistência é positiva e força
a entrada da Pedagogia no mundo virtual.
Não
sendo a resistência impregnada de sentidos importantes para a construção dos
novos sujeitos, com olhares para o futuro, mas forçando o reino da lei do menor
esforço e aproveitamento da situação de pandemia para adiantar créditos ou
concluir cursos é um tiro no pé. Todos perdem, e lá na frente, no mercado de
trabalho, estarão desvalorizados todos os diplomas da era pandêmica.
[1]
Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Educação.
Coordenador do PPG Desenvolvimento & Educação Theotônio dos Santos (ProDEd-TS),
integrante do Comitê Gestor do LPP_UERJ, professor colaborador do PPFH.