27.6.20

Qual “novo normal"?


Você está preparado para o novo ‘normal’?



A expressão “novo normal” foi cunhada recentemente por Mohamed El-Erian, ligado ao think tank Instituto Millenium, para caracterizar o mundo pós-pandemia ou pós-ruptura estrutural. A expectativa é de mais intervenção do Estado na economia, maior tributação, menor crescimento mundial etc. Um indicativo cujo foco é a nova normalidade econômica com uma essência predominantemente conservadora. A sociedade capitalista de classes continuará a mesma, sem tirar nem pôr.
É típico dos economistas não se preocuparem com as relações humanas, a não ser no campo econômico. Eles são incapazes de se deixarem sensibilizar com os novos comportamentos sociais. Por exemplo, com os gestos de solidariedade das pessoas, nomeadamente nas periferias mais pobres dada a ausência do Estado. Também deixam de observar a nova percepção que o professorado passou a ter na medida em que os pais foram forçados a se travestirem de professores e ensinar os filhos a escrever a palavra “bola” sem morder os cotovelos.
Penso que um novo normal que queremos e precisamos, tenha que expressar uma nova sociabilidade brasileira, como ocorreu na Europa Ocidental e Japão a partir do término da Segunda Guerra. Claro que ela, a Europa, continuou sendo capitalista, mas o bem-estar social precisou ser estruturado e disseminado para conter o nazifascismo e o comunismo. Na Inglaterra um sistema público de saúde demandado pela população, construído em pouco tempo, se tornou a joia da coroa, e a qualidade de vida na Alemanha Ocidental passou a ser um ideal a ser conquistado por muitas outras nações. Enfim, poucas lembranças ficaram daquela desvairada e individualista Europa do entre guerras.
Aqui entre um nós, um novo normal terá de ser construído, tanto são os estragos feitos pelo governo neofascista de Bolsonaro, quanto os provocados pelo novo coronavirus e a covid-19. Relativos aos estragos do governo, será necessário começar por onde foram acentuados os déficits de democracia e aumentar o processo de democratização do país o máximo que puder. Também é aconselhável a construção de barreiras legais contra quaisquer autocratas e suas tentativas de reimplantar regimes ditatoriais, restringir os direitos humanos e os direitos do cidadão. Definitivamente é imperativo afastar o mercado do controle da vida econômica e criar mecanismos para que a sociedade possa traçar os seus próprios rumos. Entre tantas coisas a fazer em um estado democrático socialmente robusto, há que desmilitarizar a polícia, garantir a segurança das famílias, urbanizar as comunidades populares. Da mesma forma, é preciso garantir renda básica aos mais vulneráveis; o país não precisa ter brasileiros abaixo da linha de pobreza. Em termos de saúde, haverá outros tantos a fazer. Durante anos assistimos à precarização do sistema público de saúde e agora, em plena pandemia, milhões de reais têm sido gastos emergencialmente para atender a população contaminada; tudo a toque de caixa e com muito interesse político-eleitoreiro. A saúde pública, no entanto, não pode continuar a mercê de arrivistas e dos que a usam para fins de enriquecimento pessoal. Em cada região metropolitana deve haver hospitais gerais e em cada município um ou mais hospitais para atendimentos básicos, isto sem deixar de aperfeiçoar o programa médicos de família e outras formas de atendimentos às mulheres, crianças e adolescentes e idosos.
A educação nacional jamais deverá ser esquecida na construção de um novo normal, como condição de equalização social, a começar pela apuração da qualidade dos cursos de formação de profissionais de educação. Recentemente escrevi um capítulo de livro me baseando em dados do Ranking Universitário Folha de São Paulo  (RUF 2019)[1] sobre tais cursos e fiquei perplexo. Se este país fosse sério, a maioria já teria sido fechada. Somente as melhores universidades públicas de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal oferecem cursos de reconhecida qualidade, mesmo assim nenhuma das suas universidades está ranqueada entre as 100 melhores do mundo. Dos 379 cursos presenciais de Biologia (Ciências): 143 nas IES públicas (universidades, centros universitários, faculdades, institutos superiores e CEFET) e 234 nas IES privadas, a maioria destas com baixa qualidade comprovada, inclusive pelo mercado. Entre as IES públicas, 34,47% não conseguem obter metade dos pontos da USP (62,92) em qualidade de Ensino de Biologia e 99,14% das IES privadas nem mesmo 20.00 pontos, em 100 possíveis. A situação não é melhor quando são analisados os 283 cursos de graduação de Matemática: 143 públicos e 140 privados. Entre os cursos privados, 97.14% são incapazes de alcançar 20.00 pontos. Em Pedagogia, a situação consegue ser mais escandalosa, considerand0-se os 1057 cursos oferecidos: 144 nas IES públicas e 913 nas IES privadas. Dentre estes últimos, 87,52 estão longe de atingir 29.00 pontos, isto é, metade da média das cinco melhores IES públicas paulistas e cariocas. Entre os cursos de Letras, 413 ao todo, os 283 oferecidos pelas IES públicas são também decepcionantes. A esmagadora maioria, 98,58%, mal consegue somar 17.00 pontos.
A melhoria de tais cursos em termos de ensino acabaria com o crônico círculo vicioso: professores com má formação ensinando a estudantes com baixos desempenhos, os quais futuramente se matricularão em cursos de formação de professores. É claro que tal círculo não é exclusivo da formação de professores; ele é igualmente visível em todos os cursos de graduação de todas as áreas e carreiras. Há 35 anos os EUA viviam uma situação semelhante e o relatório da Comissão Nacional de Excelência em Educação liderada pelo então Secretário do Departamento de Educação, Ted Bell, não titubeou em fazer o seguinte alerta:
 “Nossa nação está em risco. Nossa preeminência inquestionável no comércio, indústria, ciência e inovação tecnológica está sendo ultrapassada pelos concorrentes em todo o mundo. Este relatório trata apenas de uma das muitas causas e dimensões do problema, mas é o que sustenta a prosperidade, a segurança e a civilidade americanas. Relatamos ao povo americano que, embora possamos ter orgulho justificável pelo que nossas escolas e faculdades historicamente realizaram e contribuíram para os Estados Unidos e o bem-estar de seu povo, os fundamentos educacionais de nossa sociedade estão atualmente sendo corroídos por uma crescente maré de mediocridade que ameaça o nosso futuro como nação e povo. O que era inimaginável uma geração atrás começou a ocorrer - outros estão combinando e superando nossas realizações educacionais [grifos meus]. (USA, 1983)[2]. 
Em um novo normal que queremos e precisamos há muito o que fazer. Poderíamos durante este extenso período de isolamento social começar a pensar o que queremos para nós. As eleições municipais já batem à nossa porta e não seria má ideia as forças progressistas se unirem em prol da eleição de um Prefeito de caráter íntegro e comprometido com os nossos anseios, tendo uma base forte na Câmara de Vereadores que o apoie na construção de uma nova sociabilidade, ainda que restrita ao município, democrática e popular de paz, justiça, equidade e prosperidade.



[1] RUF 2019. Ranking de cursos de graduação. Disponível no site: https://ruf.folha.uol.com.br/2019/ranking-de-cursos/ . Acesso em junho de 2020.
 [2] USA. A Nation At Risk. Disponível no site: https://www2.ed.gov/pubs/NatAtRisk/risk.html. Acesso em junho de 2020.


13.6.20

O ato educativo também precisa ser uma posição de classe


Classe e luta de classesIlustração Revista Piaui



Diante da ignorância de parcela considerável da sociedade brasileira, mais ou menos 30%, fico me perguntando se nós, o professorado, temos alguma parcela de responsabilidade na formação desta gente que sequer acredita nas milhares de mortes por Covid-19, que mitifica o senhor Jair Bolsonaro, que atribui a pandemia que assola o país à mídia, que acredita na forma plana da Terra e em muitas outras coisas mais que até Deus duvida. De onde saiu tanta gente analfabeta em tantos assuntos?
Em sã consciência é impossível culpar o professorado em sua totalidade. Mas não se pode fazer vistas grossas muito embora uma boa parcela seja bolsonarista de quatro costados e que o defende mesmo sabendo que este governo tem diversas medidas contra o magistério. Essa parcela docente precisa ser estudada. 
Tenho duas hipóteses a respeito. 
1. Ela vem sendo formada nas instituições de ensino superior, públicas e particulares, apenas em bases técnicas, isto é, para dar aulas de determinados conteúdos e ponto. E mesmo assim com um discutível domínio de conteúdo. O que sustenta esta hipótese é a baixa avaliação dos cursos de formação, públicos e particulares, no Ranking Universitário Folha (RUF). Dos 1800 cursos particulares e públicos existentes, mais ou menos 50%, são incapazes de atingir ao menos a metade da pontuação que os melhores são capazes de atingir. 
2. Os cursos de formação de professores definem o professor conforme a primeira parte da definição dada pelo dicionário Caldas Aulete: 
1. Indivíduo que se especializou em ensinar, em escola ou universidade; docente; mestre
2. Aquele que ensina algo (disciplina, atividade, arte, ofício, técnica etc.) a alguém
Parecem, talvez por conveniência, nunca ler no mesmo verbete que professor é “4. Aquele que professa (uma religião, uma dada concepção de mundo etc.)”.  E isto é muito ruim porque reduzem o professor a um sujeito técnico e asséptico, alienado por excelência. 
A soma das duas hipóteses tem como resultado um professor que conhece superficialmente o conteúdo de sua disciplina e, às vezes, de forma enviesada, e não está nem aí para a vida política, econômica, religiosa e cultural de sua gente. Nada questiona por insegurança e insuficiência de conhecimento. Sua formação e ele próprio se situam na contramão do que disse o mestre Paulo Freire: "a prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes" (Freire, 2001)[1]
E onde está o campo de atuação deste docente? A resposta parece ser óbvia, ele atua na periferia das cidades, nas cidades mais pobres e no campo, ou seja, nos redutos políticos mais conservadores e reacionários, nos currais eleitorais dos piores políticos. Nestes redutos, para piorar as coisas, é obrigado a rezar pela cartilha do poder dominante e a se "aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes". Nestes redutos, não nos esqueçamos, está a força do bolsonarismo e do fundamentalismo religioso. Eles constituem os 30% da população que mantém o poder autoritário, antidemocrático e neofascista do atual governo. Neles, os professores realmente deixam de assumir a educação como ato político indispensável à emancipação popular. Suas escolas se transformam em espaços de neutralidade política, como se isto fosse possível, e sem nada a ver com a luta de classes. Como diria Paulo Freire, o a favor deles situa-os em um certo ângulo, que é de classe, que é bolsonarista. 
A constatação que faço torna imperativo que revejamos a formação de professores no Brasil. É preciso que seja revestida de equidade formativa. Todos os cursos precisam cuidar da formação técnica e política, nenhum professor pode abdicar, em suas aulas, de posições políticas, éticas, estéticas, urbanistas e ecológicas.
O ato educativo também precisa ser uma posição de classe, mas jamais a favor da classe dominante. 


9.6.20

Somos resultados de múltiplas determinações






Enganam-se redondamente os pais que acreditam serem os seus filhos o resultado da educação que lhes deram. E se enganam por uma razão simples. Eles não são herméticos. Nós, como disse Marx, resultamos de múltiplas determinações. 

As mães, intuitivamente, sabem disto e não por acaso a toda hora advertem os filhos sobre as suas companhias. "Não quero você andando com aquele grupo", "Não quero você indo àquele lugar". Elas sabem que podem perder os seus filhos para o lado negro da vida. A sabedoria materna intui que as alterações que observa nos filhos vêm de outras pessoas e outros lugares. E isto é uma verdade. As nossas interações sociais deixam marcas em nós, têm poder de nos transformar para o bem ou para o mal. Não passamos incólumes por elas. 

Uma pesquisa que realizei com estudantes mulheres muito pobres teve como resultado a apreensão de determinações variadas sobre elas, das amigas feministas que não admitiam viver dependendo dos maridos, das tias e avós; elas lhes financiavam estudos, viagens e acessos a coisas variadas para que os(as) sobrinhos(as) e netos(as) tivessem oportunidades diferentes das que tiveram, e até de amigos(as) que compartilhavam experiências, gostos etc. Foi o caso de uma estudante muito pobre, filha de analfabetos e catadores de papel, com apurado jeito em artes, preferindo os impressionistas a outros, um gosto desenvolvido por influência de uma amiga da igreja. 

São estas determinações, que nem sempre sabemos com exatidão as suas origens, que nos fazem como somos, independentemente de nossas origens, níveis socioeconômicos, cor, gênero... Uma criança que viva num ambiente sambista, trará o samba marcado em sua alma se não preferir o convívio com funqueiros ou com o pessoal do hip-hop. A primeira execução de uma sinfonia por Mozart, aos cinco anos, em Viena, jamais aconteceria se vivesse nas comunidades do Rio de Janeiro ouvindo samba, rap, funk e outros ritmos de matrizes africanas. Isto não quer dizer que as crianças e jovens destas comunidades estejam condenadas a serem musicalmente iguais, se elas conviverem e se deixarem influenciar por um grande violoncelista da Orquestra Sinfônica Brasileira pode ser que um dia façam uma audição no Teatro Municipal. 

É por estas razões que não acredito em "dom" (gift). O dom é uma dádiva divina. A inteligência de Salomão foi um dom dado por Deus. E, os homens quando são incapazes de determinar a origem das coisas, atribuem-nas a Deus. Acredito, piamente, nas determinações históricas, culturais, nas interações dos homens com os fatos históricos, culturais, artísticos etc. 



5.6.20

COISAS DA EDUCAÇÃO - Educação Pública: Educar para quê?

COISAS DA EDUCAÇÃO - Educação Pública: Educar para quê?: (inscreva-se no blog) Art.1º.  Todos os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se...

Educação a distância em tempos de pandemia e a reprodução da desigualdade social

Publicado no site https://www.justificando.com/2020/04/15/educacao-a-distancia-em-tempos-de-pandemia-e-a-reproducao-da-desigualdade-social/ 



A pandemia provocada pelo novo coronavirus – Covid-19 – que assola o mundo e impõe o isolamento social generalizado, fechando as pessoas em suas casas, está mantendo metade dos estudantes de todo o mundo longe das salas de aulas, em ambos hemisférios do globo terrestre.
  A OMS – Organização Mundial da Saúde – já prenunciou a perda do semestre letivo. Os pais estão em polvorosa com a suspensão das aulas,  com os filhos em isolamento dentro de casa e com criatividade insuficiente para mantê-los calmos e ocupados. Alguns segmentos da sociedade começam a pressionar as autoridades escolares exigindo oferecimento de lições por meio das novas tecnologias de comunicação. 
 Aqui no Estado do Rio de Janeiro oferecer ou não oferecer educação a distância está na agenda do dia. Grande quantidade de pais exige-a. A Secretaria de Educação – SEDUC – é favorável e exerce pressão sobre o professorado para o seu oferecimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda que a SEDUC suspenda as atividades não presenciais por meio de qualquer plataforma educacional previstas para começar no dia 13 de março. 
 O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital não é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento agem açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e de forma autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de Internet fosse gratuito, universal e de qualidade igual para aproximadamente 250 mil estudantes e 40 mil professores. Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à realidade socioeconômica de discentes e docentes que, em grande parte, somente têm acesso por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro. Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm péssima cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance. 
 Um dia admiti igualmente fetichizado e com arrogância a possibilidade de oferecer ensino de qualidade universalmente a todos os estudantes de todas as regiões brasileiras. Hoje admito o meu grau de idealismo e a impossibilidade de oferecer EaD, dadas as desigualdades sociais e regionais do Brasil. Ainda há regiões desprovidas de luz elétrica de qualidade durante as vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores a diesel são desligados as 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas ainda são indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que habitam estes lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade de usar os recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem tenha de subir em árvores para obter melhores sinais. 
 Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de Internet, mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteligentes. Não são todos os usuários que acessam esta rede e tem dinheiro suficiente para pagar os serviços técnicos indispensáveis. O consórcio público de educação a distância, do qual sou um dos fundadores, organizado pelas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, o CEDERJ, registra anualmente elevado índice de evasão exatamente por conta de dificuldades técnicas que os estudantes enfrentam com as suas máquinas e locais de recepção. 
 A cidade do Rio de Janeiro, dada a sua geografia, também reproduz a mesma realidade das demais regiões do país, a despeito de ser uma capital. Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico, Humaitá ou Barra da Tijuca é uma coisa que chega a ser prazerosa; outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça. Muitos estudantes destes lugares, inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais quando eles permitem e mesmo assim com tempo contado. 

Educar para quê?









Art.1º. Todos os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 6º. Todos os cidadãos são iguais aos olhos da Lei e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão - 1789


Passados mais de duzentos e trinta anos da promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a sociedade mundial ainda se encontra distante de garantir a liberdade e a igualdade de direitos a todos. No Brasil então nem se fala, a distância é enorme entre a cidadania plena e a de segunda classe. Pobres, negros, LGBT, indígenas, quilombolas, mulheres, portadores de necessidades especiais, imigrantes pobres e outras minorias continuam sendo tratados como cidadãos de segunda classe, isto é, continua a lhes ser negada a cidadania plena, são estigmatizados como menos capazes.

Inúmeras razões de diversas ordens contribuem para alijar estas pessoas da cidadania plena. Em uma sociedade de classes, todos aqueles abaixo da classe dominante são tratados cotidianamente como inferiores seja porque são despossuídos de bens materiais; são de etnias, idioma, religião e gêneros diferentes. Muito embora a ciência contemporânea já tenha demonstrado que todos os seres humanos têm o mesmo genoma, isto é, as mesmas informações hereditárias codificadas no DNA, ainda persistem as diferenças historicamente construídas.

Ora, mas se tais diferenças são históricas é, então, possível que possam deixar de existir; por exemplo, se algum dia ocorrer a extinção da propriedade privada, desaparecerá, consequentemente, a distinção entre proprietários e não-proprietários. O direito de exploração da terra será igual para todos e a partição dos produtos agrícolas obedecerá a outras combinações. O mesmo ocorrerá com o fim da exploração do trabalho alheio por meio de escravização, corveias e assalariamento; quando somente existir o trabalho associado, ou melhor, quando os produtores livremente se associarem para produzir e suprir as necessidades materiais da humanidade, a ninguém mais será negado sequer um pedaço de pão. 

A educação escolar, pública, gratuita e de qualidade referenciada socialmente pode contribuir concretamente para a inexistência de cidadãos de segunda classe, como se lê no clássico Didática Magna: “ensinando tudo a todos de igual modo” (Comenius, 2001)[2]. A falta de qualidade necessária à promoção e emancipação dos indivíduos é perversa e favorece a reprodução das diferenças sociais. Enquanto a educação escolar, nos termos em que a coloco, estiver longe de ser equalizadora e democrática, haverá discriminação entre aqueles que a receberam e aqueles que estiveram distantes de usufruir dela.

No mundo ocidental há muito se reconhece a importância da educação para tornar as pessoas, como sujeitos históricos iguais a todos os demais, donas de seu próprio destino com pensamento próprio e autônomo. J-J. Rousseau, em sua obra Emílio, defendeu exatamente isto, a educação como instrumento de emancipação dos homens e mulheres. John Dewey seguiu esta mesma linha e em sua perspectiva a educação deve propiciar aos educandos condições para que resolvam por si mesmos os seus problemas. Durkheim reivindicou para educação a capacidade de desenvolver nos educandos estados físicos, intelectuais e morais indispensáveis à participação do indivíduo na sociedade. O patrono da educação brasileira, o grande mestre Paulo Freire, acrescentou as suas preocupações com a humanização coletiva da sociedade; para ele cabe, também, à educação a responsabilidade de alargar os horizontes cognitivos dos estudantes e apontar caminhos que favoreçam a construção de uma nova sociabilidade, mais justa, igual, fraterna e humanizada. Toda a legislação escolar brasileira está afinada com este entendimento acerca das finalidades da educação; na LBD está escrito que a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1996)[3].

Entre os grandes pensadores é consensual que a educação deve promover a emancipação e a autonomia dos educandos, o alargamento dos seus horizontes cognitivos e a sua formação moral, ética e política para a sua inserção social como cidadãos. Em todos eles está presente a ideia de igualdade entre todos os seres humanos. A única nota fora do tom, no entanto, é dada pela legislação brasileira na medida em que visa conservar a sociedade conforme o seu ordenamento jurídico, social, político etc. e qualificar os estudantes para o trabalho segundo a lógica da Teoria do Capital Humano. Numa simples comparação com a Didática Magna de Comenius vê-se o quanto a LDB restringe as possibilidades humanas. Segundo esse bispo protestante, que viveu na Morávia no século XVII, a escola deve “ensinar tudo a todos de igual modo” para que possam igualmente fruir as delícias existentes no Planeta Terra, colocadas à disposição:
As próprias coisas, enquanto nos dizem respeito, não podem ser divididas senão em três espécies. Na verdade: algumas são apenas objeto de observação, como o céu e a terra e as coisas que neles existem; outras são objeto de imitação, como a ordem admirável espalhada por toda a parte, a qual o homem tem obrigação de exprimir também nas suas obras; outras, enfim, são objeto de fruição, como o favor da divindade e a sua multíplice benção, neste mundo e para sempre. Se o homem deve ser semelhante a estas coisas, importa necessariamente que se prepare, tanto para conhecer as coisas, que, neste maravilhoso anfiteatro, se oferecem à sua observação, como para fazer aquelas coisas que se lhe ordena que faça, como, finalmente, para gozar daquelas que, com mão liberal, o benigníssimo Criador lhe oferece (como a um hóspede que esteja em sua casa) para sua fruição (Comenius, 2001).

A condenação da estudantada brasileira ao trabalho e à reprodução de uma sociedade burguesa e classista tem como efeito a manutenção do status quo da classe dominante atrasada, egoísta e concentradora da riqueza nacional. Ademais, nega-se-lhe a capacidade de adquirir competências para além do mundo do trabalho. Em uma pequena comparação entre a Base Nacional Curricular Comum, promulgada pelo governo brasileiro em 2017 e a Nova Agenda de Competências Para a Europa (2016), vê-se, por exemplo, como os europeus primam para que os seus estudantes desenvolvam com espírito crítico competências mais elevadas voltadas ao empreendedorismo, mundo digital e à cultura financeira; mas, não apenas isto.  Esperam ainda que o futuro cidadão – livre, autônomo, democrático, despido de preconceitos, criativo, responsável e consciente de si e do mundo em que se insere – seja capaz de rejeitar todas as formas de discriminação e exclusão social, reconhecer a importância e os desafios colocados pelas Artes, Humanidades, Ciência e Tecnologia “para a sustentabilidade social, cultural, econômica e ambiental” do seu país e do mundo; que saiba lidar “com a mudança e a incerteza num mundo em rápida transformação”, que “valorize o respeito pela dignidade humana, pelo exercício da cidadania plena, pela solidariedade com os outros, pela diversidade cultural e pelo debate democrático” (Gama, 2018)[4].

A finalidade da educação, portanto, vai além do preparo do estudante para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. É preciso que ela o prepare para jamais ser inferior aos seus semelhantes em suas relações sociais costumeiras e para que possa fruir as delícias planetárias colocadas à disposição para o seu deleite e elevação espiritual.
Precisamos, então, rever a educação nacional! O Brasil precisa de homens e mulheres iguais, livres, democratas e sem submissão ao o quê ou a quem quer que seja. 


[1] Professor Titular do Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação (DEPAG), Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
[2] COMENIUS, I. Didática Magna. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001  Disponível no site: https://www2.unifap.br/edfisica/files/2014/12/A_didactica_magna_COMENIUS.pdf. Acesso em dezembro de 2019.
[3] BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases. Disponível no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em dezembro de 2019



Quando a escolha é péssima

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