5.6.20

Educação a distância em tempos de pandemia e a reprodução da desigualdade social

Publicado no site https://www.justificando.com/2020/04/15/educacao-a-distancia-em-tempos-de-pandemia-e-a-reproducao-da-desigualdade-social/ 



A pandemia provocada pelo novo coronavirus – Covid-19 – que assola o mundo e impõe o isolamento social generalizado, fechando as pessoas em suas casas, está mantendo metade dos estudantes de todo o mundo longe das salas de aulas, em ambos hemisférios do globo terrestre.
  A OMS – Organização Mundial da Saúde – já prenunciou a perda do semestre letivo. Os pais estão em polvorosa com a suspensão das aulas,  com os filhos em isolamento dentro de casa e com criatividade insuficiente para mantê-los calmos e ocupados. Alguns segmentos da sociedade começam a pressionar as autoridades escolares exigindo oferecimento de lições por meio das novas tecnologias de comunicação. 
 Aqui no Estado do Rio de Janeiro oferecer ou não oferecer educação a distância está na agenda do dia. Grande quantidade de pais exige-a. A Secretaria de Educação – SEDUC – é favorável e exerce pressão sobre o professorado para o seu oferecimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda que a SEDUC suspenda as atividades não presenciais por meio de qualquer plataforma educacional previstas para começar no dia 13 de março. 
 O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital não é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento agem açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e de forma autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de Internet fosse gratuito, universal e de qualidade igual para aproximadamente 250 mil estudantes e 40 mil professores. Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à realidade socioeconômica de discentes e docentes que, em grande parte, somente têm acesso por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro. Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm péssima cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance. 
 Um dia admiti igualmente fetichizado e com arrogância a possibilidade de oferecer ensino de qualidade universalmente a todos os estudantes de todas as regiões brasileiras. Hoje admito o meu grau de idealismo e a impossibilidade de oferecer EaD, dadas as desigualdades sociais e regionais do Brasil. Ainda há regiões desprovidas de luz elétrica de qualidade durante as vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores a diesel são desligados as 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas ainda são indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que habitam estes lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade de usar os recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem tenha de subir em árvores para obter melhores sinais. 
 Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de Internet, mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteligentes. Não são todos os usuários que acessam esta rede e tem dinheiro suficiente para pagar os serviços técnicos indispensáveis. O consórcio público de educação a distância, do qual sou um dos fundadores, organizado pelas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, o CEDERJ, registra anualmente elevado índice de evasão exatamente por conta de dificuldades técnicas que os estudantes enfrentam com as suas máquinas e locais de recepção. 
 A cidade do Rio de Janeiro, dada a sua geografia, também reproduz a mesma realidade das demais regiões do país, a despeito de ser uma capital. Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico, Humaitá ou Barra da Tijuca é uma coisa que chega a ser prazerosa; outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça. Muitos estudantes destes lugares, inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais quando eles permitem e mesmo assim com tempo contado. 

Educar para quê?









Art.1º. Todos os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 6º. Todos os cidadãos são iguais aos olhos da Lei e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão - 1789


Passados mais de duzentos e trinta anos da promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a sociedade mundial ainda se encontra distante de garantir a liberdade e a igualdade de direitos a todos. No Brasil então nem se fala, a distância é enorme entre a cidadania plena e a de segunda classe. Pobres, negros, LGBT, indígenas, quilombolas, mulheres, portadores de necessidades especiais, imigrantes pobres e outras minorias continuam sendo tratados como cidadãos de segunda classe, isto é, continua a lhes ser negada a cidadania plena, são estigmatizados como menos capazes.

Inúmeras razões de diversas ordens contribuem para alijar estas pessoas da cidadania plena. Em uma sociedade de classes, todos aqueles abaixo da classe dominante são tratados cotidianamente como inferiores seja porque são despossuídos de bens materiais; são de etnias, idioma, religião e gêneros diferentes. Muito embora a ciência contemporânea já tenha demonstrado que todos os seres humanos têm o mesmo genoma, isto é, as mesmas informações hereditárias codificadas no DNA, ainda persistem as diferenças historicamente construídas.

Ora, mas se tais diferenças são históricas é, então, possível que possam deixar de existir; por exemplo, se algum dia ocorrer a extinção da propriedade privada, desaparecerá, consequentemente, a distinção entre proprietários e não-proprietários. O direito de exploração da terra será igual para todos e a partição dos produtos agrícolas obedecerá a outras combinações. O mesmo ocorrerá com o fim da exploração do trabalho alheio por meio de escravização, corveias e assalariamento; quando somente existir o trabalho associado, ou melhor, quando os produtores livremente se associarem para produzir e suprir as necessidades materiais da humanidade, a ninguém mais será negado sequer um pedaço de pão. 

A educação escolar, pública, gratuita e de qualidade referenciada socialmente pode contribuir concretamente para a inexistência de cidadãos de segunda classe, como se lê no clássico Didática Magna: “ensinando tudo a todos de igual modo” (Comenius, 2001)[2]. A falta de qualidade necessária à promoção e emancipação dos indivíduos é perversa e favorece a reprodução das diferenças sociais. Enquanto a educação escolar, nos termos em que a coloco, estiver longe de ser equalizadora e democrática, haverá discriminação entre aqueles que a receberam e aqueles que estiveram distantes de usufruir dela.

No mundo ocidental há muito se reconhece a importância da educação para tornar as pessoas, como sujeitos históricos iguais a todos os demais, donas de seu próprio destino com pensamento próprio e autônomo. J-J. Rousseau, em sua obra Emílio, defendeu exatamente isto, a educação como instrumento de emancipação dos homens e mulheres. John Dewey seguiu esta mesma linha e em sua perspectiva a educação deve propiciar aos educandos condições para que resolvam por si mesmos os seus problemas. Durkheim reivindicou para educação a capacidade de desenvolver nos educandos estados físicos, intelectuais e morais indispensáveis à participação do indivíduo na sociedade. O patrono da educação brasileira, o grande mestre Paulo Freire, acrescentou as suas preocupações com a humanização coletiva da sociedade; para ele cabe, também, à educação a responsabilidade de alargar os horizontes cognitivos dos estudantes e apontar caminhos que favoreçam a construção de uma nova sociabilidade, mais justa, igual, fraterna e humanizada. Toda a legislação escolar brasileira está afinada com este entendimento acerca das finalidades da educação; na LBD está escrito que a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1996)[3].

Entre os grandes pensadores é consensual que a educação deve promover a emancipação e a autonomia dos educandos, o alargamento dos seus horizontes cognitivos e a sua formação moral, ética e política para a sua inserção social como cidadãos. Em todos eles está presente a ideia de igualdade entre todos os seres humanos. A única nota fora do tom, no entanto, é dada pela legislação brasileira na medida em que visa conservar a sociedade conforme o seu ordenamento jurídico, social, político etc. e qualificar os estudantes para o trabalho segundo a lógica da Teoria do Capital Humano. Numa simples comparação com a Didática Magna de Comenius vê-se o quanto a LDB restringe as possibilidades humanas. Segundo esse bispo protestante, que viveu na Morávia no século XVII, a escola deve “ensinar tudo a todos de igual modo” para que possam igualmente fruir as delícias existentes no Planeta Terra, colocadas à disposição:
As próprias coisas, enquanto nos dizem respeito, não podem ser divididas senão em três espécies. Na verdade: algumas são apenas objeto de observação, como o céu e a terra e as coisas que neles existem; outras são objeto de imitação, como a ordem admirável espalhada por toda a parte, a qual o homem tem obrigação de exprimir também nas suas obras; outras, enfim, são objeto de fruição, como o favor da divindade e a sua multíplice benção, neste mundo e para sempre. Se o homem deve ser semelhante a estas coisas, importa necessariamente que se prepare, tanto para conhecer as coisas, que, neste maravilhoso anfiteatro, se oferecem à sua observação, como para fazer aquelas coisas que se lhe ordena que faça, como, finalmente, para gozar daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo Criador lhe oferece (como a um hóspede que esteja em sua casa) para sua fruição (Comenius, 2001).

A condenação da estudantada brasileira ao trabalho e à reprodução de uma sociedade burguesa e classista tem como efeito a manutenção do status quo da classe dominante atrasada, egoísta e concentradora da riqueza nacional. Ademais, nega-se-lhe a capacidade de adquirir competências para além do mundo do trabalho. Em uma pequena comparação entre a Base Nacional Curricular Comum, promulgada pelo governo brasileiro em 2017 e a Nova Agenda de Competências Para a Europa (2016), vê-se, por exemplo, como os europeus primam para que os seus estudantes desenvolvam com espírito crítico competências mais elevadas voltadas ao empreendedorismo, mundo digital e à cultura financeira; mas, não apenas isto.  Esperam ainda que o futuro cidadão – livre, autônomo, democrático, despido de preconceitos, criativo, responsável e consciente de si e do mundo em que se insere – seja capaz de rejeitar todas as formas de discriminação e exclusão social, reconhecer a importância e os desafios colocados pelas Artes, Humanidades, Ciência e Tecnologia “para a sustentabilidade social, cultural, econômica e ambiental” do seu país e do mundo; que saiba lidar “com a mudança e a incerteza num mundo em rápida transformação”, que “valorize o respeito pela dignidade humana, pelo exercício da cidadania plena, pela solidariedade com os outros, pela diversidade cultural e pelo debate democrático” (Gama, 2018)[4].

A finalidade da educação, portanto, vai além do preparo do estudante para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É preciso que ela o prepare para jamais ser inferior aos seus semelhantes em suas relações sociais costumeiras e para que possa fruir as delícias planetárias colocadas à disposição para o seu deleite e elevação espiritual.
Precisamos, então, rever a educação nacional! O Brasil precisa de homens e mulheres iguais, livres, democratas e sem submissão ao o quê ou a quem quer que seja. 


[1] Professor Titular do Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação (DEPAG), Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
[2] COMENIUS, I. Didática Magna. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001  Disponível no site: https://www2.unifap.br/edfisica/files/2014/12/A_didactica_magna_COMENIUS.pdf. Acesso em dezembro de 2019.
[3] BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases. Disponível no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em dezembro de 2019



14.5.20

Adiar o ENEM é questão de justiça social


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As provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) estão marcadas para novembro, mas face à pandemia provocada pelo Novo Coronavírus – Covid19 – e o consequente fechamento das escolas e cursos preparatórios, é grande o clamor nacional pelo seu adiamento. As alegações dos estudantes procedem. Até a juíza Marisa Cláudia Gonçalves Cucio, da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo, sentenciou favoravelmente ao seu adiamento, alegando que “os alunos da rede pública não estão assistindo as aulas com o conteúdo programático cobrado no Exame”; que grande parte dos estudantes da rede pública não “possuem acesso ao ensino à distância (EAD) e diversas outras ferramentas eletrônicas de aprendizado”; e que “nem mesmo é possível afirmar que todas as escolas particulares estão disponibilizando aulas por vídeo ou atividades similares uma vez que a pandemia e as normas de isolamento social determinaram o fechamento das instituições de ensino” (Portal Agência Brasil, 2020)[1].

O Ministério da Educação até o presente parece ter ouvidos moucos. Em seu microblogue o Senhor Abraham Weintraub, o Ministro, foi categórico usando poucas palavras: “O Brasil não pode parar!” Vai ter Enem!”. E ainda acrescentou: “70% fez o pedido de isenção da taxa do Enem 2020 pelo celular, smartphone” (idem).

A perversidade e a intransigência do Ministro não causam qualquer estranheza, dado o seu alinhamento político-ideológico ao bolsonarismo e ao olavismo. O seu chefe, o presidente da República, desde o primeiro momento da pandemia mundial menosprezou a sua intensidade e letalidade, considerou-a como uma “gripezinha” ou um “resfriadinho” e deixou claro que a economia não poderia parar, ainda que muitas mortes fossem inevitáveis. Para o “filósofo” negacionista Olavo de Carvalho, o seu guru, “essa epidemia simplesmente não existe”, “é a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana” (Isto É, 2020)[2]. Bolsonaro, Weintraub e Carvalho são contrários ao isolamento social e, portanto, defendem com unhas e dentes a reabertura de todos os setores da economia. Se morrerem milhares de brasileiros, qual é o problema? E daí?

Mas nem só de perversidade e intransigência se alimenta o Ministro. O autoritarismo, o antidemocratismo e a ignorância sobre o Brasil também integram o seu cardápio. Manter as provas do Enem em novembro é a mais absoluta prova de ignorância acerca das desigualdades que tornam o nosso país um dos mais injustos na face do Planeta; ele somente perde para o Catar em concentração de renda. Esta discrepância determina também a concentração de melhores escolas, universidades, cursos de pós-graduação com avaliação igual ou superior a cinco, institutos de pesquisas, bibliotecas, teatros, cinemas etc. nas regiões Sudeste e Sul. Isso vale também para os sinais de telefonia celular e Internet, cujas sombras, isto é, áreas com baixo ou nenhum sinal, castigam as populações mais pobres das periferias urbanas e do campo, distantes do alcance das antenas das operadoras. A alegação do Ministro de que 70% de pedidos de isenção da taxa de inscrição ao Enem 2020, chega a ser um deboche porque desconsidera a precariedade dos aparelhos, a qualidade do sinal, a quantidade de créditos e o tamanho das memórias; um smartphone pré-pago, regra geral, tem menos de 100 GB de memória e, portanto, grande dificuldade de receber uma aula com textos, áudio e vídeo. Na Baixada Fluminense, por exemplo, entre 40 e 45% dos inscritos no Enem não têm computadores domésticos e os seus telefones pré-pagos às vezes são dos pais e o seu uso é controlado.  

Não bastassem os problemas de ordem técnica, é preciso considerar ainda a desigualdade na distribuição do professorado de qualidade no território brasileiro. Os melhores e mais qualificados, aprovados em concursos públicos e incorporados ao corpo docente de alguma escola particular de boa reputação, mesmo que inicialmente sejam alocados em escolas de periferia, têm grande mobilidade no interior do sistema educacional e em pouco tempo conseguem se transferir para as escolas mais centrais, mais bem equipadas e com equipes bem avaliadas pelos núcleos centrais e sociedade. Grande parte do professorado, formada em instituições de ensino superior, mal avaliadas pelo MEC, em um mercado de trabalho bastante competitivo, acaba se tornando docente nas piores escolas de periferia, interior e meio rural. O efeito imediato é a mobilidade estudantil, daqueles que têm mais recursos, em direção às escolas e cursos preparatórios de maior fama, muitos a quilômetros de distância dos seus locais de residência. O fechamento de escolas por conta do isolamento social impõe grande prejuízo à maior parte do alunado brasileiro, principalmente àqueles sem computadores domésticos, celulares possantes e sinal de qualidade. Deixar de reconhecer estes fatos chega a ser uma obscenidade.

Adiar as provas do Enem é um imperativo democrático. Não as adiar é aprofundar mais ainda as desigualdades sociais, impedir o acesso dos mais pobres e negros às universidades, garantir um fluxo de estudantes brancos e mais bem aquinhoados, para lá na frente privatizar todas as instituições de ensino superior e garantir aos empresários da educação baixos índices de inadimplência nas mensalidades. Se não houver adiamento, tornar-se-á mais evidente o caráter elitista deste governo, o seu desprezo pelo povo mais pobre e a sua aversão à democratização das oportunidades e justiça social. Outra face desta mesma hipótese é o interesse de diminuir a “tara dos estudantes por cursos de formação superior” e encaminhá-los aos “cursos técnicos de máquina de lavar e geladeira”, conforme declarou o presidente Jair Bolsonaro ao jornalista Heraldo Pereira durante entrevista ao Jornal das Dez, da Globo News em 28/8/2018.


[1] PORTAL AGÊNCIA BRASIL. Ministro diz que governo recorrerá de decisão sobre adiamento do Enem. WEB. 18/04/2020. Disponível no site: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-04/ministro-diz-que-governo-recorrera-de-decisao-sobre-adiamento-do-enem. Acessado em maio de 2020.   
 [2] ISTO É. Essa epidemia simplesmente não existe”, diz Olavo de Carvalho sobre coronavírus. WEB. Maio de 2020. Disponível no site: https://istoe.com.br/essa-epidemia-simplesmente-nao-existe-diz-olavo-de-carvalho-sobre-coronavirus/. Acesso em maio de 2020.


11.5.20

Educação, política e classe social. Parte do professorado reforça o bolsonarismo?

Publicado em Vermelho Org



Diante da ignorância de parcela considerável da sociedade brasileira, mais ou menos 30%, fico me perguntando se nós, o professorado, temos alguma parcela de responsabilidade na formação desta gente que sequer acredita nas milhares de mortes por Covid-19, que mitifica o senhor Jair Bolsonaro, que atribui a pandemia que assola o país à mídia antibolsonarista, que acredita na forma plana da Terra e em muitas outras coisas mais que até Deus duvida. De onde saiu tanta gente analfabeta em tantos assuntos?

Em sã consciência é impossível culpar o professorado em sua totalidade. Mas não se pode fazer vistas grossas  muito embora uma boa parcela seja bolsonarista de quatro costados, mesmo sabendo que este governo tem diversas medidas contra o magistério. Essa parcela docente precisa ser estudada. 

Tenho duas hipóteses a respeito. 
1. Ela vem sendo formada nas instituições de ensino superior, públicas e particulares, apenas em bases técnicas, isto é, para dar aulas de determinados conteúdos e ponto. E mesmo assim com um discutível domínio de conteúdo. O que sustenta esta hipótese é a baixa avaliação dos cursos de formação, públicos e particulares, no Ranking Universitário Folha (RUF). Dos 1800 cursos particulares e públicos existentes, mais ou menos 50%, são incapazes de atingir ao menos a metade da pontuação que os melhores são capazes de atingir. 

2. Os cursos de formação de professores definem o professor conforme a primeira parte da definição dada pelo dicionário Caldas Aulete, por exemplo: 
1. Indivíduo que se especializou em ensinar, em escola ou universidade; DOCENTE; MESTRE
2. Aquele que ensina algo (disciplina, atividade, arte, ofício, técnica etc.) a alguém
Parecem, talvez por conveniência, nunca ler no mesmo verbete que professor é  4. Aquele que professa (uma religião, uma dada concepção de mundo etc.).  E isto é muito ruim porque reduzem o professor a um sujeito técnico e asséptico, alienado por excelência. 

A soma das duas hipóteses tem como resultado um professor que conhece superficialmente o conteúdo de sua disciplina e, às vezes, de forma enviesada, e não está nem ai para a vida política, econômica, religiosa e cultural de sua gente. Nada questiona por insegurança e insuficiência de conhecimento. Sua formação e ele próprio se situam na contramão do que disse o mestre Paulo Freire: "a prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes" (Freire, 2001). 

E onde está o campo de atuação deste docente? A resposta parece ser óbvia, ele atua na periferia das cidades, nas cidades mais pobres e no campo, ou seja nos redutos políticos mais conservadores e reacionários, nos currais eleitorais dos piores políticos. Nestes redutos, para piorar as coisas, é obrigado a rezar pela cartilha do poder dominante e a se "aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes". Nestes redutos, não nos esqueçamos, está a força do bolsonarismo e do fundamentalismo religioso. Eles constituem os 30% da população que mantém o poder autoritário, antidemocrático e neofascista do atual governo. Os professores realmente deixam de assumir a educação como ato político indispensável à emancipação popular. Suas escolas se transformam em espaços de neutralidade política, como se isto fosse possível, e sem nada a ver com a luta de classes. Como diria Paulo Freire, o a favor deles situa-os em um certo ângulo, que é de classe, que é bolsonarista. 

A constatação que faço torna imperativo que revejamos a formação de professores no Brasil. É preciso que seja revestido do imperativo categórico de equidade formativa. Todos os cursos precisam cuidar da formação técnica e política, nenhum professor pode abdicar, em suas aulas, de posições políticas, éticas, estéticas, urbanistas e ecológicas. O ato educativo também precisa ser uma posição de classe, jamais a favor da classe dominante. 










6.5.20

Bicentenário da Educação Brasileira em 2022, cadê a nossa festa de arromba?

Foram alegres e suntuosas as comemorações do Centenário da Independência do Brasil em 1922. O ponto alto foi a Exposição Internacional, com a participação de treze países da Europa, América e Ásia. Na cidade do Rio de Janeiro, a capital da República, foram construídos diversos pavilhões de exposições, chamados “vitrines do progresso”, alguns dos quais ainda resistem heroicamente à inclemência do tempo e dos surtos tresloucados de modernidade: pavilhão da Administração (Museu da Imagem e do Som – na Praça Quinze); o palácio da França (Academia Brasileira de Letras); o palácio das Indústrias (Museu Histórico Nacional); e o pavilhão de Estatística (órgão do Ministério da Saúde). As exposições de produtos brasileiros e estrangeiros, filmes, conferências e muitas atividades artístico-culturais atraíram milhares de visitantes de várias partes do território nacional. O Brasil tinha o que mostrar e comemorar em termos econômicos e a Semana de Arte Moderna, que acontecia em paralelo, extasiava a todos com as exposições de escultura, pintura, arquitetura, saraus e debates literários. 
Cem anos depois, a fervura comemorativa dos 200 anos de Independência do Brasil já deveria estar próxima do ponto máximo. Deveria. Ao contrário da Argentina, Chile, Bolívia e outros países latino-americanos, por aqui nem há preparativos. Ou deixaremos para a última hora, ou faremos uma festinha improvisada e desenxabida. Os acontecimentos políticos de 2013 para cá jogam água fria na fervura e o governo bolsonarista se encarrega de abaixar o fogo e até apagá-lo. 
No campo da educação a festa que estava sendo preparada deveria ser de arromba. A partir da XXª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Organização dos Estados Ibero-americanos que se reuniu em Mar del Plata, em 2010, e das edições dos Planos Nacionais de Educação (2001-2010, 2014-2024), a expectativa é que comemoraríamos em 2022 a erradicação do analfabetismo, evasão escolar precoce, trabalho infantil, baixo rendimento dos alunos e baixa qualidade da oferta educacional pública. Deveríamos ainda festejar a ampliação do acesso ao ensino médio, melhoria da qualidade da educação e do currículo escolar, conexão entre educação e emprego por meio da educação profissional e técnica, oferecimento de oportunidades de educação continuada a todos, fortalecimento e atratibilidade da profissão docente, incremento da pesquisa científica, elevação e maior qualificação dos investimentos em educação, e por fim, a melhoria da avaliação do funcionamento dos sistemas educativos. 
Claro que o MEC, de 2010 a 2018, esforçou-se e muita coisa foi feita desde então. As gestões deste período se empenharam e a despeito dos percalços no caminho o país conseguiu avançar bastante. A promulgação das Bases Nacionais Curriculares Comuns (BNCC) em dezembro de 2017, apesar de todas as críticas que ainda precisam ser feitas a elas, foi o último ato na corrida para apresentar um novo cenário educativo nacional nas comemorações dos nossos duzentos anos de Independência, em 2022. Os ministros de educação do governo bolsonarista, no entanto, desde que entraram em cena, pouco ou nada fizeram a respeito e o que teremos a apresentar serão as obras dos ministros anteriores. Eles, os bolsonaristas, seguem na construção de uma obra pífia e desnecessária. 
As duas gestões ministeriais deste governo, de 2018 até o presente, estão mais a provocar o riso da sociedade, tantas as gafes e confusões, não fossem os graves prejuízos que imprimem à educação nacional. A primeira gestão, a do ministro Ricardo Veléz, que se tornou hours concurs, teve as características típicas de um forasteiro colombiano que nada entendia de educação brasileira. A segunda gestão, a do ministro Abraham Weintraub, é um constante show de sandices. Seus grandes feitos têm sido proferir impropérios contra as universidades públicas, movimentos populares e estudantil liderado pela UNE; enaltecer a monarquia e figuras monárquicas em plena comemoração dos 130 anos da República; realizar cortes substantivos de verbas e de pessoal; e demonstrar publicamente a sua ignorância em relação a Paulo Freire e sua obra.  No Portal do MEC na WEB, as direções de sua gestão não mostram qualquer disposição de cumprir as Metas Educativas 2021 e as Metas do PNE 2014-2024. À revelia delas visam universalizar o acesso à Internet (Programa de Inovação Educação Conectada); combater o derrame de diplomas falsos e carteiras de estudantes por meio dos programas Diploma e ID Digital estudantil (esta última suspensa pelo MPF); orientar as famílias nas práticas de literacia familiar (Programa Conta pra Mim); ampliar a rede de escolas Cívico-Militares; oferecer programas e ações às redes de escolas e aos alunos de contribuição das ciências cognitivas da leitura à alfabetização de crianças (Política Nacional de Alfabetização); e, por fim, o Programa Future-se que permite a uma instituição financeira privada, uma Organização Social (OS), a administração de um fundo e financiamento das atividades de pesquisa, extensão, desenvolvimento, empreendedorismo e inovação das universidades públicas brasileiras.
O claro menosprezo às Metas Educativas 2021 e às do PNE 2014-2024 não nos permitirá comemorar nem a extirpação do analfabetismo, o fim da evasão escolar precoce e do trabalho infantil, nem a elevação do rendimento estudantil e da qualidade da oferta educacional pública; muito pelo contrário. Eles, os bolsonaristas, é possível que comemorem a privatização do financiamento das pesquisas, extensão etc. nas universidades públicas; o acesso escolar à banda larga de Internet, mesmo que os professores ainda tenham baixas qualificações e nem todos tenham computadores domésticos; a militarização das escolas com professores treinados em ordem unida; o aumento das contações de histórias no seio das famílias para o deleite das crianças (Programa Conta Pra Mim); as brilhosas impressões de diplomas digitais penduradas nas paredes de escritórios e dependências familiares. Talvez até façam inveja às regiões mais atrasadas da América Latina e do Caribe, ainda distantes das últimas novidades tecnológicas de matizes neoliberais!
Será uma comemoração cabisbaixa e pífia aos olhos da sociedade brasileira, Organização dos Estados Americanos, dos seus chefes-de-estado e ministros da educação e da sociedade latino-americana e caribenha. Uma comemoração que, sem dúvida, estará distante de todas as expectativas. Uma festa na qual a empolgação terá deixado de comparecer. 
Definitivamente não será uma festa de arromba. 

Publicado originalmente no jornal Brasil 247

20.4.20

A Covid-19, a pandemia e a educação brasileira: mudanças à vista?



Grandes eventos históricos foram determinantes para marcar o início das idades Média, Moderna e Contemporânea. A ruptura que impuseram levou à criação de novas civilizações. Todas as nossas atenções se voltam para eles desde quando somos ainda crianças de escola básica. Nem sempre, contudo, olhamos para eventos menores com os mesmos olhos e a mesma atenção. Sabemos, por exemplo, da importância da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, mas pouco nos interessamos pelas transformações que imprimiu ao modo de viver e ser da contemporaneidade. Devemos ao êxodo rural inglês que provocou as primeiras ações de saneamento das cidades em consequência da superpopulação urbana e a escassez de produtos agrícolas que forçou a importação de proteína animal da Austrália e Nova Zelândia e o inevitável surgimento de navios frigoríficos. A partir da Revolução Francesa, para além da derrubada de tronos e altares, foram outras e melhores as relações entre os cidadãos, entre eles e o Estado e o respeito aos direitos dos cidadãos. Os grandes efeitos dos grandes acontecimentos, e até de alguns de menor envergadura, contudo, estão cantados em verso e prosa e não é muito difícil elencarmos muitos deles.

O grande Eric Hobsbawm que se dedicou a estudar as modificações que as Revoluções causaram em diversos lugares, reconheceu a importância de grandes eventos para marcar o início de um novo tempo e não pensou duas vezes em atribuir à Primeira Guerra Mundial o marco inicial do século XX. Muitos críticos já se insurgiram contra a demarcação de novas eras por grandes eventos, alegando, por exemplo, que ninguém se tornou moderno ou contemporâneo nos réveillons de 1543 e 1789 sem considerar a gestação do novo no próprio ventre do velho. As contradições que levam a novas civilizações, de fato, não nascem da noite para o dia, elas nem sempre são rápidas enquanto vão criando a superação do velho e as condições de sustentação do novo.

Se é difícil perceber todos os elementos que conformam o novo quando temos em perspectiva grandes eventos, imagina se o nosso objetivo é apreendê-los em eventos de menor envergadura e profundidade. Ao pensar assim tenho em mira dois eventos com sérias repercussões na sociedade brasileira e, em especial, sobre a educação nacional. O primeiro foram os longos tempos de ditadura que vivemos (1964-1985) e o segundo a pandemia atual que nos afeta a todos provocada pela Covid-19. Que impactos tiveram e terão sobre a nossa educação escolar?

Os anos de ditadura despertaram em grande maioria da população o ardente desejo de vida democrática e liberdade. Ninguém mais suportava o tacão militar, o estado autoritário e o cerceamento às liberdades naturais dos cidadãos. A explosão de gente nos comícios pelas Diretas-Já permitia que fossemos para as ruas e exigíssemos de volta a nossa liberdade e o regime democrático. Não prestamos atenção, porém, nos impactos de tamanha mobilização sobre as estruturas escolares da época. E eles foram grandes.

Os anos 1980 nas escolas deixaram de ser de resistência aos cânones ditatoriais para serem de fustigação aos elementos simbólicos e físicos que teimavam em sobreviver nas dependências escolares. A sociedade política e progressista se levantaria para construir uma nova realidade educacional no Brasil. Diversos governadores e prefeitos assumiram grande protagonismo nesta construção. No campo da sociedade civil, além dos movimentos sindicais docentes e outros, os pais reagiram e se insurgiam enfáticos contra as disciplinas curriculares criadas durante o governo militar, as famosas Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC). Exigiram que fossem banidas dos currículos escolares. Eles, nas reuniões bimestrais e Associações de Pais, tornaram-se os grandes arautos de um novo tempo e renegaram aquela escola autoritária, excludente, antidemocrática, hierarquizada e reprodutivista. Seus filhos não fizeram por menos, a ponto de traumatizar professores ao chamá-los de autoritários ou equivalentes. A violência simbólica e física não demorou a ceder lugar a uma escola mais humanizada, acolhedora e capaz de compreender as crianças e jovens. E foi esta mesma geração de jovens que saiu às ruas, com as caras-pintadas, gritando a plenos pulmões “Fora Collor” e “Cadeia para os Anões do Orçamento”.

Claro que a escola de qualidade e referência social tão sonhada e inscrita na LDB de 1996 está longe de ter saído do papel. Mas justiça seja feita, chegamos ao final dos anos 1990 com uma expansão da rede de escolas públicas jamais vista no país, quase completa universalização do ensino fundamental, eleição de diretores, fundo nacional da educação básica (FUNDEB), distribuição gratuita de livros didáticos etc.

Agora vivemos estes tempos de Covid-19 em pleno isolamento social com as aulas suspensas sine die e a filharada em casa, poucos recebendo atividades à distância nos computadores, laptops, tablets e smartphones. Que impactos já podem ser percebidos nas nossas relações pedagógicas, que envolvem pais, professores, alunos e escolas? Posso elencar alguns, observados em reações postadas em plataformas das redes sociais e publicadas nas grandes mídias.

Recentemente chamou a minha atenção a resposta de uma criança, talvez de 9 anos, respondendo à seguinte questão: “Estamos em um momento de pandemia e alguns serviços deixaram de ser prestados para conter o avanço do coronavírus. Desenhe e escreva qual é o serviço que mais tem feito falta para a sua família e o porquê”. A resposta foi a escola e o porquê chega a ser hilariante: “não é fácil ser aluno da minha mãe”.

O que poderia ser uma simples piada infantil muito engraçada tem elementos muito sérios. Primeiro porque distingue as diferentes naturezas das mães e das professoras.  As mães são preparadas para uma vida em família com os seus filhos e círculo de amigos, não se preparam profissionalmente como as professoras, não tem aulas de Pedagogia, Psicologia Geral, Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, Didática e Literatura Infantil etc. Nem tampouco são obedientes aos mesmos padrões éticos que devem caracterizar o magistério e, muitas sequer já abriram o Estatuto da Criança e do Adolescente, o famoso ECA. Certas mães podem ser e são excelentes professoras e vice-versa, mas o critério que define as duas concepções e competências são diferentes e irredutíveis.

Um segundo elemento, tem a ver com a atual campanha de desmoralização e xingamentos aos docentes em favor do ensino doméstico a ser realizado pelas famílias em suas próprias casas (“homeschooling”). A pandemia o impôs compulsoriamente às famílias de todas as classes sociais e gêneros. E a grande maioria está com os cabelos em pé sem saber como realizar uma tarefa nada fácil. Recentemente o professor universitário Rodrigo Ratier publicou em sua coluna no UOL Notícias um texto no qual chamou a atenção para o impacto negativo da quarentena na campanha do homeschooling (Ratier, 2020)[1]. Nela, ele se coloca como pai incapaz de fazer sua filha de cinco anos realizar uma tarefa escolar simples. Sente-se desesperado e despreparado para realizar “uma missão que de longe parecia tão trivial, mas que de perto é um mistério insondável: como diabos se faz para uma criança estudar?”. Acolher, dar bronca, deixar quieto, começar de novo? Sua conclusão revela a medida do seu despreparo e falta de estudos pedagógicos. Não é fácil nem qualquer um tem condições de ser professor. Ele termina a sua coluna exortando a sociedade brasileira a valorizar os educadores e educadoras e chama a atenção para as armadilhas contidas na campanha pró-homeschooling.

Um terceiro elemento: pela primeira vez as crianças e adolescentes poderão optar entre os pais e os professores. Terão claramente a distinção entre explicadores de final de tarde ou de semana que ajudam nas lições de casa e os seus professores de segunda a sexta, dos quais costumam sentir falta em grandes interrupções escolares. Claro que há professores dos quais querem distância, mas sentem falta daqueles que são respondedores e, sobretudo, dos que parecem irmãos mais velhos que compreendem e aplacam as suas angústias, como Bachelard descreveu os professores. Claro que as diferenças entre casa e escola também emergem e se consolidam como profundas, as escolas são espaços de trocas, cumplicidades, novas amizades, aventuras e das últimas notícias de interesse.  As nossas crianças e jovens ao terem capacidade de comparar tendem a valorizar mais os seus professores e perceber as diferenças entre o céu e a terra.

Também não ficarão ilesas as relações entre as escolas e os núcleos centrais e professores e alunos. A exigência de atender o alunado por meio digital, apoio a distância, traz como novidade a possibilidade de trocas e demais formas de interação a distância, a qual dificilmente será deletada ao final da pandemia. Pela primeira vez há um canal para dúvidas, instruções e aquisição de novos conhecimentos de forma mais imediata e confiável, sem as inúmeras horas de navegação a esmo no ciberespaço e as imprecisões do Google e da Wikipedia. Os tutoriais e fóruns haverão de adquirir outras dimensões. Os professores também estão aprendendo a se organizar e a debater online questões pertinentes à categoria, livres das repressões de gestores, autoridades educacionais e até policiais. Esta nova forma de organização conseguiu criar consenso para deter a determinação do Núcleo Central – Secretaria de Educação – de oferecer educação a distância obrigatória, computando-se normalmente os dias letivos e realizando práticas avaliativas obrigatórias.

O fato é que estamos em um período de transição e muitas contradições estão sendo expurgadas e colocadas a olhos nus. O desmonte da saúde, por exemplo, é uma contradição que sobressai e mostra que o seu sucateamento já deu com os burros n’água, a despeito de toda a literatura do liberalismo clássico e do neoliberalismo de origem hayeckiana. O estado mínimo, tão decantado por ambos, em literatura interminável, mostrou a sua incapacidade de socorrer as pessoas de forma humanitária. Diante da pandemia, até o poderoso império americano  teve os seus pés de barro descobertos e colocados à vista, a Covid-19 devasta a sua população em um trimestre, em quantidade proporcionalmente superior à guerra do Vietnã que durou 10 anos e ceifou mais de 55 mil jovens americanos.

Este momento de passagem histórica que estamos vivendo, talvez esteja também, como diria Hobsbawm, marcando o início real do século XXI. Não é impossível que esta pandemia esteja como a Primeira Guerra Mundial assinalando o fim da civilização ocidental, individualista, movida por cálculos utilitaristas e capaz de cultivar práticas e ações inumanas que foi hegemônica até o presente. A saúde e a educação brasileira certamente terão muito a ganhar.



Zacarias Gama

Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ

Publicado no jornal eletrônico Brasil 247


[1] RATIER, R. Quarentena é a melhor propaganda possível contra o homeschooling. 2020. Disponível no site: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-ratier/2020/04/06/quarentena-e-melhor-propaganda-possivel-contra-o-homeschooling.htm. Acesso em abril de 2020.

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