6.3.21

A face mais perversa da Escola

 



Zacarias Gama[1]

 

A sociedade brasileira tem algumas características interessantes. Uma delas é tratar as coisas pelas suas aparências mais exteriores. A escola, por exemplo, de tão presente em nossas vidas desde muito cedo penetra em nossas consciências e nos marca pela regularidade, imediatismo e evidência e nos referimos a ela a partir de boas ou más vivências, lembranças etc. Definimo-la pelos seus aspectos mais externos e tangíveis. Formamos dela uma compreensão muito limitada, difusa e incoerente por ser imediata e superficial. Isto, entretanto não quer dizer que todos temos a mesma compreensão, ela varia de grupo para grupo, lugar e tempo. O senso comum nunca é unitário. Professores, estudantes, autoridades, empresários e políticos têm diferentes compreensões dela. Para os primeiros pode ser lugar de trabalho, realizações e decepções; para os estudantes, local de encontros, socialização, coleguismo e também de sacrifícios e sucesso. As autoridades, por sua vez, podem compreendê-las como sendo dóceis ou difíceis face às determinações provenientes das suas repartições, precarizadas ou não quando precisam usar verbas de manutenção, enfim, as escolas para as autoridades gerenciais podem ser um conjunto de muitas preocupações. Os empresários veem-nas como locais de formação de trabalhadores dóceis, competentes e conformados com a exploração que sofrem nos lugares de trabalho. Os políticos, por último, podem usá-las para promover seus mandatos e garantir votos, para fazer delas cabides de empregos para seus apaniguados.

Indagando a alguns estudantes universitários o que é escola, verifico que a compreendem como “local de aprendizagens, conhecimentos, relações, é uma família”; “espaço onde são discutidas muitas coisas, é um local de trocas e aquisição de conhecimentos”; “a escola é um ambiente de aprendizagem, reflexão”; “para além do espaço formal – salas de aula etc. –também compreende a comunidade, a rua, a igreja, ambiente familiar...”; “um local para além da aprendizagem, é local de convivência, socialização”; “é a segunda casa da gente”. É preocupante a compreensão idílica da escola, ela inunda a sociedade e até alguns meios acadêmicos. É o império do senso comum. Como Gramsci recomenda, é imperativo, então, substituir didaticamente esse senso comum e as velhas concepções de escola que perduram na mentalidade popular. O esforço de elevação da compreensão popular é a nossa finalidade se queremos uma elite intelectual de um novo tipo.

O fato é que as compreensões de senso comum da escola se constituem como desviantes dos caminhos que precisamos trilhar em nossas lutas pela escola emancipadora e de educação de qualidade referenciada socialmente. Ela precisa ser compreendida como importante aparelho privado de hegemonia com finalidades bem definidas em nossa sociedade capitalista de classe. Para início de uma nova compreensão do que é a escola, ela exige ser definida como instituição que organiza, faz mediações e reproduz a hegemonia da classe dominante, constituída pelos grandes empresários da indústria, comércio, agricultura, serviços e bancos. A Lei de Diretrizes e Bases a considera como instituição pública destinada a oferecer “educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro) anos de idade”, com princípios e objetivos bem ajustados legalmente. O Artigo 2 da LDB, por exemplo, define que a sua finalidade é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” e, para tanto, são estabelecidas bases curriculares comuns a partir das quais isto deve acontecer, considerando currículos, livros didáticos, tempos de aulas, duração do ano letivo etc.

Quando nos referenciamos à LDB tudo fica bem claro: a escola prepara os estudantes para a cidadania própria de uma sociedade de classes, na qual a propriedade privada determina o lugar social de cada um. E a escola faz isto com esmero, destacando os melhores alunos e indicando-os para representá-la nos mais variados eventos escolares e oficiais; ensinando crianças e jovens a cuidarem dos seus materiais escolares individuais e pondo neles os seus nomes, deixando bem à mostra quais são os seus proprietários; atribuindo notas aos trabalhos escolares de forma a condicioná-los a não reclamar quando os patrões estabelecerem o valor dos seus salários; a serem produtivos, empenhados e pontuais na realização das suas tarefas...

Ela, a escola, ainda os qualifica para o trabalho ao adotar pedagogias e currículos referenciados por competências e habilidades requisitadas pelo mundo do trabalho. Marise Ramos, no Dicionário da Educação do Profissional da Saúde, enfatiza que a “possibilidade virtuosa de relacionar as atividades pedagógicas às situações de trabalho e à prática social em geral está no horizonte (...) da formação plena dos trabalhadores”. Em outras palavras, esta escola subordinada pelo mercado condena crianças e jovens a não terem outra vida senão a de trabalhadores assalariados. O condutivismo-funcionalismo-construtivismo que impregna as pedagogias e currículos referenciados a competências e habilidades não deixa margem para as crianças e jovens serem sujeitos do mundo em que vivem, ou nas palavras de Johann Comenius, as escolas com tais pedagogias e currículos não os preparam “para conhecer as coisas, que, neste maravilhoso anfiteatro (O Planeta Terra), se oferecem às suas observações, como para fazer aquelas coisas que se lhes ordena que façam, como, finalmente, para gozar daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo Criador lhes oferece (como a um hóspede que esteja em sua casa) para a fruição deles” (Capítulo X). Tampouco os prepara para os mais altos postos de trabalho e remuneração, o ensino que oferece é para a massa de trabalhadores de origem pobre, periférica e negros; as grandes empresas corporativas, em todas as áreas de produção e serviços, forma a sua elite de CEOs, executivos e poderosos gerentes com egressos de instituições educativas de altas mensalidades na qual a presença de brancos constitui a regra.

Por sorte, as escolas são marcadas pela dialeticidade dos seus cotidianos impedindo que seja totalmente formativa conforme as determinações capitalistas. Os professores, estudantes, funcionários e pais de alunos são capazes de lhe impor resistências, quando se insurgem contra a escola reprodutivista forçando-a a ir para diante, a relaxar os determinantes do capital.

O campo em que a escola se inscreve é constantemente tensionado pelas forças sociais organizadas. Movimentos, institutos e fundações claramente capitalistas, tais como o Todos pela Educação, Escola Sem Partido, Instituto Ayrton Senna, Itaú Cultural, Fundação Xuxa Meneguel, Fundação Roberto Marinho, Fundação Bradesco e tantos outros, se empenham em garantir que a escola cumpra o seu desígnio de desenvolver com qualificação e competência o futuro trabalhador e cidadão burguês. São egoístas por excelência porquanto exigem uma formação especial, exclusiva para a sociedade burguesa. Ou como dizia Marx, exigem a “formação de homens egoístas, de homens separados dos homens e da comunidade (...), recolhidos aos seus interesses privados e aos seus caprichos privados (Sobre a questão judaica, Boitempo, 2010, p. 48 e 50).

Outros movimentos, em oposição, lutam por uma escola que deixe de condenar eternamente as nossas crianças e jovens à condição de trabalhadores assalariados explorados. Não querem a formação de seres humanos passivos, simplesmente conformados pela sociedade capitalista. Eles lutam pela emancipação dos seres humanos de seu egoísmo, individualismo, isolacionismo e desorganização. Lutam por uma escola que permita aos homens e mulheres se organizarem como “forças próprias, como forças sociais, e, em consequência, não mais se separem de si mesmos a força social na forma da força política. Enfim, que sejam observadores e conhecedores das coisas, trabalhadores associados e fruidores das delícias que existem na face da Terra.

A palavra de ordem destes movimentos, essencialmente humanistas e cristãos, é que as escolas deixem de adorar o “deus do mercado”, que se “mundanizou” e “se transformou em deus do mundo”.



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Geral do PPG Desenvolvimento e Educação Teotonio dos Santos (ProDEd-TS)

2 comentários:

Rafael Macena disse...

Boa reflexão, professor. Deixo uma questão: num país de dimensões continentais e grandes diversidades, bases curriculares regionais seriam interessantes?

Zacarias Gama disse...

Caro Rafael, obrigado pelo comentário.
As BCs regionais são interessantes sim. Mas também são necessários elementos unificadores. Nada contra BC para o N, S, Sudeste, Centro-Oeste e Norte. O problema é que somos brasileiros e não indivíduos circunscritos às suas regiões. Somos nordestinos, sulistas, nortistas etc mas somos, sobretudo, brasileiros: somos singulares e plurais. Isto quer dizer que as BCs precisam conter elementos regionais e Brasileiros. Se eu sair da minha região não sou um estrangeiro noutro território do Brasil.
Este principio tem validade ampla: sou nordestino e brasileiro e, ao mesmo tempo, cidadão do mundo. Não gosto da ideia de confinamentos regiões ou de guetos. Penso que o mundo é de todos nós e a conquista do mundo e das suas delícias deve ser um projeto de todos nós.

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