Zacarias
Gama[1]
A
sociedade brasileira tem algumas características interessantes. Uma delas é
tratar as coisas pelas suas aparências mais exteriores. A escola, por exemplo,
de tão presente em nossas vidas desde muito cedo penetra em nossas consciências
e nos marca pela regularidade, imediatismo e evidência e nos referimos a ela a
partir de boas ou más vivências, lembranças etc. Definimo-la pelos seus
aspectos mais externos e tangíveis. Formamos dela uma compreensão muito
limitada, difusa e incoerente por ser imediata e superficial. Isto, entretanto
não quer dizer que todos temos a mesma compreensão, ela varia de grupo para
grupo, lugar e tempo. O senso comum nunca é unitário. Professores, estudantes,
autoridades, empresários e políticos têm diferentes compreensões dela. Para os
primeiros pode ser lugar de trabalho, realizações e decepções; para os
estudantes, local de encontros, socialização, coleguismo e também de
sacrifícios e sucesso. As autoridades, por sua vez, podem compreendê-las como
sendo dóceis ou difíceis face às determinações provenientes das suas
repartições, precarizadas ou não quando precisam usar verbas de manutenção, enfim,
as escolas para as autoridades gerenciais podem ser um conjunto de muitas
preocupações. Os empresários veem-nas como locais de formação de trabalhadores
dóceis, competentes e conformados com a exploração que sofrem nos lugares de
trabalho. Os políticos, por último, podem usá-las para promover seus mandatos e
garantir votos, para fazer delas cabides de empregos para seus apaniguados.
Indagando
a alguns estudantes universitários o que é escola, verifico que a compreendem
como “local de aprendizagens,
conhecimentos, relações, é uma família”; “espaço onde são discutidas muitas
coisas, é um local de trocas e aquisição de conhecimentos”; “a escola é um
ambiente de aprendizagem, reflexão”; “para além do espaço formal – salas de
aula etc. –também compreende a comunidade, a rua, a igreja, ambiente
familiar...”; “um local para além da aprendizagem, é local de convivência,
socialização”; “é a segunda casa da gente”. É preocupante a compreensão idílica
da escola, ela inunda a sociedade e até alguns meios acadêmicos. É o império do
senso comum. Como Gramsci recomenda, é imperativo, então, substituir
didaticamente esse senso comum e as velhas concepções de escola que perduram na
mentalidade popular. O esforço de elevação da compreensão popular é a nossa
finalidade se queremos uma elite intelectual de um novo tipo.
O fato é que as compreensões de senso comum da escola se constituem
como desviantes dos caminhos que precisamos trilhar em nossas lutas pela escola
emancipadora e de educação de qualidade referenciada socialmente. Ela precisa
ser compreendida como importante aparelho privado de hegemonia com finalidades
bem definidas em nossa sociedade capitalista de classe. Para início de uma nova
compreensão do que é a escola, ela exige ser definida como instituição que
organiza, faz mediações e reproduz a hegemonia da classe dominante, constituída
pelos grandes empresários da indústria, comércio, agricultura, serviços e
bancos. A Lei de Diretrizes e Bases a considera como instituição pública
destinada a oferecer “educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima
de sua residência a toda criança a partir do dia em que completar 4 (quatro)
anos de idade”, com princípios e objetivos bem ajustados legalmente. O Artigo 2
da LDB, por exemplo, define que a sua finalidade é “o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho” e, para tanto, são estabelecidas bases curriculares comuns a partir
das quais isto deve acontecer, considerando currículos, livros didáticos,
tempos de aulas, duração do ano letivo etc.
Quando nos referenciamos à LDB tudo
fica bem claro: a escola prepara os estudantes para a cidadania própria de uma
sociedade de classes, na qual a propriedade privada determina o lugar social de
cada um. E a escola faz isto com esmero, destacando os melhores alunos e
indicando-os para representá-la nos mais variados eventos escolares e oficiais;
ensinando crianças e jovens a cuidarem dos seus materiais escolares individuais
e pondo neles os seus nomes, deixando bem à mostra quais são os seus
proprietários; atribuindo notas aos trabalhos escolares de forma a
condicioná-los a não reclamar quando os patrões estabelecerem o valor dos seus
salários; a serem produtivos, empenhados e pontuais na realização das suas
tarefas...
Ela, a escola, ainda os qualifica
para o trabalho ao adotar pedagogias e currículos referenciados por
competências e habilidades requisitadas pelo mundo do trabalho. Marise
Ramos, no Dicionário da Educação do Profissional da Saúde, enfatiza que a
“possibilidade virtuosa de relacionar as atividades pedagógicas às situações de
trabalho e à prática social em geral está no horizonte (...) da formação plena
dos trabalhadores”. Em outras palavras, esta escola subordinada pelo mercado
condena crianças e jovens a não terem outra vida senão a de trabalhadores
assalariados. O condutivismo-funcionalismo-construtivismo que impregna as
pedagogias e currículos referenciados a competências e habilidades não deixa
margem para as crianças e jovens serem sujeitos do mundo em que vivem, ou nas
palavras de Johann
Comenius, as escolas com tais pedagogias e currículos não os preparam “para
conhecer as coisas, que, neste maravilhoso anfiteatro (O Planeta Terra), se
oferecem às suas observações, como para fazer aquelas coisas que se lhes ordena
que façam, como, finalmente, para gozar daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo
Criador lhes oferece (como a um hóspede que esteja em sua casa) para a fruição
deles” (Capítulo X). Tampouco os prepara para os mais altos postos de trabalho
e remuneração, o ensino que oferece é para a massa de trabalhadores de origem
pobre, periférica e negros; as grandes empresas corporativas, em todas as áreas
de produção e serviços, forma a sua elite de CEOs, executivos e poderosos
gerentes com egressos de instituições educativas de altas mensalidades na qual
a presença de brancos constitui a regra.
Por sorte, as escolas são
marcadas pela dialeticidade dos seus cotidianos impedindo que seja totalmente
formativa conforme as determinações capitalistas. Os professores, estudantes,
funcionários e pais de alunos são capazes de lhe impor resistências, quando se
insurgem contra a escola reprodutivista forçando-a a ir para diante, a relaxar
os determinantes do capital.
O campo em que a escola se
inscreve é constantemente tensionado pelas forças sociais organizadas.
Movimentos, institutos e fundações claramente capitalistas, tais como o Todos
pela Educação, Escola Sem Partido, Instituto Ayrton Senna, Itaú Cultural,
Fundação Xuxa Meneguel, Fundação Roberto Marinho, Fundação Bradesco e tantos
outros, se empenham em garantir que a escola cumpra o seu desígnio de desenvolver
com qualificação e competência o futuro trabalhador e cidadão burguês. São
egoístas por excelência porquanto exigem uma formação especial, exclusiva para
a sociedade burguesa. Ou como dizia Marx, exigem a “formação de homens
egoístas, de homens separados dos homens e da comunidade (...), recolhidos aos
seus interesses privados e aos seus caprichos privados (Sobre a questão
judaica, Boitempo, 2010, p. 48 e 50).
Outros movimentos, em oposição,
lutam por uma escola que deixe de condenar eternamente as nossas crianças e
jovens à condição de trabalhadores assalariados explorados. Não querem a
formação de seres humanos passivos, simplesmente conformados pela sociedade
capitalista. Eles lutam pela emancipação dos seres humanos de seu egoísmo,
individualismo, isolacionismo e desorganização. Lutam por uma escola que
permita aos homens e mulheres se organizarem como “forças próprias, como forças
sociais, e, em consequência, não mais se separem de si mesmos a força social na
forma da força política. Enfim, que sejam observadores e conhecedores das
coisas, trabalhadores associados e fruidores das delícias que existem na face
da Terra.
A palavra de ordem destes
movimentos, essencialmente humanistas e cristãos, é que as escolas deixem de
adorar o “deus do mercado”, que se “mundanizou” e “se transformou em deus do
mundo”.
[1]
Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Coordenador Geral do PPG Desenvolvimento e Educação Teotonio dos
Santos (ProDEd-TS)
2 comentários:
Boa reflexão, professor. Deixo uma questão: num país de dimensões continentais e grandes diversidades, bases curriculares regionais seriam interessantes?
Caro Rafael, obrigado pelo comentário.
As BCs regionais são interessantes sim. Mas também são necessários elementos unificadores. Nada contra BC para o N, S, Sudeste, Centro-Oeste e Norte. O problema é que somos brasileiros e não indivíduos circunscritos às suas regiões. Somos nordestinos, sulistas, nortistas etc mas somos, sobretudo, brasileiros: somos singulares e plurais. Isto quer dizer que as BCs precisam conter elementos regionais e Brasileiros. Se eu sair da minha região não sou um estrangeiro noutro território do Brasil.
Este principio tem validade ampla: sou nordestino e brasileiro e, ao mesmo tempo, cidadão do mundo. Não gosto da ideia de confinamentos regiões ou de guetos. Penso que o mundo é de todos nós e a conquista do mundo e das suas delícias deve ser um projeto de todos nós.
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