18.11.22

Divagando

 

A rigor a esquerda latino-americana é radicalmente contra o neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 para cá é um belo exemplo do esforço que se fez de combate ao liberalismo e suas variações vindas de várias partes do mundo. É interessante nisto tudo uma certa dissociação entre a teoria e a prática, muito clara em setores que se deixaram contaminar mesmo fazendo as mais ferrenhas críticas.

A querida Marilena Chauí nos disse com todas as letras que o pós-modernismo era a ideologia do neoliberalismo, mas muita gente desprezou esta sua afirmação. E o pós-modernismo grassou sem que houvesse grande preocupação com a sua expansão como tiririca-do-brejo e os seus efeitos daninhos.

No campo da educação isto significou um derrame de diplomas sem conteúdo porque a sentença neoliberal inculcou que o mercado é o grande juiz, é ele quem seleciona os melhores. E junto com tal sentença veio para o proscênio das nossas vidas o darwinismo social. Os donos de instituições particulares a interpretaram literalmente, afinal reprovar algum estudante medíocre significava perder dinheiro, deixasse a sua reprovação para o mercado de trabalho.

As artes não ficaram para trás. Afirmando que a criatividade morreu, liberaram o campo até para quem estivesse destituído do mínimo talento. Nas palavras de Jameson, “nesse ambiente, as imagens, os signos, tudo parece dado a uma apreciação estética, imediatista e presentista, sem nenhum projeto crítico amplo que o dê suporte e sentido”. Tudo, absolutamente tudo, na ausência das críticas típicas do modernismo, o campo artístico foi inundado pelo pastiche, na maioria das vezes em sua forma mais efêmera e cínica.

 

3.11.22

Uma cruzada nacional de amor contra o bolsonarismo e o obscurantismo educacional.

 


O Colégio Eleitoral brasileiro tem um número de eleitores (156.454.011) maior que a população de países como a França, Inglaterra, Espanha, Alemanha e muitos outros. Os números dos nossos indicadores, quase sem exceção, não apenas mostram a grandiosidade do Brasil, mas coloca os habitantes daqueles países no modo perplexidade. E, de fato, não é para menos. Nesta eleição, os eleitores do Presidente Lula (60.345.999) equivalem a toda a população da Itália. Os de seu concorrente, somaram mais de 58 milhões.

Em termos quantitativos é este o quadro que se desenhou neste segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Contudo, o que preocupa a todos, com um mínimo de sensatez, é a qualidade dos 58 milhões de votos que definem o bolsonarismo. Eles avalizam a morte de milhares de vítimas por incúria e perversidade do governante, as queimadas e destruição dos grandes biomas brasileiros, a redução antipática e inumana das políticas sociais, a volta avassaladora da fome, a liquidação de direitos trabalhistas e sociais, a violência contra homoafetivos, mulheres, negros, indígenas e quilombolas e até o isolamento do país no concerto das nações. Os eleitores de Bolsonaro, além disso, dificilmente titubeariam para restabelecer a ditadura militar, a tortura, a suspensão do habeas corpus... a violência e a intolerância passaram a ser a marca registrada deles. Sérgio Buarque de Hollanda ficaria ruborizado e envergonhado ao ver o seu homem cordial mostrando as entranhas que ele jamais poderia imaginar que camuflam a violência que herdou das práticas escravistas; da incrível capacidade de fraudar, extorquir, subornar; submeter as populações mais vulneráveis às suas sanhas de riqueza, poder e prestígio. O que une todos estes homens brancos “cordiais”, por mais díspares e de origens sociais diferentes, é, nos dizeres de Thompson (1977), o “modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações sociais”, com a cultura e as expectativas a elas transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural”. O que faz do bolsonarismo uma massa ignara e bastante uniforme é a defesa que os mais pobres dos seus integrantes – pouco importa que sejam negros, pobres, homossexuais e mulheres ameaçadas de feminicídio – fazem do modo de vida da elite. Todos se acham como seus integrantes. Como o personagem Caco Antibes, do hilariante “Toma lá, dá cá”, eles também têm horror aos pobres e os contemplam de apartamentos mal enjambrados do Jambalaya Ocean Drive.

A despeito das muitas teorias que podem explicar tal fenômeno, entre todas é preciso atribuir à educação brasileira um grande grau de responsabilidade para a sua existência, dada a crônica incapacidade de “educar para afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (Brasil/BNCC, 2013), e cumprimento da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) para a construção de um mundo sustentável sem pobreza e sem comprometer a qualidade de vida das próximas gerações. De certo modo, tal onda bolsonarista, e não é descabido afirmar, é o preço que a oferta de educação de baixa qualidade vem cobrando da sociedade. Como se não bastassem os prejuízos econômicos e os atrasos que impõe à nossa competitividade internacional, a sua hegemonia durante os últimos quatro anos fizeram o país recuar, nos dizeres da principal liderança desta massa à Rádio Jornal, de Barretos (SP), seu principal objetivo é que o “Brasil volte a ser igual 40, 50 anos atrás”.

Os principais cientistas brasileiros há muito vêm denunciando a precariedade da educação oferecida às nossas crianças e jovens e o impacto negativo que promove em nosso desenvolvimento. A quantidade de estudos é impressionante, a maioria é baseada em dados empíricos. A própria OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), que aplica regularmente os exames do PISA (Leitura, Matemática e Ciências) em estudantes com 15 anos de idade, desde o primeiro exame realizado no ano 2000, vem se mostrando preocupada com o baixo desempenho dos estudantes brasileiros. Na ocasião, o desempenho deles ocupou a última posição entre os participantes. Em vinte e dois anos de aplicação dos testes do PISA, as melhorias conseguidas pelos nossos brasileirinhos são quase imperceptíveis e tendem a permanecer distantes e abaixo da média de desempenho dos seus colegas de outros países participantes.

Ao longo das últimas décadas, com os manuais do neoliberalismo em punho, o Estado jogou para o mercado a seleção dos melhores, condenando os demais a garantir as suas sobrevivências da maneira informal que conseguissem, bem como a dormir sob as incertezas do tempo próximo aos pontos em que montavam as suas bancas de vender desde pequenos ralos para pias à última novidade vinda do Oriente. Os fracassados, bombardeados pela ideologia da meritocracia, foram deixados à própria sorte e a buscar ajuda divina junto a igrejas e pregadores inescrupulosos. Com o Movimento Escola Sem Partido, os conservadores em geral, e os bolsonaristas em particular, se dispuseram a varrer das escolas as disciplinas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia admitindo o elitismo estrutural da sociedade que tanto nega a qualificação do estudante para o trabalho improdutivo quanto o alargamento de sua compreensão de mundo. A ideia é que as escolas somente sejam aparelhadas para instruir para o trabalho imediato, de preferência organizada em bases militares.

Estamos perdendo décadas no oferecimento de educação pública de qualidade referenciada socialmente. Nos anos 1990 o IPEA chamou muito atenção para o fato de termos perdido a década de 1980. De lá para cá, pouco ou nada se fez com resultados robustos. Nestas duas décadas do século XXI o que se vê é estarrecedor. É cada vez maior as retrações de verbas, ausência de preocupações sérias com a formação de professores e ataques à liberdade de ensinar. A despeito da vigência das Bases Nacionais Curriculares Comuns, BNCC (2018), em sã consciência é impossível afirmar que os nossos estudantes passaram a ser capazes de “entender e explicar a realidade, colaborar com a sociedade e continuar a aprender; investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções; fruir e participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural; expressar-se e partilhar informações, sentimentos, ideias, experiências e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo; comunicar-se, acessar e produzir informações e conhecimento, resolver problemas e exercer protagonismo de autoria; entender o mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas à cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade, autonomia, criticidade e responsabilidade; formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns com base em direitos humanos, consciência socioambiental, consumo responsável e ética; cuidar da saúde física e emocional, reconhecendo suas emoções e a dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas; fazer-se respeitar e promover o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade, sem preconceito de qualquer natureza; tomar decisões com princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e democráticos” (Educação online)

Quem já teve a oportunidade de debater alguma ideia com algum adulto ou jovem identificados com o bolsonarismo, que chamam o presidente de “mito”, pode comprovar com facilidade o quão longe estão da aquisição das competências da BNCC ou dos princípios e objetivos que norteiam e justificam a nossa Lei de Diretrizes e Bases (LDB).

A vitória do Presidente Luis Inácio Lula da Silva nestas eleições presidenciais é o renascer da esperança. Caberá ao seu ministro da educação empreender uma cruzada contra o obscurantismo que alimenta a massa de 58.206.354 votos e estancar a produção de novos indivíduos dispostos a negar os avanços da ciência, a acreditar que a Terra é plana e a preferir a Bíblia à Constituição. Será este ministro o líder de uma cruzada de amor contra o bolsonarismo e o obscurantismo educacional.


Publicado no Brasil 247 - https://www.brasil247.com/blog/uma-cruzada-nacional-de-amor-contra-o-bolsonarismo-e-o-obscurantismo-educacional 

6.10.22

Avaliação da Aprendizagem e Reprodução da Elite

 

Foto de Zacarias Gama




Quem é professor sabe as dificuldades de avaliar os alunos, em especial por causa da necessidade de aprovar e reprovar. Já convivi com muitos colegas que entram em crise todo final de ano. Há quem perca peso, fique uma pilha de nervos e passe noites em claro. De fato, não é fácil. A cultura avaliativa que separa o joio do trigo é muito forte e está entre as razões de tantas dificuldades. Esta cultura procura distinguir, nos dizeres de Charles Wright Mills (1975), o grupo de crianças e jovens que poderá ter o máximo que se pode ter, bem como acesso aos modos de vida inacessíveis à massa de homens e mulheres comuns; pouco importa que sejam ricas ou pobres, que tenham altas posições ou não - são candidatos à elite por serem como são. De um ponto de vista moral acredita-se no ambiente escolar que constituem uma elite pelo simples fato de seus desempenhos acadêmicos serem mais elevados e serem possuidores de melhor caráter e energia superiores. Isto, entretanto, não se sustenta. A obtenção de notas elevadas nunca eximiu alguém de ser egoísta, retraído em si mesmo, em seu interesse e em sua arbitrariedade privada, e dissociado da comunidade. As relações que acaso mantêm com a comunidade são pautadas por interesses particulares de maior acumulação e conservação das suas propriedades.

Na crise política, econômica, social e sanitária na qual o Brasil foi mergulhado, em grande parte por inépcia do Governo Jair Bolsonaro, isto fica muito evidente. Os chamados homens-de-bem que compõem a elite bolsonarista, com raríssimas exceções, se mostram insensíveis à depredação dos grandes biomas nacionais, à morte de mais de 650 mil pessoas infectadas pelo coronavirus desassistidas pelo governo federal e à fome de milhões por retração das políticas sociais de assistência social aos mais vulneráveis. Antes, o historiador francês Christian Ingrao (2015) já demonstrou que jovens alemães das melhores famílias, formados em instituições de excelência e com excelentes desempenhos, com bastante facilidade se tornaram oficiais da SS nazista (Schutztaffel) e desenvolveram grande participação ativa e direta na construção dos campos de extermínio, na criação de "grades de leitura do mundo e na disseminação de discursos de legitimação que deram suporte aos massacres e ao genocídio". Ou seja, o melhor histórico escolar não se comuta em altivez de caráter; instruir não é o mesmo que educar para uma vida pautada pelos mais elevados valores humanos, éticos e morais.

Avaliar é qualificar, atribuir qualidade no sentido do desenvolvimento do espírito humano, isto é, no sentido de superar a nossa essência animal, nos tornar homens e mulheres sujeitos de uma sociedade mais igualitária, justa, fraterna, pacífica e democrática. Avalia-se para elevar a qualidade do trabalho realizado, indicando as fragilidades existentes e os caminhos de superação. Avaliar e classificar ou demarcar posições é elitismo. É reproduzir a sociedade de classes, é ser conivente com as estratificações existentes.

25.5.22

A universidade está se liquefazendo. Vamos abrir os olhos?

Publicado na minha coluna no  Brasil 247

https://www.brasil247.com/blog/a-universidade-esta-se-liquefazendo-vamos-abrir-os-olhos



As aulas presenciais nas universidades estão de volta depois de pelo menos cinco semestres de ensino remoto e de levar o professorado a entrar no mundo digital a toque de caixa, a despeito do pequeno apoio financeiro e tecnológico oferecido pelo Estado. Cada professor em seu isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 teve de se virar com os seus aparelhos eletrônicos da forma que pôde. E houve de tudo, desde quem tivesse usado as teclas ctrl+alt+del pela primeira vez, até quem tivesse se achado um grande influenciador digital ou um George Lucas criando efeitos mirabolantes para as suas aulas. O fato é que o aprendizado de todos foi grande, muito embora se possa afirmar que a entrada da Universidade, em sua completude, no mundo digital tenha sido postergada. Ela se fixou no ensino remoto e demonstrou a sua inaptidão, má vontade ou incapacidade de oferecer uma educação a distância de qualidade.

Os estudantes, grande quantidade nascida neste século XXI, constituem um mundo à parte em se tratando de ensino remoto e, como disse Henry Giroux na obra Teoria Crítica y Resistencia em Educacion (Siglo XXI, 1992), com muita criatividade apreenderam e dominaram de imediato as artimanhas desta modalidade de ensino, somando-as às que desenvolvem com maestria no ensino presencial. Elas foram tão bem apreendidas que houve Departamento obrigado a limitar o número de matrículas em disciplinas para evitar diplomações em tempo recorde; enquanto as inscrições foram livres houve quem requeresse matrícula em mais de vinte disciplinas em um único semestre. Durante as aulas remotas os estudantes também aprenderam a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, desde namorar, fazer as unhas e cabelos, arrumar os armários, produzir Reels para o Instagram, vídeos para o TikTok e outras coisas que até Deus foi incapaz de pensar. Aprenderam, inclusive, a participar de aulas remotas com vídeos desligados e, não duvido, que até com o som.

Esse comportamento estudantil, à distância ou presencial, nos força a pensar sobre os seus significados. Ele é uma simples malandragem juvenil ou contém elementos de maior profundidade e preocupação social? Duas hipóteses são plausíveis.

Com base teórica em Giroux ele pode ser compreendido como força para anular ou subordinar as formas docentes de dominação. O poder, afinal de contas, não é unidimensional e tanto pode ser exercido como modo de dominação e de resistência “ou mesmo como expressão de uma forma criativa de produção cultural e social fora da força imediata de dominação” (Giroux, 1992, p. 145). Positivamente é a astúcia estudantil que consegue impedir o reprodutivismo absoluto que Bourdieu afirmou haver nas instituições escolares; ela vai além de uma simples vadiagem. Como produto cultural e social este comportamento tende a se tornar longevo e ter consequências importantes, ao naturalizar formas de agir, ser e estar na universidade. Ele é parte substantiva da cultura escolar e estudantil.

Se, contudo, apoiamo-nos em Jameson para o compreender, outras de suas facetas se tornam visíveis. Ele apresenta ares de um movimento que refuta a seriedade e a racionalidade da instituição escolar, a afirmação das manifestações formais.  São “reações específicas a formas canônicas da modernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações” (Jameson, 1985). Não são mais simples resistências como Giroux as apreendeu, mas complexos movimentos reativos que refutam a herança social recebida. As análises de Baumann, revelam que são poderosas forças de liquefação da modernidade que trazem à boca de cena o grande público que devora a moderna elite cultural, assiste aos programas populares de TV e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, populares e até intelectualizadas desde que contenham importantes rebaixamentos. Debates e leituras profundas se tornam enfadonhas e as preferências recaem sobre os debatedores e leitores que são engraçados e que aligeiram as coisas para consumo rápido.

É preciso, todavia, esclarecer que numa época de transição, as sólidas instituições e valores antigos tendem a se liquefazer, ou como dizia Marx a se desmanchar no ar. É o novo se impondo sobre o velho, muito embora ambos ainda possam conviver por bastante tempo. O primado da burguesia na modernidade custou a liquidação das instituições do Antigo Regime feudal; hoje é a voraz classe dominante deste capitalismo tardio que impõe à sociedade o individualismo mais radical e fragmentador, a liquidação dos tribunais da razão e a superação da modernidade cheia de amarras que não mais lhe convém.  

O território universitário de hoje, onde tais estratégias coletivas e individuais vicejam, além de fluído, está bastante próximo do mundo do pastiche típico da pós-modernidade, no qual a produção acadêmica se torna neutra, perde a combatividade de antes e a originalidade; o mesmo ocorre nas artes em geral, com destaque para o que acontece na música e artes plásticas. Tudo ou quase tudo já se encontra pronto e à mão no Google, Wikipédia e nos tutoriais do YouTube. O pastiche reina.  Tudo é imitável e a prática acadêmica se torna neutra, sem graça e sem combatividade, “é uma fala em língua morta”, nos dizeres de Jameson. Segundo o Google, somente na WEB há mais de 14 páginas com aproximadamente 138 milhões de resultados para trabalhos acadêmicos prontos, gratuitos ou com preços módicos.  

Nas universidades os professores mais modernos e inflexíveis e até o ministério público se mostram sem vontade ou forças para deter os avanços do pastiche. Dialeticamente, elas e eles também se tornam outras e outros, alinham-se com a ordem social emergente do capitalismo tardio para alegria dos conservadores e da direita politicamente organizada. Os estudantes e simpatizantes empurram elas e eles em direção ao futuro de um mundo globalizado com astúcias cada vez mais novas, tirando proveito delas e até os forçando a se abdicarem de funções sociais herdadas da modernidade; tudo isto com muitas dancinhas no TikTok ao som do funk e do sertanejo.  A universidade iluminista em processo de liquefação vai se tornando outra e diferente.

A universidade brasileira vai sendo impelida a reassumir a condição de grande escola de diplomação de profissionais de nível superior sem compromissos com a ciência. Estamos sendo forçados a voltar à condição de compradores de saberes produzidos alhures. Lyotard em sua obra A Condição Pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, em tom quase profético já chamava a nossa atenção para a monopolização da produção de saberes pelos países avançados e da disposição deles de escamotear ou sonegar tais saberes aos países periféricos:

As sociedades periféricas só terão pleno acesso a eles se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial (Lyotard, 2009, p. 126).

As reformas das universidades brasileiras e latino-americanas dos anos 1980 para cá já traduzem os interesses destes países. inspiradas no Processo de Bolonha e no que deriva delas, com grande financiamento do Banco Santander, como por exemplo o Espaço Comum de Ensino Superior da União Europeia, América Latina e Caribe (ECES – UEALC) submetem as universidades da região a determinados parâmetros e indicadores de qualidade definidos pelos países centrais e ao que está sendo chamado de sociedade do conhecimento. Na divisão internacional de produção de conhecimentos que vai se desenhando, reserva-se para nós, brasileiros e latino-americanos o papel de compradores de conhecimentos de alta complexidade e vendedores de conhecimentos básicos, da mesma forma como nos tornamos produtores e vendedores de commodities.  

É preocupante a inexistência de reações conscientes e organizadas a essa liquefação da modernidade. De certa forma assistimos bestializados aos acontecimentos e às surpreendentes novidades em todos os setores da vida social como se fosse uma simples fatalidade e não como sendo expressão da mais importante e abrangente luta de classe em escala planetária.

Quando abrirmos os olhos já será tarde.

Il est désolant!





4.5.22

Educar é amar as nossas crianças e jovens e impedir que sejam expulsos do nosso mundo.

 


É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, diz um ditado cheio de sabedoria corrente na África. Sábio por quê? Porque concebe a educação de alguém, quem quer que seja, como um processo coletivo, inclusivo e multidisciplinar; porque atribui a responsabilidade de educar as crianças e jovens a todos os membros da aldeia de modo a que cada um ensine o que sabe.  O sucesso ou o insucesso educacional é de responsabilidade coletiva.

Nós, os urbanos, ao contrário, somente nos responsabilizamos pela educação dos nossos filhos, mesmo assim se não vivemos em situação de vulnerabilidade social. No Brasil de hoje, grande quantidade de crianças e jovens vivem nesta situação e têm os seus processos educativos prejudicados. E isto não é de hoje. Desde o período colonial tem sido assim. As crianças, com as suas relações familiares ou comunitárias esgarçadas, passam a viver amizades e parcerias instáveis e inseguras nas ruas, em absurdas situações de pobreza e isolamento social. Atualmente mais de 40% de crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em situação domiciliar de pobreza. São 17,3 milhões de crianças e jovens vivendo com rendimentos mensais domiciliares per capita de até meio e até um quarto de salário mínimo, segundo informes da Agência Brasil. Vivem fora de uma rede de proteção social e educacional tentando conseguir onde podem os elementos materiais de sobrevida até o dia seguinte. Perambulam pelas ruas sozinhos ou em grupos e atemorizam quem passa por eles.

Essa situação de vulnerabilidade de milhares de crianças e jovens é extremamente preocupante, demanda eficazes políticas sociais e esforços de muitos indivíduos, instituições, fundações e cidades. Precisa ser forte o combate à desigualdade que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

As redes escolares têm sido pressionadas a dar respostas a este problema. É comum que lhes atribuam poderes de afastar o contingente de vulneráveis das ruas com oferecimento de ensino de tempo integral. A Meta 6 do Plano Nacional de Educação (2014-2024), por exemplo, visa “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” até o fim da vigência do Plano. Contudo, supondo que tal meta seja alcançada há ainda a perguntar: todas as crianças e jovens receberão uma educação de qualidade ministrada por docentes bem qualificados, com valor de uso e troca? Muito embora a Meta 7 do PNE busque “Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir [boas] médias nacionais” estamos sem garantias efetivas de que a educação de qualidade com valor de uso e troca seja alcançada ainda nesta década.

A crise política e institucional que vivemos tem impedido o desenho de um horizonte alvissareiro e pleno de boas novas para esta juventude com vida provisória e em suspensão, como Frigotto (2020) a adjetivou. Desde 2016, quando ocorreu o golpe que promoveu o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, os seis ministros que ocuparam a pasta da educação nas gestões dos presidentes Temer e Bolsonaro pouco ou nada fizeram em seu favor. As escolas, em geral, nem avançaram no oferecimento de ensino de tempo integral e tampouco melhoraram significativamente a qualidade da educação oferecida.

Nenhum dos seis ministros sequer fez algum tipo de chamado às famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.  para constituir uma rede de proteção social e educacional para as nossas crianças e jovens. Eles antes distribuíram verbas do MEC aos prefeitos da mesma religião, compraram kits robótica para escolas sem água e computadores... (Folha de São Paulo, 2022) e deixaram crescer a onda que culpa e criminaliza a pobreza. Cada vez mais a sociedade exige do Estado ações para reduzir a maioridade penal, promover as “guerras às drogas”, aparelhar tropas de choque militar, encarcerar em massa e militarizar as escolas, como se tais ações pudessem atingir a raiz do problema, a desigualdade social que castiga o país (Andrade, 2018).

O envolvimento das famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.. é o que pode nos restituir a educação solidária e coletiva como a das aldeias africanas. A escola por si só é incapaz, mesmo que seja de tempo integral. É indispensável a existência de espaços fora de seus muros que favoreçam processos multidisciplinares, sentido de coletividade e inclusão. Se as prédicas religiosas se tornam mais educativas, menos escatológicas e submissivas já ajudariam bastante. A mídia em geral também tem condições de contribuir com temas relevantes para a promoção humana em lugar das fofocas e outras matérias de consumo fácil e alienante; as letras e belas artes também cumpririam papel relevante contribuindo para a superação da realidade transformada em pura aparência (estética, fetichizada e libidinizada), um “repositório de imagens e de simulacros”, como Jameson (1997) a descreveu.

A ação cooperativa e consciente destes agentes educativos seria como uma grande cruzada em favor da educação das nossas crianças e jovens. As cidades inteiras, com os seus agentes educativos já nomeados estariam educando as nossas crianças e jovens ao oferecer tamanho apoio ao trabalho docente feito no interior das escolas.

Hanna Arendt, no texto em que discute a Crise na Educação,1961, lembra-nos que educar é amar as nossas crianças, evitando que sejam expulsas do nosso mundo,  fiquem entregues a si próprias e deixem de ter possibilidade se prepararem para a tarefa de criação de um mundo melhor e imprevisto por nós.

19.3.22

Transformando Pessoas, Criando novas Ideias.





Estou tendo uma experiência ótima com os meus estudantes remotos das Licenciaturas da UERJ. Propus um curso comparativo de Políticas de Educação para que superassem os limites internos. Toda legislação brasileira de educação é comparada com as leis da Finlândia, México, França, Estados Unidos, Bolívia e Argentina.

A percepção deles, quase que imediata, é que toda orientação brasileira se volta para a qualificação dos estudantes conforme as necessidades do mercado de trabalho. Daí o grande desprezo pelas disciplinas- História, Filosofia, Sociologia e Geografia - que a elite do atraso considera um luxo dispendioso e desnecessário. Em sua lógica formativa não vale a pena gastar com disciplinas que qualificariam para o trabalho improdutivo como se não fosse intrínseco ao modo de produção capitalista.

Outra percepção é a pobreza das nossas leis que sequer admitem a nossa diversidade racial e linguística. São leis de brancos para brancos com um olhar mínimo para os povos originais e quilombolas.

Também percebem o quanto o Estado tenta se desvencilhar de seu dever de educar nossas crianças e jovens trazendo as famílias a compartilha-lo. Em todos os países o oferecimento de educação pública de qualidade para todos é um dever inalienável e prioritário. Na Finlândia chega-se ao ponto de o Estado designar tutores personalizados para os estudantes com dificuldades de aprendizagem.

O material de estudo foi obtido junto aos ministérios de educação da Finlândia e França e nas páginas que disponibilizam na WEB. A tradução do Suomi e dos documentos franceses é americanos é feita satisfatoriamente pelo Google Tradutor.

Também já estão percebendo o quanto os governos de 2016 para cá - Temer e Bolsonaro - fazem mal à educação brasileira, não apenas pelo não cumprimento da Meta 20 do PNE, mas pelos cortes de verbas, nenhuma ação efetiva pela sua melhoria e nomeação de quatro ministros que nada entendem de educação.

A disponibilização do material de estudo e as leituras que realizam permitem que eles façam as suas mediações(Ver o conceito de Mediação 2015 em Gama 2015). A mediação é um ato intelectivo pessoal e único; ninguém pode mediar pelo outro. É por seu intermédio que as pessoas se tornam outras e adquirem ideias próprias. As ideias que vão surgindo das meditações sobre algo concreto são poderosas e libertadoras na medida em que cada um aprende a desenvolver os seus próprios pensamentos sobre as coisas.


Divagando

  A rigor a esquerda latino-americana é radicalmente contra o neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 para cá é um belo exemplo d...