7.2.22

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a subordinação da educação pelo mercado e o nosso atraso educacional

 


Zacarias Gama[1]

A LDB

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996), como seu nome indica, fornece as instruções ou indicações para a devida concretização do plano ou projeto de educação que o Estado brasileiro se dispõe a oferecer à sociedade. 

Os seus 92 artigos estão distribuídos nos seguintes títulos:

TÍTULO I - Da Educação

TÍTULO II - Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

TÍTULO III - Do Direito à Educação e do Dever de Educar

TÍTULO IV - Da Organização da Educação Nacional

TÍTULO V - Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino (educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior.

TÍTULO VI - Dos Profissionais da Educação

TÍTULO VII - Dos Recursos financeiros

TÍTULO VIII - Das Disposições Gerais

TÍTULO IX - Das Disposições Transitórias

 

O projeto original desta lei surgiu por iniciativa da comunidade educacional imediatamente à promulgação da Constituição da República em 1988, a qual se encontrava fortemente mobilizada para assegurar suas propostas para a organização da educação.

No período de tramitação (1988 -1996), o projeto relatado pela Deputada Angela Amim passou por diversos embates tantas as tensões advindas da luta de classes no campo da educação; de um lado os capitalistas de educação – proprietários de instituições de ensino presenciais e a distância – e de outro, os trabalhadores de educação e defensores do oferecimento de uma educação pública, de qualidade referenciada socialmente, universal, laica e gratuita. 

Uma vez aprovado na Câmara e na Comissão de Educação do Senado o relatório da Deputada Angela Amim, que contemplava bastante os anseios dos defensores da escola pública de qualidade, foi objeto de um golpe político, que mudou inteiramente seu rumo, tendo sido substituído por um projeto induzido pelo Ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Paulo Renato de Souza (PSDB), relatado e assinado pelo Senador Darcy Ribeiro. E este foi o projeto aprovado e promulgado em 20 de dezembro de 1996, muito de acordo com as pressões do empresariado nacional de educação e distante das aspirações da comunidade educacional em favor da escola pública democrática.

De sua promulgação até os dias de hoje, a LDB já sofreu 331 alterações por meio de 287 novas leis e 44 medidas provisórias, a maioria provinda dos lobbies do empresariado de educação, no qual estão incluídas as igrejas católica, presbiteriana, metodista e diversas outras denominações, todas elas donas de redes de escolas no país.

A esta luta de classes interna se somam as pressões provenientes de organismos multilaterais internacionais: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Mundial, Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board), G20, BID, OEi. O Brasil, por ser membro de tais organismos ou signatário de documentos que emitem não tem força para simplesmente lhes fazer ouvido mouco.

O fato é que a soma de todas as forças do bloco de poder a favor do capital acabou por subordinar a educação aos seus interesses; o estado atual em que se encontra a educação brasileira é de estrita subordinação ao mercado. São fortes as organizações que defendem a privatização da educação ou a organização da educação pública conforme as suas demandas. Entre tais organizações se destacam o Movimento Todos pela Educação que agrupa em torno de si as seguintes fundações e grupos empresariais: Associação Crescer Sempre, Família Kishimoto, Fundação Bradesco, Fundação Grupo Volkswagen, Itau Social, Fundação Lemann, Fundação Lúcia & Pelerson Penido, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Vale, Gol, IFood, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Burger King, Fundação Educar DPaschoal, Fundação Roberto Marinho, Instituto Cyrela, Instituto Votorantim e Grupo Suzano etc.

TÍTULO I – Da Educação

Neste título está o conceito de educação, explicitado como sendo “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”

Reconhece a existência de outros agentes educativos para além da escola: família, convívio social, trabalho e locais de trabalho, instituições de ensino, movimentos sociais (feministas, negros, LGBTQI++, indígenas, quilombolas, estudantis, ambientalistas, trabalhistas etc.

A LDB, no entanto, somente trata da educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias; ela determina que esta educação deve estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social.

Aqui cabe uma observação: quando a LDB se refere ao trabalho sempre deixa transparecer a sua preferência pelo trabalho produtivo, aquele que produz mais valia. Pouco ou nenhum apreço dá ao trabalho improdutivo que não gera mais valia, ele é considerado como gasto desnecessário/ custo no jargão econômico e tratado como inutilidade pelo empresariado. Assim, não é por acaso ser grande a desconsideração da LDB com as disciplinas das áreas humanas e artísticas: história, filosofia, letras, artes, sociologia, teologia etc.

TÍTULO II – Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

A LDB atual é a primeira a dividir o dever do Estado de educar as crianças e jovens com as famílias; todas as anteriores consideravam exclusivo e inalienável este dever. Dividir tal dever com as famílias abre uma larga porta para a privatização da educação pública e revela uma vontade de saciar a voracidade de lucro do empresariado de educação. De acordo com a doutrina neoliberal de minimização do Estado, quanto maior o poder aquisitivo das famílias maior será o acesso às escolas particulares e consumo de produtos materiais pedagógicos e escolares.

Os fins ou objetivos da educação pública, conforme o Art. 2º da LDB, são “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho [produtivo].

A Constituição e a LDB ficam a dever o entendimento sobre “pleno desenvolvimento do educando”. A UNESCO o relaciona à humanização do educando, ao seu crescimento interior e desenvolvimento da consciência de liberdade e responsabilidade. Na prática, porém, a intenção é mais a de formar e qualificar o melhor e mais eficiente trabalhador do que oferecer uma educação que vise verdadeiramente o pleno desenvolvimento da personalidade. É, no entanto, difícil falar de pleno desenvolvimento do educando em face às condições de pobreza e bem-estar, questões de gênero e de discriminação sexual e relativos ao desenvolvimento social, entre outros. Para Amartya Sen (apud Zambam in “A Teoria da Justiça de Amartya Sen: as capacidades humanas e o exercíco das liberdades substantivas”, 2014) a persistência de tais condições “representam os desafios que precisam ser integrados às políticas de desenvolvimento. Sendo assim, não se pode falar em garantia das liberdades substantivas”. Por fim, é preciso acrescentar que a exacerbada pressão pela qualificação para o trabalho produtivo abafa o desenvolvimento de muitos talentos jovens e brilhantes em muitas áreas compreendidas no campo das humanidades.

O Art. 3º da LDB define quais princípios devem nortear o ensino nas escolas brasileiras. São estes os princípios: igualdade, liberdade, pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, respeito e tolerância, gratuidade nos estabelecimentos oficiais, valorização docente, gestão democrática, garantia de padrão de qualidade, valorização da experiência extraescolar, vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e de consideração com a diversidade étnico-racial.

TÍTULO III – Do Direito à Educação e do Dever de Educar

A educação básica é um direito de todos e dever do Estado e da família, conforme é estabelecido na Constituição Federal.  Conforme o Art.5º da LDB o acesso obrigatório a ela, dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete anos de idade) é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão acionar o poder público para exigi-lo”. A garantia de acesso ao ensino obrigatório (educação básica) é o primeiro dever do estado, os demais são atendidos conforme as prioridades constitucionais e legais.

Observem, porém, que a existência do Art. 5º da LDB, a rigor, não precisaria existir se o Estado, de fato, democraticamente, criasse vagas para todas as crianças e jovens em todo território nacional, que radicalmente tivesse intenções de universalização da educação. Hoje em dia, 2021, para se ter uma ideia, ainda persistem déficits de matrículas na pré-escola, somente 81% das crianças estão matriculadas, o que significa que cerca de 1,2 milhão de crianças dessa faixa etária ainda não frequentam a escola.

 Quando nos debruçamos sobre a LDB, querendo apreender a sua essência, é inevitável que sobressaia nela a persistência de um ranço utilitarista muito caro à nossa elite do atraso. Sempre esteve longe desta elite a ideia de universalização da educação de qualidade referenciada socialmente; o dever moral do estado de oferecê-la, por esta razão deixa de atingir a todos imediatamente, é preciso que os indivíduos exijam o seu cumprimento a partir de procedimentos legais que ele próprio disponibiliza. Assim, a universalização do ensino fundamental a partir de 1996 próxima de estar completada, antes de ser uma ação creditada exclusivamente ao Estado, tem sido resultado de muitas pressões da sociedade civil organizada por meio de manifestações de rua, greves, participação em audiências públicas... Em alguns momentos fica claro que os cálculos do Estado e da elite do atraso admitem que a população prefere outras ações ou como diria Bentham, “um prazer maior a longo prazo” (apud Rivera-Sotelo, 2011). Na França, por exemplo, a educação inclusiva de todas as crianças, sem qualquer distinção, é a primeira prioridade nacional: “o direito à educação é assegurado a todos para que possa desenvolver a sua personalidade, elevar o seu nível de formação inicial e contínua, inserir-se na vida social e profissional, exercer a sua cidadania(Code de l'éducation, 2022).



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ).

3 comentários:

Unknown disse...

É surreal como o mínimo de direitos são tão rasos e sem valor de equidade, o que desestimula cada vez mais um ensino crítico e reflexivo. Entende-se muito bem como é vantajoso a criação de uma falsa sensação de respaldo. Muito bom o texto! Bastante reflexivo.

Zacarias Gama disse...

Obrigado pelo comentário. É de fato surreal como restringem ou sonegam direitos, mas o nosso aluno não pode ser prejudicado por nós, os professores. Nossa ação é política contra isto, até revolucionária.
Estou me esforçando para lhes oferecer textos e vídeos bastante reflexivos. O próximo será muito mais.

Você se inscreveu no Blog? Faz isto, por favor

Emilia disse...

Oi, Professor. Existe um perfil de pais ou responsáveis que não matricularam as crianças ou esse número (80%) seria em função da pandemia?

Divagando

  A rigor a esquerda latino-americana é radicalmente contra o neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 para cá é um belo exemplo d...