25.5.22

A universidade está se liquefazendo. Vamos abrir os olhos?

Publicado na minha coluna no  Brasil 247

https://www.brasil247.com/blog/a-universidade-esta-se-liquefazendo-vamos-abrir-os-olhos



As aulas presenciais nas universidades estão de volta depois de pelo menos cinco semestres de ensino remoto e de levar o professorado a entrar no mundo digital a toque de caixa, a despeito do pequeno apoio financeiro e tecnológico oferecido pelo Estado. Cada professor em seu isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 teve de se virar com os seus aparelhos eletrônicos da forma que pôde. E houve de tudo, desde quem tivesse usado as teclas ctrl+alt+del pela primeira vez, até quem tivesse se achado um grande influenciador digital ou um George Lucas criando efeitos mirabolantes para as suas aulas. O fato é que o aprendizado de todos foi grande, muito embora se possa afirmar que a entrada da Universidade, em sua completude, no mundo digital tenha sido postergada. Ela se fixou no ensino remoto e demonstrou a sua inaptidão, má vontade ou incapacidade de oferecer uma educação a distância de qualidade.

Os estudantes, grande quantidade nascida neste século XXI, constituem um mundo à parte em se tratando de ensino remoto e, como disse Henry Giroux na obra Teoria Crítica y Resistencia em Educacion (Siglo XXI, 1992), com muita criatividade apreenderam e dominaram de imediato as artimanhas desta modalidade de ensino, somando-as às que desenvolvem com maestria no ensino presencial. Elas foram tão bem apreendidas que houve Departamento obrigado a limitar o número de matrículas em disciplinas para evitar diplomações em tempo recorde; enquanto as inscrições foram livres houve quem requeresse matrícula em mais de vinte disciplinas em um único semestre. Durante as aulas remotas os estudantes também aprenderam a fazer muitas coisas ao mesmo tempo, desde namorar, fazer as unhas e cabelos, arrumar os armários, produzir Reels para o Instagram, vídeos para o TikTok e outras coisas que até Deus foi incapaz de pensar. Aprenderam, inclusive, a participar de aulas remotas com vídeos desligados e, não duvido, que até com o som.

Esse comportamento estudantil, à distância ou presencial, nos força a pensar sobre os seus significados. Ele é uma simples malandragem juvenil ou contém elementos de maior profundidade e preocupação social? Duas hipóteses são plausíveis.

Com base teórica em Giroux ele pode ser compreendido como força para anular ou subordinar as formas docentes de dominação. O poder, afinal de contas, não é unidimensional e tanto pode ser exercido como modo de dominação e de resistência “ou mesmo como expressão de uma forma criativa de produção cultural e social fora da força imediata de dominação” (Giroux, 1992, p. 145). Positivamente é a astúcia estudantil que consegue impedir o reprodutivismo absoluto que Bourdieu afirmou haver nas instituições escolares; ela vai além de uma simples vadiagem. Como produto cultural e social este comportamento tende a se tornar longevo e ter consequências importantes, ao naturalizar formas de agir, ser e estar na universidade. Ele é parte substantiva da cultura escolar e estudantil.

Se, contudo, apoiamo-nos em Jameson para o compreender, outras de suas facetas se tornam visíveis. Ele apresenta ares de um movimento que refuta a seriedade e a racionalidade da instituição escolar, a afirmação das manifestações formais.  São “reações específicas a formas canônicas da modernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações” (Jameson, 1985). Não são mais simples resistências como Giroux as apreendeu, mas complexos movimentos reativos que refutam a herança social recebida. As análises de Baumann, revelam que são poderosas forças de liquefação da modernidade que trazem à boca de cena o grande público que devora a moderna elite cultural, assiste aos programas populares de TV e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, populares e até intelectualizadas desde que contenham importantes rebaixamentos. Debates e leituras profundas se tornam enfadonhas e as preferências recaem sobre os debatedores e leitores que são engraçados e que aligeiram as coisas para consumo rápido.

É preciso, todavia, esclarecer que numa época de transição, as sólidas instituições e valores antigos tendem a se liquefazer, ou como dizia Marx a se desmanchar no ar. É o novo se impondo sobre o velho, muito embora ambos ainda possam conviver por bastante tempo. O primado da burguesia na modernidade custou a liquidação das instituições do Antigo Regime feudal; hoje é a voraz classe dominante deste capitalismo tardio que impõe à sociedade o individualismo mais radical e fragmentador, a liquidação dos tribunais da razão e a superação da modernidade cheia de amarras que não mais lhe convém.  

O território universitário de hoje, onde tais estratégias coletivas e individuais vicejam, além de fluído, está bastante próximo do mundo do pastiche típico da pós-modernidade, no qual a produção acadêmica se torna neutra, perde a combatividade de antes e a originalidade; o mesmo ocorre nas artes em geral, com destaque para o que acontece na música e artes plásticas. Tudo ou quase tudo já se encontra pronto e à mão no Google, Wikipédia e nos tutoriais do YouTube. O pastiche reina.  Tudo é imitável e a prática acadêmica se torna neutra, sem graça e sem combatividade, “é uma fala em língua morta”, nos dizeres de Jameson. Segundo o Google, somente na WEB há mais de 14 páginas com aproximadamente 138 milhões de resultados para trabalhos acadêmicos prontos, gratuitos ou com preços módicos.  

Nas universidades os professores mais modernos e inflexíveis e até o ministério público se mostram sem vontade ou forças para deter os avanços do pastiche. Dialeticamente, elas e eles também se tornam outras e outros, alinham-se com a ordem social emergente do capitalismo tardio para alegria dos conservadores e da direita politicamente organizada. Os estudantes e simpatizantes empurram elas e eles em direção ao futuro de um mundo globalizado com astúcias cada vez mais novas, tirando proveito delas e até os forçando a se abdicarem de funções sociais herdadas da modernidade; tudo isto com muitas dancinhas no TikTok ao som do funk e do sertanejo.  A universidade iluminista em processo de liquefação vai se tornando outra e diferente.

A universidade brasileira vai sendo impelida a reassumir a condição de grande escola de diplomação de profissionais de nível superior sem compromissos com a ciência. Estamos sendo forçados a voltar à condição de compradores de saberes produzidos alhures. Lyotard em sua obra A Condição Pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, em tom quase profético já chamava a nossa atenção para a monopolização da produção de saberes pelos países avançados e da disposição deles de escamotear ou sonegar tais saberes aos países periféricos:

As sociedades periféricas só terão pleno acesso a eles se os respectivos governos ou as empresas nacionais delegarem às suas instituições de saber, ao alocar-lhes fundos generosos, a indispensável tarefa de aprimoramento de um corpo de pesquisadores e de docentes de altíssimo nível. A pesquisa de ponta é o alicerce indispensável para que se afirme o poder econômico na competitiva era pós-industrial (Lyotard, 2009, p. 126).

As reformas das universidades brasileiras e latino-americanas dos anos 1980 para cá já traduzem os interesses destes países. inspiradas no Processo de Bolonha e no que deriva delas, com grande financiamento do Banco Santander, como por exemplo o Espaço Comum de Ensino Superior da União Europeia, América Latina e Caribe (ECES – UEALC) submetem as universidades da região a determinados parâmetros e indicadores de qualidade definidos pelos países centrais e ao que está sendo chamado de sociedade do conhecimento. Na divisão internacional de produção de conhecimentos que vai se desenhando, reserva-se para nós, brasileiros e latino-americanos o papel de compradores de conhecimentos de alta complexidade e vendedores de conhecimentos básicos, da mesma forma como nos tornamos produtores e vendedores de commodities.  

É preocupante a inexistência de reações conscientes e organizadas a essa liquefação da modernidade. De certa forma assistimos bestializados aos acontecimentos e às surpreendentes novidades em todos os setores da vida social como se fosse uma simples fatalidade e não como sendo expressão da mais importante e abrangente luta de classe em escala planetária.

Quando abrirmos os olhos já será tarde.

Il est désolant!





4.5.22

Educar é amar as nossas crianças e jovens e impedir que sejam expulsos do nosso mundo.

 


É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, diz um ditado cheio de sabedoria corrente na África. Sábio por quê? Porque concebe a educação de alguém, quem quer que seja, como um processo coletivo, inclusivo e multidisciplinar; porque atribui a responsabilidade de educar as crianças e jovens a todos os membros da aldeia de modo a que cada um ensine o que sabe.  O sucesso ou o insucesso educacional é de responsabilidade coletiva.

Nós, os urbanos, ao contrário, somente nos responsabilizamos pela educação dos nossos filhos, mesmo assim se não vivemos em situação de vulnerabilidade social. No Brasil de hoje, grande quantidade de crianças e jovens vivem nesta situação e têm os seus processos educativos prejudicados. E isto não é de hoje. Desde o período colonial tem sido assim. As crianças, com as suas relações familiares ou comunitárias esgarçadas, passam a viver amizades e parcerias instáveis e inseguras nas ruas, em absurdas situações de pobreza e isolamento social. Atualmente mais de 40% de crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em situação domiciliar de pobreza. São 17,3 milhões de crianças e jovens vivendo com rendimentos mensais domiciliares per capita de até meio e até um quarto de salário mínimo, segundo informes da Agência Brasil. Vivem fora de uma rede de proteção social e educacional tentando conseguir onde podem os elementos materiais de sobrevida até o dia seguinte. Perambulam pelas ruas sozinhos ou em grupos e atemorizam quem passa por eles.

Essa situação de vulnerabilidade de milhares de crianças e jovens é extremamente preocupante, demanda eficazes políticas sociais e esforços de muitos indivíduos, instituições, fundações e cidades. Precisa ser forte o combate à desigualdade que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo.

As redes escolares têm sido pressionadas a dar respostas a este problema. É comum que lhes atribuam poderes de afastar o contingente de vulneráveis das ruas com oferecimento de ensino de tempo integral. A Meta 6 do Plano Nacional de Educação (2014-2024), por exemplo, visa “oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” até o fim da vigência do Plano. Contudo, supondo que tal meta seja alcançada há ainda a perguntar: todas as crianças e jovens receberão uma educação de qualidade ministrada por docentes bem qualificados, com valor de uso e troca? Muito embora a Meta 7 do PNE busque “Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir [boas] médias nacionais” estamos sem garantias efetivas de que a educação de qualidade com valor de uso e troca seja alcançada ainda nesta década.

A crise política e institucional que vivemos tem impedido o desenho de um horizonte alvissareiro e pleno de boas novas para esta juventude com vida provisória e em suspensão, como Frigotto (2020) a adjetivou. Desde 2016, quando ocorreu o golpe que promoveu o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, os seis ministros que ocuparam a pasta da educação nas gestões dos presidentes Temer e Bolsonaro pouco ou nada fizeram em seu favor. As escolas, em geral, nem avançaram no oferecimento de ensino de tempo integral e tampouco melhoraram significativamente a qualidade da educação oferecida.

Nenhum dos seis ministros sequer fez algum tipo de chamado às famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.  para constituir uma rede de proteção social e educacional para as nossas crianças e jovens. Eles antes distribuíram verbas do MEC aos prefeitos da mesma religião, compraram kits robótica para escolas sem água e computadores... (Folha de São Paulo, 2022) e deixaram crescer a onda que culpa e criminaliza a pobreza. Cada vez mais a sociedade exige do Estado ações para reduzir a maioridade penal, promover as “guerras às drogas”, aparelhar tropas de choque militar, encarcerar em massa e militarizar as escolas, como se tais ações pudessem atingir a raiz do problema, a desigualdade social que castiga o país (Andrade, 2018).

O envolvimento das famílias; igrejas; sociedade política; sindicatos; mídia em geral; instituições de letras e belas artes; clubes recreativos, esportivos e de serviços etc.. é o que pode nos restituir a educação solidária e coletiva como a das aldeias africanas. A escola por si só é incapaz, mesmo que seja de tempo integral. É indispensável a existência de espaços fora de seus muros que favoreçam processos multidisciplinares, sentido de coletividade e inclusão. Se as prédicas religiosas se tornam mais educativas, menos escatológicas e submissivas já ajudariam bastante. A mídia em geral também tem condições de contribuir com temas relevantes para a promoção humana em lugar das fofocas e outras matérias de consumo fácil e alienante; as letras e belas artes também cumpririam papel relevante contribuindo para a superação da realidade transformada em pura aparência (estética, fetichizada e libidinizada), um “repositório de imagens e de simulacros”, como Jameson (1997) a descreveu.

A ação cooperativa e consciente destes agentes educativos seria como uma grande cruzada em favor da educação das nossas crianças e jovens. As cidades inteiras, com os seus agentes educativos já nomeados estariam educando as nossas crianças e jovens ao oferecer tamanho apoio ao trabalho docente feito no interior das escolas.

Hanna Arendt, no texto em que discute a Crise na Educação,1961, lembra-nos que educar é amar as nossas crianças, evitando que sejam expulsas do nosso mundo,  fiquem entregues a si próprias e deixem de ter possibilidade se prepararem para a tarefa de criação de um mundo melhor e imprevisto por nós.

19.3.22

Transformando Pessoas, Criando novas Ideias.





Estou tendo uma experiência ótima com os meus estudantes remotos das Licenciaturas da UERJ. Propus um curso comparativo de Políticas de Educação para que superassem os limites internos. Toda legislação brasileira de educação é comparada com as leis da Finlândia, México, França, Estados Unidos, Bolívia e Argentina.

A percepção deles, quase que imediata, é que toda orientação brasileira se volta para a qualificação dos estudantes conforme as necessidades do mercado de trabalho. Daí o grande desprezo pelas disciplinas- História, Filosofia, Sociologia e Geografia - que a elite do atraso considera um luxo dispendioso e desnecessário. Em sua lógica formativa não vale a pena gastar com disciplinas que qualificariam para o trabalho improdutivo como se não fosse intrínseco ao modo de produção capitalista.

Outra percepção é a pobreza das nossas leis que sequer admitem a nossa diversidade racial e linguística. São leis de brancos para brancos com um olhar mínimo para os povos originais e quilombolas.

Também percebem o quanto o Estado tenta se desvencilhar de seu dever de educar nossas crianças e jovens trazendo as famílias a compartilha-lo. Em todos os países o oferecimento de educação pública de qualidade para todos é um dever inalienável e prioritário. Na Finlândia chega-se ao ponto de o Estado designar tutores personalizados para os estudantes com dificuldades de aprendizagem.

O material de estudo foi obtido junto aos ministérios de educação da Finlândia e França e nas páginas que disponibilizam na WEB. A tradução do Suomi e dos documentos franceses é americanos é feita satisfatoriamente pelo Google Tradutor.

Também já estão percebendo o quanto os governos de 2016 para cá - Temer e Bolsonaro - fazem mal à educação brasileira, não apenas pelo não cumprimento da Meta 20 do PNE, mas pelos cortes de verbas, nenhuma ação efetiva pela sua melhoria e nomeação de quatro ministros que nada entendem de educação.

A disponibilização do material de estudo e as leituras que realizam permitem que eles façam as suas mediações(Ver o conceito de Mediação 2015 em Gama 2015). A mediação é um ato intelectivo pessoal e único; ninguém pode mediar pelo outro. É por seu intermédio que as pessoas se tornam outras e adquirem ideias próprias. As ideias que vão surgindo das meditações sobre algo concreto são poderosas e libertadoras na medida em que cada um aprende a desenvolver os seus próprios pensamentos sobre as coisas.


5.3.22

17.2.22

A educação brasileira de volta ao passado, 30 ou 40 anos em quatro

 



 

Zacarias Gama[1]

 

 

O Brasil foi um dos signatários da declaração final da Conferência Ibero-americana de Educação, promovida pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) em El Salvador, 2008, a partir da qual os presentes assumiram acolher as “Metas 2021: a Educação que Queremos para a Geração dos Bicentenários” e se comprometeram a concretizá-las em harmonia com os planos de educação dos seus respectivos países. As metas, onze no total, corresponderiam às aspirações históricas de colocar a educação como sustentáculo das liberdades individuais e como força de consolidação dos regimes democráticos.  

A rigor nenhuma das onze metas exigiriam esforços gigantescos ou dispêndios além da capacidade de financiamento de cada país. Em tese as vontades políticas dos governos e das sociedades civis somadas aos recursos já existentes seriam suficientes para que fossem materializadas. As Metas 2021 visavam ampliar a participação da sociedade na ação educativa; alcançar a igualdade educacional e eliminar a discriminação na educação de crianças e jovens; aumentar a oferta de educação infantil e potencializar seu caráter educativo; universalizar o ensino fundamental e ampliar o acesso ao ensino médio; melhorar a qualidade da educação e do currículo escolar; conectar educação e emprego com o incremento da educação profissional e tecnológica; oferecer a todos oportunidade de educação ao longo da vida; fortalecer a profissão docente; ampliar o espaço ibero-americano do conhecimento e fortalecer a pesquisa científica; investir mais e melhor; e avaliar o funcionamento dos sistemas educacionais e do projeto “Metas Educativas 2021”. Aqui no Brasil, muitas destas metas já estavam incorporadas ao Plano Nacional de Educação de 2001-2010 e ainda integram o PNE 2014-2024 (LEI Nº 13.005/2014).

O impacto da crise política no Brasil que culminou no Golpe de 2016 atrasou o cumprimento das metas. O governo golpista de Michel Temer que substituiu a Presidente Dilma Rousseff até o fim do mandato em 31 de dezembro de 2017, pouco fez para cumpri-las; sua maior iniciativa foi o engessamento das ações do MEC ao limitar os seus gastos aos patamares de 2016 (Brasil, PEC 241/2016). O governo de Jair Bolsonaro, que  assumiu a presidência em janeiro de 2018, desde a sua campanha eleitoral deixou bem claro que o seu “objetivo é fazer Brasil semelhante ao que era há 40, 50 anos” (Folha de São Paulo, 15.out.2018). Até o presente o presidente tem se esmerado no cumprimento de sua promessa. O Relatório de fevereiro de 2021 da Comissão Externa destinada a acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos do Ministério da Educação, bem como da apresentação do seu Planejamento Estratégico (CEXMEC) constata que o Presidente caminha a passos largos para efetivar in totum a sua promessa de campanha.

A CEXMEC, coordenada pelo Deputado Felipe Rigoni (PSL/ES), tendo como relatora a Deputada Tabata Amaral (PSB/SP), e integrada por parlamentares da base de apoio do governo, portanto, acima de qualquer suspeita, concluiu o seu relatório afirmando que “os esforços e os investimentos realizados pelo Ministério da Educação nestes três anos (2019, 2020 e 2021) foram muito aquém do necessário para o atendimento das principais demandas da educação básica brasileira. Mais ainda: avaliou serem grandes as omissões do MEC em iniciativas de coordenação e políticas educacionais estruturantes, além de despriorizar as modalidades de ensino, rebaixar as dotações orçamentárias e pagamentos, serem inertes e letárgicas. Fechou o documento chamando a atenção de todos para as consequências negativas para milhões de estudantes, professores e demais atores do campo da educação.

O relatório de monitoramento do PNE divulgado pelo INEP em julho de 2020, de exclusiva responsabilidade do MEC, na mesma linha do relatório da CEXMEC, confirma a péssima administração da educação desde a crise de 2016. Somente uma das 20 metas do PNE previstas em lei foi cumprida integralmente e 5 tiveram cumprimento parcial, isto porque não eram ambiciosas e já estavam próximas de serem cumpridas; todas as demais estão longe de serem alcançadas. É grande a estagnação do MEC e muitas as trapalhadas dos incompetentes ministros (até agora quatro) que se sucederam na sua gestão, um deles (Ricardo Vélez Rodríguez, de origem colombiana), nada sabia de educação brasileira e mal sabia falar português. Para piorar, há expressivos retrocessos dado o aumento do analfabetismo funcional e a diminuição do número de matrículas em educação integral.

Quanto à concretização das “Metas 2021: a Educação que Queremos para a Geração dos Bicentenários”, acatadas pelo Brasil na Conferência Ibero-americana de El Salvador, em nível continental o vexame é maior: nenhuma meta foi ou será batida até o nosso bicentenário.  Segundo relatório da OEI (Seguimiento de las Metas Educativas 2021 y su articulación con el ODS4, 2019) a ampliação da sociedade na ação educativa dos filhos (Meta 1), acompanhando e perguntando sobre atividades escolares, tarefas e notas obtidas, a despeito dos níveis socioeconômicos, foi menor no Brasil do que no Chile, Equador, Honduras, Paraguai, Peru e República Dominicana; na mídia corporativa brasileira não se viu ou se vê qualquer campanha que incentive os pais a acompanharem mais os seus filhos nas atividades escolares. Quanto à Meta 2 que previa o aumento do grau de equidade entre escolas e dentro das mesmas a fim de beneficiar os estudantes menos favorecidos, o Brasil deixou de cumpri-la e ainda ficou abaixo do Chile, Peru, Portugal e Uruguai. As metas seguintes de aumentar a oferta de educação infantil e potencializar seu caráter educativo, concluir o ensino fundamental e aumentar as matrículas no ensino médio estão longe de serem batidas.  Quanto à meta de melhorar a qualidade da educação e do currículo escolar com vistas ao melhor desempenho em Leitura, Matemática e Ciências, o resultado brasileiro foi melhor apenas em matemática; Colômbia e Portugal foram os únicos países com aumentos notáveis de rendimento nas três disciplinas, bem diferentes do Uruguai e Espanha que deixaram de mostrar melhoras significativas. Dentre as demais metas vale destacar positivamente os avanços brasileiros em relação à profissão docente no que se refere à titulação: em 2014 o Brasil já tinha superado a meta de ampliar em 75% o percentual de docentes com mestrado e doutorado. Porém, paradoxalmente, o país ainda se encontra longe de ter 100% dos docentes com formação adequada na educação básica. No ensino médio pouco mais da metade dos docentes (56,6%) possuem licenciatura na disciplina que lecionam ou bacharelado na área e curso de complementação pedagógica.

O monitoramento avaliativo das 20 Metas do PNE (2014-2024) espelha com nitidez o relatório Metas 2021 elaborado pela OEI. Praticamente inexiste discrepâncias entre eles. A seguir apresento os estágios em que se encontram algumas metas constantes do PNE. A meta de atender 50% dos menores de 3 anos e 11 meses nas creches até 2024, somente atingiu 37% até 2019. A alfabetização de todas as crianças até o terceiro ano do Ensino Fundamental continua a ser um sonho; até 2016 em média 52% tinham aprendizagem adequada em leitura, escrita e matemática. A meta de 95% dos alunos do Ensino Fundamental o concluírem até os 16 anos de idade também está distante de ser batida: somente 82,4% conseguiram completar esta etapa da educação básica em 2020. Sequer conseguiremos reduzir para 13,5% a porcentagem de analfabetos funcionais; em 2020 ainda havia 29% de brasileiros maiores de 15 anos nesta condição. Em 2020 as matrículas de tempo integral correspondiam à metade da meta de 25% até 2024. O acesso ao ensino fundamental, para crianças de 6 a 14 anos, está praticamente universalizado, mas somente 82,4% o concluem com êxito; a meta estipulando que 95% o concluíssem aos 16 anos em 2024 está adiada. O mesmo ocorre com o ensino médio. A meta que deveria garantir 85% dos jovens de 15 a 17 anos matriculados no ensino médio em 2024 também não foi batida; apenas 75% dos jovens cursavam esta etapa em 2020.

A visibilização de tais resultados confirma o nosso andar de caranguejo no campo da educação. A remota hipótese de reeleição do ex-capitão à presidência da República é apavorante e acena com uma volta ao passado ainda maior, quem sabe à Idade Média negacionista, terraplanista, fundamentalista...

Que Deus nos acuda, a educação brasileira está de volta ao passado!



[1] Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS). Membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).

14.2.22

LDB - Organização, Níveis e Modalidades, Profissionais e Financiamento da Educação




Nosso tema continua sendo a LDB de 1996 e tomaremos como objeto três dos seus títulos: a organização da educação nacional, os níveis e modalidades de educação e ensino, os profissionais de educação e o financiamento da educação. O objetivo continuará sendo iluminar o que se encontra subjacente em seus artigos e a subordinação do projeto de educação do estado brasileiro aos interesses do empresariado capitalista. A abordagem metodológica utilizada  contém a intenção de desvelar as “verdades” que ela contém.  

A organização da Educação Nacional

A organização da educação nacional conforme é estipulado na Constituição e na LDB é da competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e a sua operacionalização ocorre de acordo com a razão do Estado brasileiro. De acordo com as leis, os estados e os municípios têm liberdade de organizar os seus sistemas de ensino, porém, sem fugir às determinações do poder central. É a União que coordena, articula, normatiza e avalia; determina as formas de colaboração; coleta, analisa e dissemina informações sobre a educação; presta assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e administra os estabelecimentos do seu próprio sistema de ensino. A liberdade organizacional dos entes federativos, por maior que possa ser, é limitada pelo poder central.

Há três sistemas de ensino no território brasileiro, cada qual cuidando de órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino: federal, estadual e municipal. Os estados, restritos aos limites das suas fronteiras, é que prioritariamente cuidam do Ensino Médio e os municípios de cada estado, do Ensino Fundamental. O sistema de ensino federal abarca as instituições de ensino superior (públicas e privadas), de ensino básico (Colégio Pedro II, colégios militares, CEFETS etc.) e demais órgãos federais de educação, pesquisa e inovação tecnológica (Conselho Nacional de Educação, CNPq, Capes etc.).

Os estabelecimentos de ensino dos diferentes níveis são públicos, administrados pelo Poder Público, e privados, por entidades mantenedoras leigas, confessionais, comunitárias e filantrópicas. Em 2020 havia 178,4 mil escolas de educação básica no território brasileiro: municipais, 60,1%; estaduais, 16,6 %; privadas, 22,9 %; as federais correspondiam a menos de 1%. Quando consideramos a distribuição das matrículas na educação básica por dependência administrativa, percebe-se que a maior quantidade ocorre na rede municipal (48,4%); na rede estadual, 32,1%; na rede privada, 18,6%, e na federal menos de 1%. No ano de 2021, foram registradas 46,7 milhões de matrículas nas 178,4 mil escolas de educação básica no Brasil (Brasil, Censo da Educação Básica, 2021).

Como disse anteriormente, a organização e o funcionamento do sistema de ensino brasileiro ocorrem de acordo com a razão do Estado brasileiro, isto é, em concordância com os interesses dos detentores dos poderes do estado, não obstante os limites existentes, entre os quais o direito, sem dúvida um poderoso instrumento limitativo. Mas há outras limitações, como por exemplo, aquelas que são impostas pelos interesses da classe social ou grupo de poder que domina o aparelho de estado. Um estado dominado por uma grande aliança de empresários de todos os setores da economia, como no Brasil nos dias atuais, dificilmente atenderá às demandas dos trabalhadores assalariados e vice-versa. Um estado religioso, de qualquer religião, primeiro governará para satisfazer a classe sacerdotal. E assim por diante. O Estado, como campo de forças, sempre será organizado conforme aqueles que ocupam os centros de poder; no Brasil de hoje eles são ocupados por empresários da indústria, finanças, comércio, bancos, serviços, agronegócio e também por intelectuais, partidos, igrejas neopentecostais e o próprio estado). A forma que o Estado adquire e todo seu poder emana daí. Foucault, no curso que administrou em 1979, denominado Nascimento da Biopolítica, afirma haver atualmente uma razão de Estado neoliberal pautada pelo mercado, e, de acordo com tal razão, o estado lida com os fenômenos político-mercadológicos para sempre favorecer ao bloco de alianças que o hegemoniza. O governo prioritariamente se interessa pelo que é vital a esse bloco, à ampliação do seu poder e capital. Assim, se torna claro que a organização e o funcionamento da educação nacional estão de acordo com o que este Estado de empresários se dispõe a oferecer aos demais membros da sociedade, o que, aliás, é muito pouco:  o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo para o exercício da cidadania que reproduza e não se insurja contra o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (Brasil, Guia da política de governança pública,  2018), e sua qualificação para o trabalho produtivo.

Níveis e Modalidades de Educação e Ensino

A educação escolar que emana da LDB de 1996 compõe-se dos atuais níveis de ensino: I – educação básica, com as etapas educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior. Esta nomenclatura é uma característica da LDB de 1996. As LDBs anteriores tinham outras nomenclaturas e não incorporavam a educação infantil. Para termos uma ideia, a LDB de 1961 reconhecia os seguintes níveis: primário, secundário, colegial (científico, clássico, normal, comercial etc.) e superior. A LDB do período ditatorial, por sua vez, dividia a atual educação básica em 1º grau (com 8 séries), 2º grau (correspondente ao atual ensino médio) e Educação Superior.

Além desses níveis e etapas, a LDB define como modalidades de ensino a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Profissional e Tecnológica e a Educação Especial. A Educação Indígena e Quilombola não constituem modalidades de educação, ela só se refere à Educação Indígena en passant alertando para a necessidade de ofertar escola bilingue e intercultural aos povos indígenas; quanto ao oferecimento de educação às populações quilombolas, o tratamento é o mesmo das escolas rurais no Art. 28. 

A LDB atual, em relação às anteriores, apesar de atender às demandas do mercado, contém significativos avanços com destaque para o aumento da escolaridade obrigatória para 11 anos a partir dos 3 anos de idade até os 17 anos. Também merece destaque a inclusão da educação infantil (até os 5 anos de idade) no sistema de ensino nacional permite à escola complementar a ação educacional da família e da comunidade e equaliza o tempo de duração da educação básica com outros países. Por fim, deve-se destacar a consideração da educação básica como uma totalidade, isto é, como um conjunto estruturado no qual as partes têm influências umas sobre as outras. Se antes as políticas podiam ser pensadas para determinados segmentos (por exemplo: primário ou 1º grau séries iniciais), a partir da promulgação desta LDB elas passarão a pensar todos os 11 anos da escolaridade básica. Foi por esta razão que o ex-Presidente Lula da Silva transformou o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – 1997) em FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). 

Profissionais de Educação

A LDB define como profissionais da educação escolar básica “os que, nela exercem a docência estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos” (Art. 61). Eles precisam ser habilitados em nível médio ou superior ou serem portadores de diplomas de pedagogia ou de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim. O profissional com notório saber reconhecido pelos sistemas de ensino pode ser docente em áreas afins à sua formação, o mesmo vale para o graduado em qualquer área que tenha feito complementação pedagógica.

A LDB, é preciso atentar, é ambígua no tratamento dispensado ao profissional de educação, ele ora é tratado como professor, ora como profissional de educação; nas LDBs anteriores tal indeterminação era inexistente, todos eram considerados como professores. Foi somente quando a razão do Estado passou a ser o mercado é que se desenvolveu uma concepção técnica que reduziu o docente da educação básica à mesma condição de todos os demais profissionais assalariados, chegando-se ao ponto de se consagrar o dia 6 de agosto como Dia Nacional dos Profissionais de Educação (Lei Nº 13.054, de 22 de dezembro de 2014), revogando-se o Decreto nº 52.682, de 14 de outubro de 1963, que declarava o dia 15 de outubro como o Dia do Professor”. De certa forma, com esta nova denominação, conclui-se assim o processo de proletarização do professorado brasileiro.

A LDB determina que os profissionais de educação sejam valorizados pelos sistemas de ensino federal, estadual e municipal, e que se lhes garantam Ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aperfeiçoamento contínuo, piso salarial, progressão na carreira, carga horária com tempo reservado para estudo, planejamento e correção de trabalhos e, claro, condições adequadas de trabalho.

Financiamento da educação

Os recursos financeiros para a educação brasileira são provenientes dos impostos recebidos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, transferências determinadas pela Constituição e outras, receita do salário-educação e de outras contribuições sociais, receita de incentivos fiscais e outros recursos legais. A União deve aplicar no mínimo 18%, e os Estados, DF e Municípios, 25% do que for arrecadado; o valor inicial para efeito de cálculo é dado pela receita estimada na lei do orçamento anual.  

No orçamento executado, isto é, efetivamente pago em 2020, as aplicações públicas em educação corresponderam a 2,49% do total arrecadado. Segundo informes do jornal Correio Braziliense, 2021, houve uma diminuição de 10,2% em comparação com o ano anterior.

 O modo como o governo Jair Bolsonaro conduz a educação brasileira indica que a Meta 20 do PNE 2014-2024 de “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto (PIB) do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio”, dificilmente será batida. São constantes os cortes, cancelamentos e bloqueios orçamentários. Em 2021 este governo bloqueou R$ 2.7 bilhões da Educação no orçamento; agora, em 2022 os cortes já somaram um pouco mais de 800 milhões de reais (Correio Braziliense, 2022).


7.2.22

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a subordinação da educação pelo mercado e o nosso atraso educacional

 


Zacarias Gama[1]

A LDB

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996), como seu nome indica, fornece as instruções ou indicações para a devida concretização do plano ou projeto de educação que o Estado brasileiro se dispõe a oferecer à sociedade. 

Os seus 92 artigos estão distribuídos nos seguintes títulos:

TÍTULO I - Da Educação

TÍTULO II - Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

TÍTULO III - Do Direito à Educação e do Dever de Educar

TÍTULO IV - Da Organização da Educação Nacional

TÍTULO V - Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino (educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior.

TÍTULO VI - Dos Profissionais da Educação

TÍTULO VII - Dos Recursos financeiros

TÍTULO VIII - Das Disposições Gerais

TÍTULO IX - Das Disposições Transitórias

 

O projeto original desta lei surgiu por iniciativa da comunidade educacional imediatamente à promulgação da Constituição da República em 1988, a qual se encontrava fortemente mobilizada para assegurar suas propostas para a organização da educação.

No período de tramitação (1988 -1996), o projeto relatado pela Deputada Angela Amim passou por diversos embates tantas as tensões advindas da luta de classes no campo da educação; de um lado os capitalistas de educação – proprietários de instituições de ensino presenciais e a distância – e de outro, os trabalhadores de educação e defensores do oferecimento de uma educação pública, de qualidade referenciada socialmente, universal, laica e gratuita. 

Uma vez aprovado na Câmara e na Comissão de Educação do Senado o relatório da Deputada Angela Amim, que contemplava bastante os anseios dos defensores da escola pública de qualidade, foi objeto de um golpe político, que mudou inteiramente seu rumo, tendo sido substituído por um projeto induzido pelo Ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Paulo Renato de Souza (PSDB), relatado e assinado pelo Senador Darcy Ribeiro. E este foi o projeto aprovado e promulgado em 20 de dezembro de 1996, muito de acordo com as pressões do empresariado nacional de educação e distante das aspirações da comunidade educacional em favor da escola pública democrática.

De sua promulgação até os dias de hoje, a LDB já sofreu 331 alterações por meio de 287 novas leis e 44 medidas provisórias, a maioria provinda dos lobbies do empresariado de educação, no qual estão incluídas as igrejas católica, presbiteriana, metodista e diversas outras denominações, todas elas donas de redes de escolas no país.

A esta luta de classes interna se somam as pressões provenientes de organismos multilaterais internacionais: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Mundial, Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board), G20, BID, OEi. O Brasil, por ser membro de tais organismos ou signatário de documentos que emitem não tem força para simplesmente lhes fazer ouvido mouco.

O fato é que a soma de todas as forças do bloco de poder a favor do capital acabou por subordinar a educação aos seus interesses; o estado atual em que se encontra a educação brasileira é de estrita subordinação ao mercado. São fortes as organizações que defendem a privatização da educação ou a organização da educação pública conforme as suas demandas. Entre tais organizações se destacam o Movimento Todos pela Educação que agrupa em torno de si as seguintes fundações e grupos empresariais: Associação Crescer Sempre, Família Kishimoto, Fundação Bradesco, Fundação Grupo Volkswagen, Itau Social, Fundação Lemann, Fundação Lúcia & Pelerson Penido, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Vale, Gol, IFood, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Burger King, Fundação Educar DPaschoal, Fundação Roberto Marinho, Instituto Cyrela, Instituto Votorantim e Grupo Suzano etc.

TÍTULO I – Da Educação

Neste título está o conceito de educação, explicitado como sendo “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”

Reconhece a existência de outros agentes educativos para além da escola: família, convívio social, trabalho e locais de trabalho, instituições de ensino, movimentos sociais (feministas, negros, LGBTQI++, indígenas, quilombolas, estudantis, ambientalistas, trabalhistas etc.

A LDB, no entanto, somente trata da educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias; ela determina que esta educação deve estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social.

Aqui cabe uma observação: quando a LDB se refere ao trabalho sempre deixa transparecer a sua preferência pelo trabalho produtivo, aquele que produz mais valia. Pouco ou nenhum apreço dá ao trabalho improdutivo que não gera mais valia, ele é considerado como gasto desnecessário/ custo no jargão econômico e tratado como inutilidade pelo empresariado. Assim, não é por acaso ser grande a desconsideração da LDB com as disciplinas das áreas humanas e artísticas: história, filosofia, letras, artes, sociologia, teologia etc.

TÍTULO II – Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

A LDB atual é a primeira a dividir o dever do Estado de educar as crianças e jovens com as famílias; todas as anteriores consideravam exclusivo e inalienável este dever. Dividir tal dever com as famílias abre uma larga porta para a privatização da educação pública e revela uma vontade de saciar a voracidade de lucro do empresariado de educação. De acordo com a doutrina neoliberal de minimização do Estado, quanto maior o poder aquisitivo das famílias maior será o acesso às escolas particulares e consumo de produtos materiais pedagógicos e escolares.

Os fins ou objetivos da educação pública, conforme o Art. 2º da LDB, são “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho [produtivo].

A Constituição e a LDB ficam a dever o entendimento sobre “pleno desenvolvimento do educando”. A UNESCO o relaciona à humanização do educando, ao seu crescimento interior e desenvolvimento da consciência de liberdade e responsabilidade. Na prática, porém, a intenção é mais a de formar e qualificar o melhor e mais eficiente trabalhador do que oferecer uma educação que vise verdadeiramente o pleno desenvolvimento da personalidade. É, no entanto, difícil falar de pleno desenvolvimento do educando em face às condições de pobreza e bem-estar, questões de gênero e de discriminação sexual e relativos ao desenvolvimento social, entre outros. Para Amartya Sen (apud Zambam in “A Teoria da Justiça de Amartya Sen: as capacidades humanas e o exercíco das liberdades substantivas”, 2014) a persistência de tais condições “representam os desafios que precisam ser integrados às políticas de desenvolvimento. Sendo assim, não se pode falar em garantia das liberdades substantivas”. Por fim, é preciso acrescentar que a exacerbada pressão pela qualificação para o trabalho produtivo abafa o desenvolvimento de muitos talentos jovens e brilhantes em muitas áreas compreendidas no campo das humanidades.

O Art. 3º da LDB define quais princípios devem nortear o ensino nas escolas brasileiras. São estes os princípios: igualdade, liberdade, pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, respeito e tolerância, gratuidade nos estabelecimentos oficiais, valorização docente, gestão democrática, garantia de padrão de qualidade, valorização da experiência extraescolar, vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e de consideração com a diversidade étnico-racial.

TÍTULO III – Do Direito à Educação e do Dever de Educar

A educação básica é um direito de todos e dever do Estado e da família, conforme é estabelecido na Constituição Federal.  Conforme o Art.5º da LDB o acesso obrigatório a ela, dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete anos de idade) é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão acionar o poder público para exigi-lo”. A garantia de acesso ao ensino obrigatório (educação básica) é o primeiro dever do estado, os demais são atendidos conforme as prioridades constitucionais e legais.

Observem, porém, que a existência do Art. 5º da LDB, a rigor, não precisaria existir se o Estado, de fato, democraticamente, criasse vagas para todas as crianças e jovens em todo território nacional, que radicalmente tivesse intenções de universalização da educação. Hoje em dia, 2021, para se ter uma ideia, ainda persistem déficits de matrículas na pré-escola, somente 81% das crianças estão matriculadas, o que significa que cerca de 1,2 milhão de crianças dessa faixa etária ainda não frequentam a escola.

 Quando nos debruçamos sobre a LDB, querendo apreender a sua essência, é inevitável que sobressaia nela a persistência de um ranço utilitarista muito caro à nossa elite do atraso. Sempre esteve longe desta elite a ideia de universalização da educação de qualidade referenciada socialmente; o dever moral do estado de oferecê-la, por esta razão deixa de atingir a todos imediatamente, é preciso que os indivíduos exijam o seu cumprimento a partir de procedimentos legais que ele próprio disponibiliza. Assim, a universalização do ensino fundamental a partir de 1996 próxima de estar completada, antes de ser uma ação creditada exclusivamente ao Estado, tem sido resultado de muitas pressões da sociedade civil organizada por meio de manifestações de rua, greves, participação em audiências públicas... Em alguns momentos fica claro que os cálculos do Estado e da elite do atraso admitem que a população prefere outras ações ou como diria Bentham, “um prazer maior a longo prazo” (apud Rivera-Sotelo, 2011). Na França, por exemplo, a educação inclusiva de todas as crianças, sem qualquer distinção, é a primeira prioridade nacional: “o direito à educação é assegurado a todos para que possa desenvolver a sua personalidade, elevar o seu nível de formação inicial e contínua, inserir-se na vida social e profissional, exercer a sua cidadania(Code de l'éducation, 2022).



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ).

Que educação é esta? Até quando?

Imagem Copilot Com o gado bolsonarista berrando loucamente pelas ruas, me pergunto sobre o que entregaram as aulas de História, Geografia, ...