Há uma ingenuidade intelectual aqui no Brasil, entre nós,
que me deixa boquiaberto. Somos tão espertos que muitos chamam a NASA para
estudar os produtos da nossa criatividade, mas quando se trata de interpretar
determinado autor há uma preguiça crônica de ler e criticar que facilmente
permite que tal autor ocupe o primeiro lugar de vendas, lote auditórios e fique
sem agenda para novas palestras.
Como exemplo de autor incensado entre nós cito o acadêmico
português Boaventura Santos que, sem críticas aprofundadas no meio acadêmico e social, aparece no plano
teórico como sendo progressista e inovador em seus escritos sobre
epistemologia, justiça social e conhecimento marginalizado. No plano prático e político
ele não está nem aí para as consequências materiais do que defende, como
ocorreu por ocasião da integração de Portugal à UE e, de forma mais sutil, com
o modelo de universidade empresarial que propõe. Aqui entre nós, pouca atenção
se dá ao Senhor Boaventura Santos quanto a sua ética acadêmica,
responsabilidade intelectual e compromisso com as classes populares (que é
nenhum).
O intelectual da vez é o jovem acadêmico Yuval Noah Harari (Haifa, 24 de fevereiro de 1976 – 49 anos) e os seus best-sellers Sapiens e Homo Deus. Neles defende em tese que nos tornamos capazes de dominar o planeta porque somos capazes de cooperar em larga escala e acreditar em ficções coletivas – mitos, religiões, ideologias, dinheiro, leis e nações. A chave para tal seria a nossa imaginação compartilhada o que, aliás, nos distingue das demais espécies. A nossa história segundo diz, é a história das nossas ficções. Até aqui, tudo bem, sem muitos problemas.
Mas quando ele entra na era da Revolução
Científica, Industrial e Tecnológica um problema sério emerge, a coisa fica complicada. A sua
Inteligência Artificial (IA), na medida em que vai dominando o modo de
produção, vai criando uma categoria de trabalhadores não mais necessária para a
produção ou funcionamento da sociedade. Os integrantes desta categoria perdem relevância
econômica e funcional , algo semelhante ao que acontece
com os “selvagens” de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo que não foram condicionados
pela sociedade tecnocrática do Estado Mundial.
Eu acho sempre perigoso não criar saídas para os “inúteis’ de um modo de produção controlado por IA. Alguns ficcionistas já chamaram a atenção para a tragédia que pode acontecer, em filmes como A Ilha (2005) e Elysium (2013). Nestes filmes os excluídos são eliminados de variadas formas, até com comemorações alegres como no filme A Ilha. Mas não precisa haver a morte de ninguém. Thomas More, por exemplo, no seu livro Utopia, colocou a elite a evoluir espiritualmente por meio da poesia, literatura, música, artes etc. enquanto os escravos tratavam de lhe garantir a sobrevivência material. Dennis Feltham Jones autor de Colossus, filmado sob o título de “Colossus 1980 – o projeto proibido", mais recentemente também encontrou uma saída humanitária: ele levou os seus computadores a encontrar um modo de manter vivos, saudáveis e alegres todos aqueles que foram expelidos do modo de produção. Os computadores conectados, o dos EUA e o da Rússia, trabalhavam para a humanidade ficar de boa, como a rapaziada fala.
Eu também penso não ser necessário descartar pessoas, sou radicalmente contra qualquer forma de liquidar pessoas; afinal o ócio criativo está aí e pode muito bem ser uma saída desde que seja superada a forma social capitalista, como fala Istvan Mészaros. Em uma sociedade totalmente controlada pela IA, onde a propriedade e a acumulação privada já não existissem mais e o trabalho tivesse deixado de ser meio de sobrevivência e se tornado atividade livre e consciente, não seria fantástico se todos tivéssemos tempo de autorrealização, de criação e de desenvolvimento humano integral?
Muito embora sem sucesso, pelo mundo afora, diversas cidades têm experimentado garantir renda básica para todos aqueles que estiverem fora do mercado de trabalho. As experiências, contudo, atestam que "a ideia de trabalhar menos e receber uma renda estável, humana e básica ganha impulso e começa a influenciar o debate de maneira inimaginável há dez anos" (https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/renda-cidada-ocio-criativo-e-o-futuro-do-trabalho/)
As teses de Harari, a despeito da problemática imediata, não deixar de chamar atenção para o fato de ser ainda extremamente perigosa para os idosos e doentes,
os quais, de forma semelhante aos trabalhadores obsoletizados pelas IA, também se tornariam dispensáveis socialmente.
Assim, como se pode perceber, o problema da aceitação imediata — e quase sempre acrítica — das teses de certos autores da moda não é apenas intelectual: é também ético e político. Quando a razão abdica de seu papel questionador, o pensamento se transforma em consumo. E o consumo, nesse caso, não se dá em vitrines, mas em livros, palestras e citações que passam a circular como dogmas modernos.
Essas teses, travestidas de novidade, podem naturalizar falsas verdades e anestesiar o impulso de pensar. Ao se instalarem como verdades consensuais, tornam-se matrizes de políticas públicas e decisões institucionais que, em vez de emancipar, reproduzem e sofisticam as velhas desigualdades sociais e econômicas.
Resistir a essa nova forma de servidão intelectual exige o retorno à educação crítica — não a que deposita conteúdos, mas a que forma consciências vigilantes. Exige também o cultivo da dúvida metódica, o exercício coletivo da argumentação e o compromisso com a clareza das ideias e com a transparência dos métodos. Só assim a crítica volta a ser o que deve ser: o oxigênio da vida pública e o antídoto contra a domesticação do pensamento.
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