19.4.20

Qual pizza prefiro: assada em forno elétrico ou a lenha?

Tem me chamado a atenção o modo como alguns países e cidades conseguem oferecer educação de qualidade com referência social para todos. E estou me referindo à Finlândia, Polônia e Sobral, aqui no Ceará. São três fórmulas diferentes, com alguma coisa em comum.
Os elementos comuns das reformas que realizaram a partir dos anos 1980 - apuro da gestão escolar, qualificação do professorado, reformas curriculares etc. - são os mais aparentes, isto é, aqueles que podem ser identificados de imediato. As diferenças começam a ser identificadas quando investigamos os objetivos das reformas e nos perguntamos quais os seus objetivos últimos, que tipos de resultados a obter?
Para mim a diferença básica é relativa aos processos. A Polônia e a cidade de Sobral fizeram as suas apostas e definiram métodos e estratégias racionais adequadas de curto prazo. Quando analiso as duas experiências sou remetido à cibernética usada pela NASA ou pela Agência Espacial Brasileira para colocar em órbita os seus artefatos espaciais. A cibernética, como campo de estudo da Física, desenvolve teorias de controle e de sistemas, juntamente com outras disciplinas, permite que os cientistas guiem os seus artefatos corrigindo os seus desvios até atingir, quase cirurgicamente, os seus alvos. O controle sobre eles em suas rotas é quase total.
A utilização de princípios cibernéticos na administração de sistemas educacionais produz resultados semelhantes e tais princípios, fora do campo da Física, conformam a gestão de qualidade com a qual operam a Polônia e a cidade de Sobral. Ambas se serviram deles para  evitar evasões, desvios de fluxo, fracassos etc. Desenvolveram meios para atingir o sucesso e conseguiram. A Polônia que até os anos 1990 tinha um péssimo oferecimento de educação de qualidade já aparece no Top 10 do ranking promovido pela OCDE após a aplicação da bateria de testes do PISA e, Sobral, com a mesma aplicação é disparada o melhor IDEB do Brasil, 9.1, o que a coloca numa posição mundial invejável. Esta administração do sistema educacional com vistas ao sucesso - medido pelo desempenho de estudantes em testes padronizados - satisfaz as autoridades educacionais e até permitem as suas reeleições e a continuidade dos seus partidos no topo da vida política nacional.
A concepção de sucesso presente na reforma educacional da Finlândia não é o alto desempenho em testes padronizados. Para os finlandeses tal desempenho não é o fim, mas efeito colateral de uma educação sólida ao longo de todo o percurso básico. Suas formas de controle são outras e, às vezes, com resultados inesperados. Privilegia-se o aprofundamento dos estudos em bases científicas desde a educação infantil, as leituras dos grandes autores e o contato com os teoremas de ouro das ciências exatas. Seus professores são incentivados a aprofundar os seus estudos, seja no campo específico de sua disciplina, seja no campo de sua área de interesse. Todos têm autonomia curricular, teórica e metodológica para provocar mediações superiores em seus alunos, exigir que desenvolvam os seus potenciais e revelem com criatividade ou inovação novos modos de compreender fenômenos. As crianças e jovens suômis fazem pouquíssimas provas ao longo da escolaridade básica, no máximo duas, mas, em contrapartida, são exigidos a se desdobrarem em pesquisas, produção de relatórios, demonstrações, debates etc.
Como podem observar, não há somente uma via para a conquista do sucesso educacional, aqui estou colocando em evidência uma horizontal, utilizada pela Polônia e Sobral, e uma vertical. Também estou afirmando que ambas são viáveis e produzem resultados esperados.
Porém, preciso advertir: os resultados tem diferentes durações e agregam maior valor de uso e troca aos estudantes. Os poloneses e sobralenses podem estar obtendo os seus certificados de conclusão da educação básica com mais destreza na resolução de testes padronizados e até das mais elevada nota nas redações de tais exames, mas fica a dúvida relativas à capacidade deles de demonstrar determinados teoremas, resolver problemas de grande complexidade, apresentar soluções criativas e inovadoras, como os alunos da Finlândia que se preparam para se inserirem em um mundo de alta complexidade e velozes transformações.
Neste momento me vem à mente o motorista que transita em alta velocidade nas rodovias de última geração, chega ao seu destino com segurança mas é incapaz de expressar qualquer comentário sobre a paisagem por onde esteve a muitos quilômetros por hora, e aquele outro que foi incapaz de voar em um bólido de muitos cavalos, mas que usufruiu a paisagem, aprendeu com ela, tornou-se outro em sua viagem.
Eu como gosto de viajar apreciando as paisagens e do sabor da pizza e feijoada de fogão a lenha, já defini a minha preferência. Fico com o sistema educacional da Finlândia.





4.4.20

Educação a distância em tempos de pandemia e a reprodução da desigualdade social





A pandemia provocada pelo novo coronavirus – Covid-19 – que assola o mundo e impõe o isolamento social generalizado, fechando as pessoas em suas casas, está mantendo metade dos estudantes de todo o mundo longe das salas de aulas, em ambos hemisférios do globo terrestre. A OMS – Organização Mundial da Saúde – já prenunciou a perda do semestre letivo. Os pais estão em polvorosa com a suspensão das aulas,  com os filhos em isolamento dentro de casa e com criatividade insuficiente para mantê-los calmos e ocupados. Alguns segmentos da sociedade começam a pressionar as autoridades escolares exigindo oferecimento de lições por meio das novas tecnologias de comunicação.
Aqui no Estado do Rio de Janeiro oferecer ou não oferecer educação a distância está na agenda do dia. Grande quantidade de pais exige-a. A Secretaria de Educação – SEDUC – é favorável e exerce pressão sobre o professorado para o seu oferecimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda que a SEDUC suspenda as atividades não presenciais por meio de qualquer plataforma educacional previstas para começar no dia 13 de março.
O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital não é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento agem açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e de forma autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de Internet fosse gratuito, universal e de qualidade igual para aproximadamente 250 mil estudantes e 40 mil professores. Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à realidade socioeconômica de discentes e docentes que, em grande parte, somente têm acesso por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro. Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm péssima cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance.
Um dia admiti igualmente fetichizado e com arrogância a possibilidade de oferecer ensino de qualidade universalmente a todos os estudantes de todas as regiões brasileiras. Hoje admito o meu grau de idealismo e a impossibilidade de oferecer EaD, dadas as desigualdades sociais e regionais do Brasil. Ainda há regiões desprovidas de luz elétrica de qualidade durante as vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores a diesel são desligados às 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas ainda são indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que habita estes lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade de usar os recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem tenha de subir em árvores para obter melhores sinais.
Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de Internet, mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteligentes. Não são todos os usuários que acessam esta rede e têm dinheiro suficiente para pagar os serviços técnicos indispensáveis. O consórcio público de educação a distância, do qual sou um dos fundadores, organizado pelas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, o CEDERJ, registra anualmente elevado índice de evasão exatamente por conta de dificuldades técnicas que os estudantes enfrentam com as suas máquinas e locais de recepção.
A cidade do Rio de Janeiro, dada a sua geografia, também reproduz a mesma realidade das demais regiões do país, a despeito de ser uma capital. Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico, Humaitá ou Barra da Tijuca é uma coisa que chega a ser prazerosa; outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do Alemão, Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça. Muitos estudantes destes lugares, inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais quando eles permitem e mesmo assim com tempo contado.
O ciberespaço está longe de conhecer a igualdade social, ele reproduz com integralidade a mesma divisão de classe da sociedade capitalista. As classes populares sofrem nele as mesmas agruras do mundo real. Os mais ricos se deliciam e se enriquecem mais e mais com os avanços científico-tecnológicos e a subordinação deles como rápidas e eficientes forças de produção.
Por esta razão, a determinação de oferecer educação a distância para o alunado do Estado do Rio de Janeiro é desprovida de empatia e alteridade, ao mesmo tempo em que pode contribuir para aprofundar as desigualdades sociais existentes. Não vem acompanhada de políticas garantidoras da igualdade de acesso para os estudantes fluminenses. Os mais abonados e remediados poderão acessar a plataforma onde se encontram os textos, vídeos, bibliotecas online etc. nos seus próprios tempos, os mais vulneráveis que se virem. O utilitarismo das autoridades educacionais, que favorece a uns com base num cálculo, desconhece e desdenha o imperativo categórico formulado por Kant: o princípio da universalidade, o fundamento da democracia social: ou é para todos, de igual modo, ou é imoral e antiético.  
O pragmatismo que a impregna a determinação da SEDUC se preocupa com os fins, sem observar a iniquidade e imoralidade dos meios que usa para satisfazer parte da sociedade e obter bons dividendos políticos, já que o calendário eleitoral de 2020 ainda está em curso. Na equação político-eleitoreira com a qual opera, dar uma satisfação social, ainda que promova mais desigualdade educacional, é melhor do que nada. O oferecimento de uma educação de qualidade pode ser postergado, pode continuar a ser uma poderosa promessa de campanha eleitoral.



[1][1][1][1] Professor Titular da UERJ/EDU/Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e Gestão da Educação. Membro do LPP-UERJ e Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio dos Santos – ProDEd-TS

20.8.19

Como e quando sair desta?

Tenho andado abatido e desalentado em consequência dos ataques que o campo da educação brasileira vem sofrendo desde a derrubada da Presidente Dilma Rousseff. Primeiro foi a PEC 241 que congelou os gastos com a educação durante vinte anos a contar de 2016, depois as trapalhadas daquele ministro da educação do golpista Michel Temer, o tal do "Mendoncinha".
Ai foi eleito o tal do Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército que parece nada ter aprendido em seus tempos de caserna e que nada entende de educação. O primeiro ministro que indicou, um tal de Ricardo Velez Rodrigues, serviu como aperitivo do que viria a seguir. O atual ministro, Abraham Weintraub, tem como objetivo destruir as instituições educacionais de todos os níveis e modalidades. Desde que assumiu fez cortes importantes que comprometem todas as metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e colocam em risco o funcionamento de todas as universidades públicas. O que vivemos é um pesadelo. Seus maiores intentos são privatistas, militaristas (militarização de escolas de educação básica), persecutórios e destruidores. Em nome do combate ao que chama de "marxismo cultural", ideologia de gênero e outras bobagens, persegue as instituições de ensino de forma mais covarde do que as perseguições dos tempos da ditadura. Esta perseguiu, torturou, matou e fez desaparecer milhares de pessoas, mas preservou as instituições e incentivou a pesquisa. O atual ministro, talvez por medo da infindável quantidade de processos que sofreria, persegue as instituições. Atrofia os seus orçamentos e se mete a nomear reitores e diretores do seu mesmo calado, desrespeitando todos os ritos universitários e a autonomia constitucional que foi conquistada.
Como escrever saudavelmente num ambiente semelhante? O gosto ao produzir um texto que aponte horizontes promissores é enorme, a gente se sente bem mesmo que criticando as políticas, as tomadas de posições e até mesmo o rumo da educação desde que numa linha de democratização e oferecimento de educação de qualidade referenciada socialmente. Como estamos o nosso horizonte de esfuma, as perspectivas são as piores e desalentadoras.
A esperança que resta é a reviravolta política, mas que demora a se constituir e adquirir força de abate de um governo impopular (uns 20% de popularidade), antidemocrático, visceralmente ligado às forças mais maléficas do lado escuro da sociedade.



29.6.19

O Capitão-Presidente, a instrução e a educação como meio de superação do homem egoísta.


Muitas pessoas têm sido favoráveis ao projeto de lei que institui a Escola Sem Partido, mesmo que não levem em consideração os seus efeitos. Defendem que à escola cabe apenas instruir; a educação é de competência das famílias em conformidade com os seus valores. 
O debate transcorre no campo da abstração, opondo alunos idealmente instruídos a outros corrompidos pelas ideias disseminadas pelos “petralhas” favoráveis à igualdade de gênero, aborto, divórcio, emancipação feminina etc. Até então nenhum exemplo concreto de homem instruído poderia ser trazido ao proscênio das discussões.

Mas, eis que o Capitão-Presidente passa a ocupar a boca da cena do grande teatro nacional, vestido em trajes simples, com uma sandália surrada e uma camisa não-oficial de time de futebol certamente comprada em algum camelô, como protótipo do homem instruído . Quando fala em público, os seus discursos são mais rápidos que o preparo de miojo e igualmente insossos; as entrevistas coletivas ou individuais que dá são marcadas pela rispidez e afirmações titubeantes que podem ser desditas na tarde do mesmo dia. As viagens internacionais e as respectivas gafes, estas então, são de corar os seus mais apaixonados defensores. Fico imaginando o seu sem-jeito diante de um prato de Filets de faisan au muscat et carottes braisés em um banquete servido pela rainha da Inglaterra e pedindo a algum assessor que lhe garanta um pão com leite condensado ou um hamburguer ao sair dos salões do Palácio de Buckingham. 
A cada dia fica cada vez mais claro a falta de educação do Capitão e a sua transformação em chacota pela imprensa do mundo afora. Mas sempre é bom frisar, ele foi bem instruído militarmente, embora possa ser considerado um homem sem educação de acordo com o ponto de vista piagetiano sobre o que é ser educado. O Capitão mal compara, ordena, categoriza, classifica, comprova, formula hipóteses “em uma ação interiorizada (pensamento) ou em ação efetiva (segundo seu grau de desenvolvimento)”[2]. As palavras incomuns são para ele como pedras em seus discursos. Nem as suas relações pessoais contribuíram para que se educasse para além da instrução recebida, considerando-se que a socialização com mentes simplórias e estrupícias pouco contribuem para a realização de mediações superiores que nos permitem chegar a acordos indispensáveis à convivência democrática e ao estabelecimento de uma sociedade justa, fraterna e livre. É, pois, a educação escolar e social, e não a instrução, que pode transformar a sociedade.

A própria UNESCO se situa no campo educacional para além das concepções favoráveis às escolas de instrução como existem e são formuladas pelos defensores da Escola Sem Partido. Para esta instituição mundial, o ato educacional pressupõe a “ajudar pessoas de todas as idades a entender melhor o mundo em que vivem, tratando da complexidade e do inter-relacionamento de problemas tais como pobreza, consumo predatório, degradação ambiental, deterioração urbana, saúde, conflitos e violação dos direitos humanos, que hoje ameaçam nosso futuro”[3]. Aos seus olhos, o nosso Capitão-Presidente está distante das preocupações para as quais orienta o ato de educar, é simplesmente um homem instruído na caserna, um homem em sua incompletude. Está anos-luz distante do que o atualmente combatido Paulo Freire nos diz a respeito de ser educado: educar-se é se humanizar e se constituir num que-fazer social-político-antropológico-ético.

Dai a necessidade de escolas que possam instruir e educar. A aquisição de conhecimentos a partir de dada instrução é importante, mas que não se restrinja a conhecimentos técnicos descontextualizados historicamente ou que seja capaz de privar ao educando o processo básico de seu desenvolvimento e relações com os outros e com o mundo. Apenas instruir é individualizar o ser que é naturalmente social, levá-lo a adquirir determinadas competências para as suas intervenções imediatas sobre os objetos da natureza, é tornar egoísta o homem. Educar, ao contrário, é conduzir o educando a assumir papeis preponderantes no processo social. É a educação que permite o desenvolvimento de dimensões importantes ao convívio humano, tais como a ética e determinada concepção elevada de mundo. É pela educação que o homem se humaniza e se socializa e é por meio do processo educacional que vislumbramos as gêneses das ações políticas. Só a educação supera o ser individual, coletivo, egoísta e apequenado. É ela a gênese do ser social, aquele que se une fraternalmente em nome da justiça, igualde e compartilhamento igualitário.

O Capitão-Presidente, coitado, a despeito das boas intenções que possa ter, é refém da instrução sem partido que recebeu.



[1] Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Educação. Membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas – LPP, Coordenador Geral do Programa Desenvolvimento e Educação Teotonio dos Santos – ProDEd-TS, ex-professor do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH.
[2] PIAGET, Jean. Psicologia e pedagogia. São Paulo: Summus, 1984
[3] UNESCO. Educação para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/education-for-sustainable-development/. Acesso em 29 de junho de 2019.

9.6.19

A violência escolar tem coisas importantes a nos dizer


Zacarias Gama[1]

Em menos de uma quinzena, a sociedade brasileira assistiu boquiaberta a dois graves atos de indisciplina em salas de aula. Em uma escola pública da cidade de Carapicuíba - SP, estudantes de uma turma hostilizaram uma professora arremessando-lhe livros e vandalizaram a sala de aula quebrando carteiras[2]. Na escola particular da próspera cidade de Simões Filho, no interior da Bahia, alguns estudantes humilharam um professor veterano e o chamaram de fedorento, como se pode ver na gravação que os próprios fizeram[3]
Nas redes sociais, nem é preciso dizer, ambos os casos adquirem grande proporção e suscitam as mais diversas reações e opiniões. É grande a facilidade de adjetivar os estudantes como grosseiros, animais selvagens, vermes e filhos de lares desestruturados, ao que se segue o desejo de os ver mofar na Fundação Casa. A generalização acaba por incluir a todos no mesmo saco, como se não houvesse algum estudante de boa índole, estudioso e incapaz de atos civilizados. De certa forma, querem caracterizar o alunado da escola pública deste modo, nenhum presta.  
As reações aos estudantes da escola particular soam diferentes. A generalização cede lugar a outra forma de percepção: uns “vermes”, bando de idiotas e vagabundos, uma reação praticada por alguns. Eles são tratados como tendo outra natureza, os casos de indisciplina são isolados e merecem tratamento especial do tipo “se fosse filho meu iria levar ao colégio para pedir desculpas pra todos e iria bater nele na frente de todos”, “mano se eu pego uns vermes desses que gostam de humilhar as pessoas , eu quebro no pau”
A escola pública, aos olhos de muitos, não tem salvação: a indisciplina com a qual convive decorre do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – “uma fábrica de marginais”, da pedagogia de Paulo Freire, das práticas didático-político-pedagógicas de “professores comunistas merecedores da violência desses demônios”; os professores são verdadeiros “agentes sóciocomunistas insidiosos que agem nas sombras da ignorância que eles mesmos promovem”. Sem a criminalização da violência escolar, supervisão militar diária das escolas, militarização da educação, isto é, dos processos de ensino e aprendizagem e de convívio social, a escola pública não tem salvação.
Em todas as falas de condenação aos atos de violência a presença constante é o preconceito contra a coisa pública e seus agentes. Na escola particular a violência aparece como evento isolado, quase como exceção; na escola pública é o que a caracteriza, juntamente com a baixa qualidade de ensino e os tais professores comunistas e freirianos. Nenhuma se detém minimamente em alguma reflexão mais aprofundada. A condenação sumária está à flor da pele e muitos corações se deixaram inundar de ódio. São incapazes de observar a as diversas formas de violência escolar como aspectos das contradições que são produzidas no trato da educação pública pelas autoridades educacionais e pela sociedade. A redução dos seus financiamentos, sucateamento generalizado, desvalorização social e salarial dos profissionais de educação, cortes de pessoal de apoio, ao lado da obrigatoriedade escolar, diminuições de exigências de aprendizado, currículos exclusivamente voltados para a formação de mão de obra, prédios escolares malconservados e mal aparelhados, cria espaços de tensões constantes, muitas vezes explosivas. Quem já parou para pensar no que significa colocar trinta estudantes ou mais diante de professores que a sociedade se encarrega de lhes diminuir a autoridade pedagógica indispensável ou simplesmente considerá-los como profissionais fracassados, incapazes de sustentar as próprias famílias com o rendimento dos seus salários? Quem se sentiria confortável e disposto disciplinadamente a receber os conhecimentos de alguém que somente tem como objetivo o proselitismo repudiado por grande fração social, de alguém que, afinal de contas, vem sendo desconsiderado como responsável pela transmissão de saberes construídos historicamente?
Sem qualquer pretensão de passar a mão na cabeça de qualquer estudante indisciplinado ou postergar a necessidade imediata de diminuir os indicadores de violência nas escolas brasileiras, sou de opinião ser urgente à sociedade discutir o tipo de escolas públicas e particulares que temos e que sonha ter, a atual percepção social dos professores, a baixa remuneração de todos os profissionais de educação, a adequação das instalações escolares e o aparelhamento didático-pedagógico delas para a realização de processos de ensino de tempo integral.
Urge ainda que a sociedade se posicione firmemente diante da famosa Emenda Constitucional do Teto de Gastos que congela durante vinte anos os investimentos em educação de todos os níveis e modalidades, das políticas do atual governo que desprezam as metas estabelecidas para serem cumpridas até 2024 que definitivamente garantem a universalização da educação pública, gratuita, laica e de qualidade referenciada socialmente e da hostilidade governamental contra professores e universidades públicas.
Em outras palavras, a sociedade precisa subordinar a educação nacional aos seus interesses de educar os seus filhos para além da condição de simples trabalhadores mal renumerados, como se estivessem predestinados divinamente a serem explorados pelo capital. Para além de futuros trabalhadores os filhos de todos nós precisam ser educados para fruir as delícias existentes no Planeta Terra.
Afinal, parafraseando o evangelista Marcos, o trabalho é para o homem, mas o homem não é para o trabalho. Uma destinação maior está à sua espera.


[1] Professor Associado da Uerj. Ex-professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana. Coordenador Geral do Programa Desenvolvimento e Educação – Teotonio dos Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ).

7.5.19

Universidades públicas: pedras no caminho do estado bolsonarista


O orçamento da Educação Brasileira para 2019 prevê a vultosa quantia de R$ 121.963.197.328,00, o qual, além de congelado por obra e graça do governo Michel Temer, está sendo reduzido pelo governo Jair Bolsonaro. Com o corte linear de 30%, todas as instituições de ensino federais têm surrupiado de seus orçamentos um montante de R$ 4.065.439.910,00. O impacto desse corte é grande, podendo fechar as portas de muitas delas. Imediatamente significa paralisar não apenas o ensino, mas sobretudo a pesquisa de ponta de alto valor agregado num momento em que nomeadamente a União Europeia se organiza para realizar capital na chamada economia do conhecimento.
Primeiro o corte foi seletivo e puniu três grandes universidades – Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade de Brasília (UNB) e Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob a irresponsável acusação de terem baixo desempenho acadêmico, permitirem balbúrdia em seus campi e não aparecerem bem nos rankings. Essa acusação leviana é incapaz de se sustentar diante dos fatos. O relatório encomendado pela Capes à Clarivate Analytics (2018)[1], com dados colhidos na plataforma InCites e na base de dados multidisciplinar – Web of Science – a desconstrói num simples piscar de olhos. No ranking de vinte melhores universidades brasileiras, a UNB, UFF e UFBA têm, respectivamente, as posições 13ª, 17ª e 19ª. Os critérios da Clarivate Analytics incorporam as quantidades de papers indexados na Web Science – muitos na lista de papers top 10 -, citações de impacto, colaboração com a indústria e coautoria com colaboradores estrangeiros. A produção cientifica brasileira é a 13ª em nível mundial e seus resultados crescem anualmente, afirma o mesmo relatório; esta produção é superior à de países como Holanda, Rússia, Suíça, Turquia, Twain, Irã e Suécia. 
A razão do corte praticado pelo governo bolsonarista não é esta, absolutamente.  Ela certamente deriva de sua disposição de combater o que chama “marxismo cultural”, termo inventado pela extrema-direita e conservadores americanos, na década de 1990, para justificar ataques a intelectuais e instituições que se opunham às suas bandeiras supremacistas e cheias de ódio. O estado que o bolsonarismo procura construir não apenas objetiva liberalizar e privatizar radicalmente a economia; usar o lawfare para liquidar oponentes e travas à sua governança; restringir os espaços democráticos e direitos historicamente conquistados.  É-lhe importante restaurar os costumes, a família monogâmica cristã, branca e proprietária tal como imagina ter existido em um passado mítico e, em especial, liquidar a hegemonia das ideias herdadas do Iluminismo em todas as áreas do conhecimento e espaços públicos. As instituições federais de ensino, pesquisa e extensão, das escolas de educação básica aos cursos universitários de graduação e pós-graduação, aos olhos dos construtores do estado bolsonarista, soam como aquela pedra no meio do caminho cantada em verso pelo poeta Carlos Drummond de Andrade:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

O trabalho de sufocar as instituições federais de ensino, pesquisa e extensão realizado pelo governo é somente comparável aos crimes de lesa-pátria praticados pelos mais tenebrosos ditadores, tanto os prejuízos que impõe à sociedade e à soberania nacional do Brasil. Tamanho reacionarismo  interrompe, por exemplo, as pesquisas de biotecnologia, engenharia de alimentos, nutrição e materiais, fármacos e terapias, micro e nanotecnologia, processos e compostos químicos, software de modelagem termodinâmica, nanocompósitos, biovidros etc. etc. O próprio Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, recém-inaugurado na Unicamp, maior do que o seu similar existente na Suécia, corre o risco de viver o seu mais absoluto apagão.
A ser consolidado, o estado bolsonarista nos imporá a escuridão anti-iluminista. E, como nos recomenda Jeremias, 13-16, é aconselhável imediatamente todos nós darmos  
“glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão”.


[1] CROSS, Di; THOMSON, Simon; SIBCLAIR, Alexandra. Research in Brazil: A report for CAPES by Clarivate AnalyticsClarivate Analytics, 2018. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/images/stories/download/diversos/17012018-CAPES-InCitesReport-Final.pdf> Acesso em 06 de maio de 2019.


15.4.19

Precisamos falar sobre Paulo Freire

É impressionante como o bolsonarismo ataca a obra de Paulo Freire tentando incitar a todos, odiosamente, a ter repulsa desse pedagogo mundialmente reconhecido. Com certeza os bolsominions não o leram, exceto as mais idiotas postagens no Facebook e outras mídias. 

O Paulo Freire, criado por essa gente, em nada fica a dever ao porquinho Bola de Neve - de Orwell - na obra Revolução dos Bichos. Bola de Neve foi a ameaça criada por aqueles que queriam manter a fazenda dominada por gigantescos e ferozes cães pastores. Freire, no entanto, não queria derrubar tronos ou altares. muito pelo contrário.  

Freire só é melhor compreendido quando o situamos ao lado dos intelectuais do ISEB: Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Para os isebianos (Hélio JaguaribeGuerreiro RamosCândido Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré) era necessário identificar e atacar as estruturas arcaicas produtoras e reprodutoras do atraso do país como condição para o seu nacional-desenvolvimentismo.
Freire participa perifericamente dedicando-se à educação popular. 

Sua grande tese, exposta em Pedagogia do Oprimido (http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/paulofreire/paulo_freire_pedagogia_do_oprimido.pdf), tem em mira o analfabetismo, isto é a grande quantidade de brasileiros incapazes de pensar crítica e autonomamente a realidade em que vivem. Assim, com grande influência da antropologia, tem como objetivo a alfabetização de adultos com consciência da realidade que os oprime. O ti-jo-lo é um bom exemplo. Os oleiros que o produziam aos milhares eram incapazes de compra-los tanta a exploração que sofriam. A consciência de tal exploração os levariam a novas e menos injustas relações com os seus patrões. 

Freire não pregava a luta de classes nem a tomada do poder pelo proletariado. Seu idealismo hegeliano tinha como horizonte o equilíbrio pacífico e harmonioso dos contrários. Seu cristianismo levava-o ao convívio pacífico dos homens como criaturas divinas.


Este é o grande Paulo Freire, um homem de paz e de amor. 

As leituras enviesadas de suas teses é que transformam o reformista num revolucionário que nunca saiu de baixo do manto da igreja católica.

Que educação é esta? Até quando?

Imagem Copilot Com o gado bolsonarista berrando loucamente pelas ruas, me pergunto sobre o que entregaram as aulas de História, Geografia, ...