14.11.20

FNDE E FUNDEB: pela qualificação docente já!






Em uma "live" recente, Gaudêncio Frigotto e Eu discutimos o financiamento da educação brasileira (Financiamento da Educação Brasileira, Parte 1 e Parte II, YouTube). Nela ressaltamos diversos aspectos importantes, a começar pela centralidade e importância do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE - e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB.   

O FNDE, segundo informações próprias, repassou R$ 14.181.616.664,77 para a efetivação de programas, o que, convenhamos, não é pouco dinheiro. Em malas não sei em quantas caberia. Toda esta dinheirama foi para o pagamento de bolsa e auxílios diversos; custeio de despesas com manutenção e desenvolvimento da educação infantil; renovação, padronização e ampliação da frota de veículos escolares; fornecimento aos entes federados de instrumento de diagnóstico e planejamento de políticas de educação; aparelhamento das escolas com banda larga de Internet; garantia de merenda escolar e livro didático para mais de 45 milhões de crianças e jovens matriculados na educação básica; promoção do uso pedagógico das tecnologias de informação e comunicação nas redes públicas de educação básica e etc. Isto não é pouca coisa e, ao mesmo tempo, demonstra a grandiosidade dos embates políticos entre a sociedade civil organizada e governo pelo atendimento à educação pública. A quantidade de dinheiro não é maior por conta dos lobbies privatistas no Congresso Nacional que lutam contra a existência de uma escola pública de qualidade referenciada socialmente, gratuita, universal e inclusiva que faria frente à oferta de educação pela iniciativa privada. Se todas as escolas públicas tivessem a qualidade pela qual lutamos ardorosamente a razão de existirem escolas privadas teria sido extinta; dá para imaginar o tamanho do prejuízo dos empresários particulares de educação.  

O FUNDEB, por sua vez, é outro fundo gigantesco que concentra recursos provenientes dos impostos e outros que são transferidos aos estados, DF e municípios vinculados à educação básica, conforme determinações constitucionais (Art. 212 da Constituição Federal). A finalidade de 60% de todos os seus recursos é garantir que o valor por alunos (Custo Aluno Qualidade Inicial - CAQi) seja igual para todos em todo território brasileiro. O 40% restantes são usados para garantir que todos os docentes possam receber pelo menos o salário-mínimo nacional estabelecido pela lei federal nº 11.738 de 2008.  

Algumas características destes fundos públicos devem ser ressaltadas, a começar pelo caráter distributivo de ambos garantindo a melhoria física e qualitativa das escolas públicas do país e a igualdade salarial mínima dos docentes. Imagine o quanto seria fantástico o momento em que todas as nossas 180,6 mil escolas de educação básicas estiverem bem aparelhadas fisicamente, funcionamento em bons prédios escolares, com Internet de banda larga e computadores e equidade salarial docente mínima! As desigualdades educacionais regionais teriam terminado! Matricular os filhos numa escola de São Paulo ou do interiorzão do Brasil faria pouca diferença em termos de comodidade e oferta de mínimos de educação de qualidade referenciada socialmente. Devo também ressaltar o caráter técnico do Fundeb, na medida em que os seus recursos são distribuídos por alunos comprovadamente matriculados e com frequência regular. A objetividade deste caráter pôs fim à politicagem na hora da distribuição dos recursos, porquanto fez cessar a ingerência de políticos na destinação deles. Cada escola recebe pelo quantitativo de alunos matriculados e frequentes. O corolário imediato de tal objetividade é a pressão para liquidar a evasão escolar dada a diligência das escolas: cada aluno evadido passa a ser igual a menos verba de manutenção e custeio. Por mais endiabrado que seja um estudante já se foi o tempo em que os diretores queriam se ver livres dele. Ele agora tem importância econômica para as escolas.  Por fim devo ressaltar de ambos os fundos o caráter e o empenho democrático de oferecer educação de qualidade socialmente referenciada em todo território brasileiro.  

Não obstante todas as virtudes dos dois fundos públicos, há que colocar em destaque a essência quantitativista de ambos. Eles trabalham com a ideia de que a qualidade pode ser medida por indicadores de variedades e quantidades. Em texto escrito em parceria com um colega - Gama & Klagsbrunn, 2005 - ressaltamos que as melhorias físicas nas escolas ou nos salários, necessariamente não se traduzem em qualidade da educação; regra geral as melhorias ocorrem apenas no âmbito do próprio indicador. Se numa dada escola é aumentada a quantidade de computadores e melhorado o acesso à banda larga isto apenas significa que o indicador computador e acesso é melhorado. Nenhum estudo, de Hegel aos nossos dias, comprovou que as alterações no âmbito de algum indicador se transladam para outro ou outros. Marx, por exemplo, nos diz que não basta que um tear de tecidos de linho tenha as melhores instalações e tecnologias para produzir com elevada qualidade sem tecelões altamente qualificados. São as habilidades e conhecimentos de tecelões altamente qualificados que conseguem os melhores resultados com os teares de última geração. Por suposto, um tecelão com baixa qualificação poderia, além de produzir tecidos com baixo valor de troca e uso, danificar os teares em pouco tempo, causando enormes prejuízos.  

Com os docentes ocorre caso semelhante. Muitas instituições escolares privadas com prédios construídos segundo os últimos preceitos de arquitetura escolar e aparelhamento didático-pedagógico up to date, conseguem desempenhos pífios se as comparamos com instituições públicas com professores mais bem qualificados e aprovados em concursos, mesmo que não tenham o mesmo aparato físico e didático-pedagógico. Ou seja, a quantidade e a qualidade dos insumos materiais se influenciam a qualidade, o fazem em pequena quantidade. Sem professores de alto nível pouco se evolui, não basta que a escola seja bonita e bem equipada.  Os ranqueamentos nacionais e internacionais de qualidade das universidades comprovam o que falo. Nossas universidades de padrão mundial são todas públicas, as únicas exceções são algumas universidades pontifícias como as PUCs do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. E nós sabemos o quanto as nossas instituições públicas de ensino superior, pesquisa e extensão vêm sendo sucateadas há longo tempo. Seus docentes, entretanto, transitam com desenvoltura no meio acadêmico mundial e suas publicações científicas são referenciadas pelos seus colegas pelo mundo a fora. O mesmo é válido quando voltamos os nossos olhos para a rede de colégios Pedro II e para muitas outras instituições federais de educação básica.  

Os dois fundos são, sem dúvida, extremamente importantes e a sociedade não pode renunciar a nenhum dos dois. Eles, contudo, precisam avançar para que tenhamos a educação de qualidade referenciada socialmente que desejamos, criando programas de qualificação do professorado com bolsa e liberação de tempo para aprofundamento de estudos, condições de mobilidade acadêmica e intercâmbios de conhecimento. E nem precisam reinventar a roda, bastando tão somente aproveitar a expertise da CAPES para o aperfeiçoamento do professorado de nível superior. O sucesso comprovado da educação básica da Finlândia tem as suas bases na qualidade dos professores, nenhum é admitido sem ter mestrado em sua área de atuação docente.  

E isto é urgente. A maioria das instituições de ensino superior que oferecem cursos de licenciamento de professores, públicas ou particulares, não está formando profissionais de alto nível. Em pesquisa realizada recentemente, pude constatar a precariedade formativa existente. Tomando apenas como exemplo, os cursos de Biologia, Matemática e Letramento (Pedagogia e Letras) avaliados pelo PISAé fácil identificar a claudicância da maior parte Em funcionamento há no Brasil 143 cursos de Biologia nas IES públicas (universidades, centros universitários, faculdades, institutos superiores e CEFET) e 234 nas IES privadastodos em grandes cidades das regiões mais desenvolvidas, mas mais da metade dos cursos oferecidos pelas IES públicas (56,37%) sequer consegue metade dos pontos no quesito Ensino obtidos pela USP (62,92) no Ranking Universitário Folha de São Paulo (RUF 2019)entre as IES particulares o escândalo é ainda mais gritante: 99,14% delas sequer conseguem obter 20.00 pontos no mesmo quesito. Os 283 cursos de Matemática das IES públicas e particulares apresentam problemática semelhante. Fora das capitais e algumas cidades grandes das regiões Sul e Sudeste e do Distrito Federal é impossível encontrar um curso de Matemática com uma qualidade minimamente aceitável. E isto fica pior quando colocamos foco nas IES privadas: 97.14% são incapazes de alcançar 20.00 pontos no quesito qualidade de ensino avaliado pelo RUF 2019.  

A situação dos cursos de Pedagogia (formação de docentes para a Educação Infantil e ano iniciais do Ensino Fundamental da Educação Básica) e de Letras segue o mesmo padrão. O Brasil conta com 144 cursos de Pedagogia oferecidos pelas IES públicas e impressionantes 913, pelas IES privadas. maioria dos cursos privados se concentra em São Paulo (268), seguido de Minas Gerais, 102; Paraná, 80; e Bahia, 56Apenas quatrestados entre os mais ricos da Federação, os da Região Sudeste – Minas GeraisSão Paulo e Rio de Janeiro – e um da Região Sul – Rio Grande do Sul, oferecem cursos de Pedagogia bem avaliados pelo RUF 2019. Todos os demais sequer atingem a metade dos pontos obtidos por qualquer uma das cinco melhores IES PúblicasUFRJ, UNESP, USP UNICAMP e UFRGSA situação dos cursos de Letras oferecidos em 129 IES públicas e 283 IES particulares também se repete, é a mesma catástrofe em termos de qualidade de ensino. A avaliação de todas IES privadas fica bem abaixo da média das IES Públicas. Aliás, 279 delas sequer conseguem 17.00 pontos de avaliação, na escala de 0.00 a 100, e isto corresponde a 98,58% do total.  

São tais constatações que justificam a criação de programas destinados à qualificação dos docentes em nível de pós-graduação, assim como é imperativo categórico a fiscalização séria e eficiente dos cursos em funcionamento. São vultosos os prejuízos sociais, políticos  e econômicos que decorrem da formação de professores com baixa qualificação.   



Publicado em Brasil 247

3.11.20

Eu, Minha Tia e o Golpe do Atraso


Disponível no site: 

                          https://www.jstor.org/stable/j.ctvnp0jkr.5?seq=1#metadata_info_tab_contents

25.10.20

É suficiente bater as metas do IDEB?

 

Impressora 3D - Brasil Escola


O INEP divulgou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB - 2020) que, conforme a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases, é um indicador que informa à sociedade a quantas anda a corrida pelo oferecimento de educação de qualidade do Brasil. No Relatório é visível o esforço de municípios e estados para obter os melhores indicadores, merecendo destaque imediato os estado de Pernambuco e Ceará que já apresentam índices iguais e superiores a muitos estados das regiões Sul, Centro-oeste e Norte. Os municípios do Nordeste com os melhores índices estão nos estados do Ceará (Mucambo, 9.4; Independência, 9.1; Milhã, 8.7; Pires Ferreira, 8.5; Sobral, 8.4) e Alagoas (Coruripe, 8.9; Teotônio Vilela, 8.4). 

Quando se estabelece o Ideb 4.0 como ponto de corte, 11 estados ficam acima e os demais abaixo. As regiões NE e N têm a maior quantidade de estados com Ideb abaixo de 4.0 respectivamente sete e cinco), seguidas da região Centro Oeste, com dois estados. As regiões Sudeste e Sul, as mais ricas do país, têm cada uma, um estado que ainda não consegue um indicador igual a 4.0; estes são os estados do Rio de Janeiro e Santa Catarina. 

O estado ou município que queira aumentar o seu IDEB precisa gerenciar a qualidade da educação que oferece. É o que se chama de controle da qualidade, tomado de empréstimo das grandes corporações industriais. O estado do Ceará parece estar se tornando uma espécie de expertise em tal gerenciamento e não por acaso vem surpreendendo o país com os índices obtidos. Internacionalmente o destaque vai para a gerencialista Polônia que, nos últimos anos vem aparecendo no Top 10 do ranking do PISA - OCDE.

A qualidade da educação que os estados e municípios mais bem sucedidos oferecem, no entanto, não tem garantia de ser para a vida toda. Parece qualidade e durabilidade de produto de $ 1,99: usar e jogar fora. Explico. A engenharia educacional traça o plano de trabalho e as suas metas; produz material adequado e facilitador ao cumprimento das metas; os professores operam com base nos manuais de produção de qualidade; os estudantes dão conta de produzir bons resultados desde que haja muita pressão da escola e das famílias. Em cidades do extremo Oriente como Hong-Kong, Cingapura, Taipei etc. é isto o que acontece e são campeãs nos rankings citados. Contudo, na correria para bater as metas esse gerencialismo da educação menospreza os processos de interação entre os alunos e de mediações importantes para elaborações superiores e mais complexas. Sem a devida atenção a estes dois processos as fixações são esquecidas com grande brevidade.

A educação ofertada na Finlândia não é gerencialista como na Polônia e alguns estados brasileiros. Educa-se para a vida toda e permite aos estudantes fortes momentos de interação (troca de conhecimentos entre pares, professores, familiares e amigos) e de mediações. Daí a sua presença constante nos rankings internacionais. A mediação - uma categoria filosófica - é o esforço mental que fazemos diante da realidade (buscando compreender e interpretá-la) ou diante de textos escritos procurando apreender os seus aspectos essenciais e mais subjetivos. É um constante alargamento da leitura de mundo, à qual se referia Paulo Freire. 

Por conta do gerencialismo produtor de elevados índices de qualidade a minha comemoração a tais conquistas é ainda muito tímida. É um avanço, sem dúvida e há que aplaudir todos os esforços realizados. Contudo, para atingirmos a educação de qualidade referenciada socialmente, isto é, reconhecida pela sociedade, é preciso ainda gerenciar não apenas o preparo para resolver provas, testes internacionais ou ter respostas na ponta da língua. Nossa educação precisa ter valor de uso, que permita ao educando não apenas ler o mundo, mas transforma-se a si mesmo e ao mundo; ser senhor de onde habita e do mundo, permitindo-se ser ainda, ao mesmo tempo, singular e universal. Também precisa ter valor de troca no sentido de garantir ao estudante a atenção às suas necessidades materiais e espirituais. Esta educação se faz com professores bem preparados e não apenas com professores batedores de metas, estes são bons funcionários sob ordens estritas ou rigorosos planos de trabalho, nada mais do isto.  

Precisamos desta educação de qualidade reconhecida pela sociedade com urgência, sobretudo para um tempo de aceleradas transformações promovidas pela Revolução Técnico-científica que, ao digitalizar o mundo do trabalho e da produção, vem expurgando trabalhadores desde os mais simples aos mais qualificados. Esta Revolução vem liquidando profissões e postos de trabalho, criando com voracidade uma nova pobreza constituída de ex-executivos endividados e desempregados, famílias flageladas por desastres naturais, herdeiros empobrecidos, sonegadores autuados, políticos e autoridades públicas vítimas de  graves processos de lacração social, "além das milhares de pessoas que sobrevivem com baixos salários em territórios de exclusão e possuem contratos precários de trabalho ou se encontram na informalidade e que precisam de assistência" (Jacy Curado, 2012). A extrema pobreza já atinge hoje 13,5 milhões de brasileiros e, segundo dados do 1º trimestre de 2020, 27,6 milhões perderam os seus empregos.

Por todas estas razões, somente bater as metas do IDEB é pouco. O Brasil com fome e desempregado exige mais, muito mais.  

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28.8.20

Quarenta anos depois da década perdida de 1980, compensamos os prejuízos?



Fila de livros antigos — Fotografia de Stock


Zacarias Gama

Os anos de 1980 foram de vitórias políticas que interromperam a ditadura militar que se abateu sobre o Brasil a partir de 1964 e culminaram com a promulgação da Constituição de 1988, chamada de Cidadã. Iniciou-se a partir dos últimos dias de governo do ditador General João Batista Figueiredo a Nova República e a redemocratização do país. O mesmo, todavia, não se pode dizer em relação à economia e à educação. A década de 1980 foi considerada como perdida: “das taxas de crescimento do PIB à aceleração da inflação, passando pela produção industrial, poder de compra dos salários, nível de emprego, balanço de pagamentos e inúmeros outros indicadores, o resultado do período é medíocre. No Brasil, a desaceleração representou uma queda vertiginosa nas médias históricas de crescimento dos cinquenta anos anteriores” (Marangoni, 2012).  A inflação média ao longo da década foi superior a 230% ao ano, em consequência dos gastos públicos, elevação do endividamento externo e aumento dos preços do petróleo durante o período ditatorial. Economicamente a década foi caracterizada pela inflação galopante, elevação do endividamento externo e defasagem industrial.


 Em relação à educação a situação foi igualmente de década perdida: somente 22.598 milhões de crianças e adolescentes tinham matrículas no Ensino Fundamental e a taxa de distorção idade-série era de 79,8% na 7ª série; no Ensino Médio as matrículas só atingiam a 2.189 milhões de estudantes; no Ensino Superior as 492.232 vagas oferecidas nas universidades públicas eram insuficientes para a população em idade universitária e havia apenas 27 programas de pós-graduação em todo território com a maior avaliação realizada pela Capes – nota 7 (IPEA, 2006). Nesta década, 25,5% dos brasileiros acima dos 10 anos não sabiam ler e escrever. O impacto da reforma educacional feita pela ditadura militar (Lei de Diretrizes e Bases nº 5.692 de 1971) para as escolas públicas de educação básica foi catastrófico por conta da determinação de conferir certificação profissional ao final do Ensino de 2º grau, o que sobrecarregou a grade curricular e dificultou o acesso de muitos ao Ensino Superior. A política educacional brasileira foi vinculada de forma direta às demandas da economia com prejuízo das preocupações pedagógicas. A formação de um corpo técnico de nível médio tornou-se central na reorganização educacional conforme os interesses ditatoriais.

A década de 1990 requereu, por conseguinte, consideráveis esforços teóricos e de investigação para superar a década anterior, a começar pela crítica à escola tradicional e às suas práticas avaliativas, ambas essencialmente reprodutivistas, autoritárias e excludentes. Neste sentido, foram importantes os estudos de Louis Althusser, Cristian Baudelot e Roger Establet, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Samuel Bowels e Herbert Gintis, Mariano Enguita, Dermeval Saviani e diversos outros, como inspirações e referências teóricas da intensa produção textual no Brasil.

As práticas avaliativas, fundamentalmente pautadas pelas teorias e práticas docimológicas e comportamentalistas, também foram amplamente criticadas. O destaque brasileiro cabe a Carlos Cipriano Luckesi que as criticou visceralmente e levou o professorado a aceitar a avaliação como ato amoroso e inclusivo, sem classificações e reprovações. A ordem avaliativa passou a ser acolher e qualificar com base em dados relevantes. A entrada em cena de outras teorias, sobretudo a Fenomenologia e a Gestalt, geraram outros formas de observar e avaliar os produtos escolares realizados pelos estudantes.

Mas, como bem observou Saviani (2013) ao estudar a escola tradicional e a escola nova, também aqui a vara foi curvada com muita força para o outro lado, sem que encontrasse um ponto de equilíbrio a partir do qual ficaria desenvergada.  Com a inflexão realizada, é verdade que a pedagogia tradicional teve o seu espaço reduzido, mas tal redução deu lugar a uma nova pedagogia que tenha sido capaz de melhorar os indicadores de qualidade da educação básica oferecida na rede pública de escolas? Quarenta anos depois, a resposta está longe de ser positiva. Muito embora sejam evidentes diversas melhorias no sistema nacional de educação, o Relatório do PISA 2018 destaca que muitos alunos ainda conseguem pontuação abaixo do nível mínimo em leitura, matemática e ciências” e que somente 1% dos alunos brasileiros obteve notas altas em matemática.

Por hipótese, a superação da pedagogia tradicional, considerada como cheia de vícios e nenhuma virtude, deixou de ser acompanhada de uma nova pedagogia e práticas avaliativas que pudessem levar os nossos estudantes “a compreender, usar, avaliar, refletir sobre e envolver-se com textos, a fim de alcançar um objetivo, desenvolver conhecimento e potencial, e participar da sociedade; formular, empregar e interpretar a matemática em uma série de contextos, o que inclui raciocinar matematicamente e utilizar conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas matemáticos para descrever, explicar e prever fenômenos;  envolver-se com as questões relacionadas com a ciência e com a ideia da ciência, como cidadão reflexivo; participar de discussão fundamentada sobre ciência e tecnologia, o que exige as competências para explicar fenômenos cientificamente, avaliar e planejar investigações científicas e interpretar dados e evidências cientificamente” (PISA 2018).

A nossa lerdeza para desenvolver uma nova pedagogia e instrumentos de avaliação adequados, em uma sociedade marcada pela desigualdade social, agrava-se ainda mais frente aos desafios trazidos pela revolução científico-tecnológica que vivemos. É imperativo que mundo da educação instrumentalize os nossos estudantes para que possam viver num mundo digitalizado no qual, a cada dia, as forças produtivas exigem menos trabalho vivo. Segundo dados do IBGE (2020), na comparação com o primeiro trimestre deste ano (2020), a taxa de desocupação subiu 1,1 ponto percentual e fechou o segundo trimestre em 13,3%. O percentual de desocupados chegou a 12,8 milhões de pessoas. O nível de ocupação da força de trabalho caiu 5,6 pontos percentuais frente ao trimestre anterior, atingindo 47,9%, o menor da série histórica. Em outras palavras, mais da metade da força de trabalho do Brasil está desocupada e cada vez mais com restrições de direitos trabalhistas.

Lamentavelmente, estamos longe de estar compensando as nossas perdas ao longo dos últimos quarenta anos. Estamos nos enredando nas teorias pós-modernas que individualizam e fragmentam tudo e todos e ainda propõem transformar as instituições escolares em organizações socais como se não houvesse diferenças entre as escolas e as montadoras de veículos, por exemplo. Em termos de avaliação da aprendizagem escolar o que foi produzido a partir de Luckesi é deveras incipiente e idealista. As teorias que campeiam hoje, vem de fora. Este é o caso de Phillipe Perrenoud que coloca a avaliação entre a lógica de seleção e uma formatividade conforme os anseios dos neoliberais e em atenção às demandas imediatas do mercado de trabalho. 

Como tantas outras teorias também esta condena eternamente os jovens ao trabalho como se nascessem exclusivamente para ele. 

21.8.20

Uma reflexão possível a partir da obra “Crer e Destruir” de Christian Ingrao






Who Were the Hitler Youth? | History Hit
Zacarias Gama[1]

Nestes tempos de bolsonarismo o livro de Christian Ingrao – Crer & Destruir, os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista (Zahar, 2015), é assaz aterrorizante como expressou o Wall Street Journal. Ingrao é ligado ao Centro Nacional de Pesquisa Científica e foi diretor do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), ambas instituições são francesas. Sua pesquisa para obter o grau de Doutor na Fundação para a Promoção da Ciência e Cultura, em Hamburgo, é importante, original e relata como oitenta jovens inteligentes e cultos, formados pelas melhores universidades alemãs se deixaram cooptar pela ideologia nazista e pela ideia de extermínio em massa. Ele reconstrói os trajetos de economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas que escolheram o lado do mal.  Seus objetivos: “compreender em que medida as molduras da experiência vivida foram capazes de modelar seu sistema de representações” e “analisar o nazismo como um sistema de crenças ‘desangustiante’, cuja coerência entre discursos e práticas fosse apontada pelas ferramentas de análises e se encarnasse em percursos e carreiras” (p.11). Ou, em outras palavras, “como esses homens fizeram para crer e para destruir”. O que une os sujeitos investigados é o fato de terem participado de campanhas de repressão no Leste Europeu, de matanças e do genocídio de judeus, eslavos, latinos, ciganos e homossexuais.

A relevância deste estudo para entendermos a ascensão do bolsonarismo e a sua chegada ao Palácio do Planalto é grande. À semelhança do que Ingrao investigou, aqui também entre nós, inúmeros jovens com carreiras promissoras em diversos campos do conhecimento humano e diplomas referenciados socialmente se tornaram os pilares de sustentação de um governo que a cada dia se mostra mais autoritário, antidemocrático, impopular, homofóbico, aporofóbico, machista e fundamentalista, e nada faz para conter o genocídio de jovens pretos e pobres. A pergunta que fez, também vale para nós: como promissores e bem formados jovens podem apoiar este governo e contribuir para destruir os avanços democráticos conquistados nos últimos anos, restringir direitos sociais e transferir recursos naturais e riquezas socialmente produzidas para as mãos de grandes exploradores internacionais?

Ingrao faz as suas apostas nos sentimentos de angústia de muitos jovens alemães típicos do período entreguerras, que os levaram a determinados engajamentos políticos, a ver na formação elitista das SS os meios para se distanciarem das hordas ignaras e a entrar no jogo político-institucional, a partir do qual contribuiriam para justificar científica e ideologicamente as atrocidades do regime hitlerista. Angústia e representações das organizações paramilitares nazistas seriam os motivos maiores da adesão à construção do III Reich, aos quais eu ainda acrescentaria: ambição e busca de poder e prestígio social.
O autor da obra enquanto se fixa em sentimentos de angústia e trajetórias não se pergunta, entretanto, quem eram estes jovens, quais as suas concepções de mundo antes da chegada ao poder do Partido Nacional Socialista, que capacidade tinham de realizar elaboradas mediações a partir da realidade concreta. Considera-os como jovens formados em níveis superiores nas melhores universidades e analisa os seus percursos e engajamentos. Seu ponto de partida é a sua surpresa ao constatar que economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas contribuíram para “cientificizar” e justificar os horrores praticados pelas Waffen-SS.

A participação e o engajamento de indivíduos com boa formação superior seja como apoiadores ou quadros, não é, todavia, uma exclusividade das SS ou do nazismo. A história nos fornece muitos outros exemplos ao longo de todo tempo da cristandade. Aqui entre nós poderíamos recorrer a diversos outros, a começar pelos intelectuais orgânicos das ditaduras de Vargas e Civil-militar de 1964-1985. Minha hipótese é que o comprometimento com regimes autoritários está diretamente ligado à construção de uma dada concepção de mundo. Vejamos.
O ser humano, diferente de outros seres que agem conforme as suas inscrições genéticas, é um ser aprendente a partir de seus primeiros momentos de vida e, como diz Lukács, as suas apreensões do mundo externo das objetividades se dá imediatamente e na imediaticidade insuprimível sob forma de coisa. Paulo Freire diria que neste estado os indivíduos têm uma consciência intransitiva mítica, mágica e ingênua. São limitados em suas capacidades de apreensão do real, utópicos, irracionais e fanáticos. A consciência deles é em si e por si, na mais pura formalidade. Eles vivem em um mundo de representações comuns, cujos fenômenos penetram em suas consciências e os fazem ver o mundo com movimentos próprios e naturais. Em tal mundo, subordinam-se a manipulações de outros.  São incapazes de indagar, descrever e, portanto, de captar a essência dos fenômenos. Paulo Freire se dispôs a ajudar o homem simples e analfabeto a superar a sua compreensão de mundo, a inércia, a passividade e a alienação. Seu objetivo era que desenvolvessem uma consciência crítica, isto é, um nível avançado de consciência que tudo submete à análise e crítica, porque, afinal, o que é verdadeiro hoje pode deixar de sê-lo amanhã.  Contudo, como afirmei em outra oportunidade (Gama, 2020), não se chega a este estado de modo abrupto, há que haver esforço, um processo de conscientização no qual vão se desenvolvendo os graus de tomada de consciência. É imperativo fazer mediações e mais mediações diante do real.

Sem tal esforço, isto é, sem mediações complexas e cada vez mais abrangentes, os indivíduos, quando muito, tendem a atingir somente um estágio de consciência um pouco mais elevado no qual as respostas continuam contaminadas de teor mágico, porquanto se encontram distantes de apreenderam a essência dos fenômenos e as suas múltiplas determinações. Determinismo e fatalismo também permanecem presentes, daí que os fenômenos continuam sujeitos a leis naturais e às relações de causa e efeito; são poucas ou nenhuma as alternativas reais. Nada acontece fora de seu tempo, a vida de todas as coisas vivas ou inanimadas está subordinada à lógica criativa divina.

O processo educacional escolarizado deveria ser importante para todos chegarem ao estado de desalienação, mas pela própria complexidade na qual de funda, é incapaz de garantir certificados a todos que participam dele. Já houve quem tenha afirmado que a mesma escola tradicional do alvorecer do século XX formou Einstein e Hitler. E o porquê disto se deve aos movimentos contraditórios que caracterizam os processos escolares; a dialeticidade reinante, como já sabemos, tanto permite a formação de indivíduos reprodutores do status quo quanto de outros que o negam e o revolucionam. De igual modo, uns tantos completam os seus tempos escolares sem atingir os elevados níveis de consciência crítica ou de desalienação; outros tantos, apesar de tudo, alcançam na mesma trajetória escolar a superação das determinações e fatalidades fenomênicas, tornam-se sujeitos de suas histórias e da história da humanidade.
Com essa compreensão, fica relativamente fácil entender o porquê de existir economistas, advogados, filósofos, geógrafos, historiadores e linguistas em estado de intransitividade ou transitividade crítica incompleta, na terminologia de Freire. O projeto Escola Sem Partido, felizmente vetado pelo Supremo Tribunal Federal, permitiria a existência exponencial de pessoas alienadas portadoras de diplomas de nível superior, bastando tão somente que as instituições de formação restringissem os conteúdos disciplinares a coisas em si, incapazes de serem compreendidos para além de si mesmos e, praticamente, sem relações com os demais componentes curriculares e com a realidade concreta.

Conheço diversos indivíduos com diplomas de cursos superiores que sustentam o bolsonarismo, a despeito de sua elevada rejeição social. O que fizeram para crer e o que fazem para destruir é resultante da modelagem dos seus sistemas de representações em níveis de consciências mítica e transitiva. É sintomático que concebam o atual presidente da República como um mito, isto é, como um ser com forças da natureza e aspectos gerais da condição humana.  As trajetórias que são capazes de seguir no interior do bolsonarismo variam conforme os seus sentimentos de angústia face ao que chamam de “marxismo cultural”, à corrupção e desrespeito aos cânones bíblicos. A ideia de construir um Brasil, sintetizada no lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, serve para demonstrar a imersão, alienação, imitação e idealismo utópico existentes. 

A mesma irracionalidade e o fanatismo que caracterizaram as Waffen-SS, distinguem o bolsonarismo e seus seguidores, apropriadamente chamados publicamente de bolsominions, em nítida alusão aos “minions”, que segundo a Wikipedia são personagens de uma animação cinematográfica, evoluídos de organismos aquáticos, unicelulares e amarelos, para seres com um único propósito: subserviência aos vilões mais malvados da história. 

Por último vale dizer que as trajetórias dos jovens alemães e brasileiros são difíceis de serem enquadradas em conceitos como o de oportunismo. Antes, eles se regem por suas concepções de mundo e encontram os seus lugares ao conectarem os seus saberes às demandas dos simpatizantes e eleitores do partido. Eles igualmente tendem a reprimir os oportunistas e não se abalam frente aos comandos de destruir.

Eles creem cegamente.



[1] Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ. Colaborador do PPFH.

13.8.20

2020: o ano que não vai à escola






A pandemia de Covid-19 está pressionando os sistemas públicos e particulares de educação a oferecer ensino remoto a distância. Mais de 28,6 milhões de estudantes da educação básica e 3,7 milhões da educação superior, em pesquisa realizada pelo Senado Federal passaram a ter aulas remotas (Senadorense, agosto de 2002). Aparentemente são números estonteantes que devem agradar a muitos políticos que prezam pelas formas utilitaristas mais antidemocráticas, que Stuart Mills certamente reprovaria. Mas, se olhamos de outra perspectiva, a realidade é perversa, sobretudo, com os estudantes mais pobres: 59,7% dos estudantes da educação básica e 44% da educação superior estão excluídos. Grande quantidade afirma não ter internet em casa e apenas 24% usam PC para receber os conteúdos postados; a maioria usa celulares, mas a pesquisa deixa de especificar se são pré-pagos ou pós-pagos e o tamanho dos seus pacotes de dados. 

Nesta mesma pesquisa chama a atenção a resposta expressamente subjetiva dos participantes quanto à qualidade das aulas: para 64% a qualidade diminuiu; aumentou para 8% e 22% afirmaram que permaneceu igual; 6% abstiveram-se. Como em todas pesquisas, nada ficaremos sabendo em que piorou, melhorou ou continua igual. É, entretanto, significativo que a maioria tenha atestado a diminuição da qualidade e isto é deveras preocupante porque, conforme demonstrei em texto anterior, a qualidade da educação básica e da educação superior no Brasil está muito aquém da qualidade desejada, como atestam os indicadores de qualidade da OCDE, utilizados pelo MEC, e da Clarivate Analytcs

Como se pode observar é forte o impacto da pandemia sobre a educação brasileira que, imediatamente aprofunda as desigualdades sociais existentes e rebaixa mais ainda a qualidade da educação brasileira. E pasmem: o governo federal nada faz a respeito. O novo ministro, o professor Milton Ribeiro, empossado como quarto ministro de educação deste malfadado governo, desde a sua posse em 16 de julho nenhuma palavra pronunciou a respeito desta grave crise educacional. A Presidência da República por sua vez, por opção, também fecha os olhos à morte de mais de 100 mil brasileiros e mais de 3 milhões de contaminados, preferindo uma falsa interpretação de humanitarismo ao enviar ajuda material ao povo do Líbano após a explosão no porto de Beirute. 
A sensatez no campo da educação começa a ser revelada pelos estudantes de vários estados brasileiros. O BBC News (10 agosto 2020) conversou com diversos e, segundo pensam a educação a distância, deveria ser “pensada com seriedade, não como paliativo ou improviso, como estamos fazendo, de qualquer maneira". Muitos estão chegando ao ponto de preferir a reprovação: “Não é que vou tomar bomba, eu só vou realmente fazer meu terceiro ano, ano que vem. Aprender de verdade para ter condições de fazer um Enem decente, digno". "Se eles não cancelarem essas aulas, eu vou reprovar de propósito. Não dá, mano, tá impossível estudar via internet". "No caso, não seria reprovar, seria fazer mesmo o segundo ano. A gente não está fazendo o segundo ano, nem sei o que a gente está fazendo. Todos os meus amigos estão com dificuldade, todos reclamam, ninguém está entendendo nada das matérias".

Não fossem as razões de sobrevivência das instituições particulares de ensino básico e superior, o melhor que poderia ser feito seria declarar inexistente o período letivo de 2020 até a suspensão do isolamento social. Nestas grandes férias escolares o MEC coordenaria a retomada das aulas presenciais sem prejuízos para os estudantes, desenvolveria plataforma digital para ações emergenciais e coordenadas e proporia um calendário acadêmico nacional para todos os estudantes de forma a garantir os seus prazos de conclusão e a aquisição de conteúdos de qualidade.

Mas isto, dependeria de vontade política social, o que não parece ser preocupação do atual governo federal: ele prefere passeios de moto e helicóptero nos finais de semana, assistir a partidas de futebol e até oferecer comprimidos de cloroquina às emas que habitam o jardim do Palácio da Alvorada.


Este ano, 2020, não tenho muita dúvida, entrará para a História, como sendo o ano que não foi à escola!


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