O Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão encaminhando às Instituições Federais de Educação Superior (IFES) e à sociedade a proposta de unificação dos processos seletivos a partir da reestruturação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Traduzindo em miúdos, tal Proposta visa objetivamente atingir dois alvos. O primeiro, sem dúvida, é o de criar um processo unificado de seleção de candidatos ao ensino superior, isto é, um novo modelo de vestibular unificado; o segundo, forçar a reestruturação de currículos no ensino médio.
Frente a tal Proposta a reflexão não pode ser superficial porquanto têm impactos sociais e políticos fortes, talvez fortíssimos sobre os currículos do ensino médio e sobre a sociedade. Vejamos isto com mais vagar.
A existência de um vestibular unificado não constitui novidade no cenário educacional brasileiro. Durante todo período ditatorial ele foi realizado com o sucesso pretendido pelo poder militar que dominava o Estado. Os exames se realizavam em todo território nacional, nos mesmos dias e horas, como meio de fixar os vestibulandos em seus estados e impedir o excedente de candidatos nos estados onde estavam as IFES mais atraentes. Os candidatos aprovados, no ato das suas matrículas, considerando seus níveis de proficiência nas provas, conseguiam suas vagas nas universidades e nos cursos que indicavam por ordem de preferência.
A Proposta atual, igualmente unificadora, não deslegitima contudo, os vestibulares feitos por cada IFES a partir do processo de abertura política pós-ditadura, nem sequer a natureza meritocrática deles. Sua inovação, de matiz essencialmente conservador, está na argumentação de apelo social voltado para os estudantes mais pobres e na sua imposição sobre a estrutura curricular do Ensino Médio. Ela aposta nos potenciais de um processo unificado de seleção com base em dois argumentos: a atual descentralização dos processos seletivos restringe o poder de competição dos mais pobres ao favorecer os candidatos com maior poder aquisitivo para diversificar suas opções, e também porque contribui para diminuir a capacidade de recrutamento das IFES localizadas em centros menores, o que lhes permite ter vagas ociosas. A Proposta, então, é que cada candidato faça o novo vestibular em sua cidade de residência, concorrendo às IFES que indicar preferencialmente; por hipótese, em situação de mais igualdade em relação ao mérito dos demais participantes.
Uma preocupação é, entretanto, clara na proposta do MEC/INEP. Ela pretende forçar a elevação dos percentuais de estudantes residentes nos estados onde estudam. Segundo os dados do próprio MEC-INEP apenas 0,04% de estudantes brasileiros residem nos estados onde estudam, configurando-se assim uma migração muito maior do que a existente nos EUA; lá, a maioria permanece em seus estados e cidades e somente 19,2% se aventuram em estudar longe das suas famílias.
Esta constatação é significante e imediatamente suscita a questão: por que os estudantes saem dos seus estados e cidades para estudar? Espírito de aventura a despeito dos sacrifícios pessoais e familiares ou por que não encontram em seus torrões natais os meios necessários ao atendimento das suas demandas? Um simples olhar sobre o grande interior brasileiro permite-nos afirmar que eles saem em busca da melhor formação. Na Região Sudeste e em algumas capitais eles encontram as melhores instituições de ensino básico e superior, em absoluto contraste com o interior ressalvando-se, todavia, as poucas exceções que existem, tais como Santa Maria no Rio Grande do Sul, Campina Grande na Paraíba, Viçosa em Minas Gerais e outras. Esta constatação também traz à luz a precariedade do sistema educacional nos lugares mais ignorados do Brasil e a imediata necessidade de dotá-los com uma rede de escolas de qualidade, como condição de fixação dos estudantes. Tal constatação, porém, não é de hoje. Desde a primeira edição do Enem, em 1998, ela já era visivelmente objetiva. A perplexidade que provoca tão somente demonstra a negligencia dos gestores das políticas educacionais quanto às políticas de reversão do fenômeno ao longo de uma década.
O segundo objetivo da Proposta também se apresenta como problemático ao forçar a reestruturação dos currículos no ensino médio com base numa concepção de prova focada em uma matriz de habilidades e conteúdos mais relevantes. Tenta-se com argúcia avaliativa, em primeiro lugar, a reestruturação curricular que os Parâmetros Curriculares Nacionais não foram capazes de efetivar, a despeito da “sedução” que podiam ter. Agora, cada unidade escolar de ensino médio, pública ou particular, laica ou não, deve orientar seus estudantes para o vestibular do MEC/INEP se quiser manter sua credibilidade no mercado de certificações. Em segundo lugar, afirma e reafirma a centralidade do MEC na orientação do Sistema Nacional de Educação Básica. Tal qual Fênix o MEC, então, ressurge “empoderado” (empowerment), com poderes para subordinar todos os currículos à lógica da matriz de competências e habilidades, a qual se compraz com as imediatas demandas mercadológicas. O corolário disto é relegar a planos secundários os compromissos com a educação que visa o homem em sua totalidade. Passa-se a educar o homem somente para que aprenda a sobreviver em situações adversas e de câmbios rápidos e globalizados. É a subordinação da educação ao atual estágio economicista que acaba predominando sobre os valores afetivos, intelectuais, estéticos e todos os outros indispensáveis às lutas pelas transformações sociais.
Parte-se do principio que as unidades escolares, mesmo as escolas de ensino médio melhores posicionadas nos rankings de proficiência ensino médio, são inconsistentes, frágeis e incapazes em suas diferentes formas de estruturar seus currículos e demais práticas pedagógicas; que elas não se subsumem aos anseios e necessidades de alcançar patamares de desempenhos acadêmicos similares aos dos países mais desenvolvidos educacionalmente. A sanha tecnocrática a serviço dos interesses de mercado, da realização do capital e do desenvolvimento da sociedade capitalista aposta numa educação de cidadãos passivos dedicados às demandas do mercado. É, de fato, possível que os estudantes se tornem profissionais eficientes, capazes, portadores de habilidades específicas, flexíveis, empreendedores etc., mas não tenhamos dúvidas, constrói-se ao mesmo tempo uma futura sociedade na qual, como diria John Stuart Mill, "as opiniões, os sentimentos, as idéias comuns são cada vez mais substituídas pelos interesses particulares". A complexidade da sociedade capitalista que visa saciar-se em suas exigências de mais especialistas, passaria a ter uma multidão cada vez mais ampla de pessoal especializado, com o vulgo cada vez mais excluído das decisões mais importantes para a construção de um projeto societário no qual todos os cidadãos se apropriam dos bens socialmente criados e têm condições de atualizarem suas potencialidades de realização humana.
A proposição do vestibular unificado em bases tecnocráticas pouco contribui para os processos de democratização; está aliás na contramão deles. Tecnocracia e democracia são antitéticas. A tecnocracia é excludente na medida em que “pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos” como Norberto Bobbio nos adverte. O estado de conformidade que internaliza gera elevado desprezo pelo homem simples e procura mantê-lo distanciado das decisões políticas de interesse coletivo por ser considerado ignorante demais. Por que antes de tal proposição não se objetiva a reforma estrutural do sistema de educação nacional, de modo a permitir que as escolas dos mais longínquos grotões deste país ofereçam condições de ensino e educação semelhantes às dos grandes centros?
Publicado no Jornal Folha Dirigida, Caderno Educação, Coluna Sem Censura, edição do dia 07 de abril de 2009.
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