Emaranhado de projetos e qualidade da educação pública: as escolas como reféns de interesses privados
Zacarias Gama
Vânia Motta
O tema “qualidade da educação pública” tem sido pauta de discussões na sociedade, na mídia e em revistas especializadas, nacionais e internacionais, por causa do quadro educacional mundial retratado por várias pesquisas realizadas por organismos internacionais (ONU, UNESCO, UNICEF, entre outros). E não é para menos.
Recentemente a revista britânica The Economist.com divulgou um balanço da educação brasileira destacando as elevadas taxas de repetência e de evasão nas escolas. Além de ser grande o índice de crianças que abandonam suas escolas precocemente, apenas 42% dos jovens com 17 anos têm ensino médio completo. A reportagem sugere que a melhoria da qualidade das escolas requer um aumento significativo na quantidade de dinheiro disponível para cada aluno. Prognosticou, ainda, que para conseguir isto o Brasil precisa de professores qualificados, trabalhando em uma única escola e em tempo integral. E mais, que as suas condições de trabalho deixem de ser intimidatórias e que a remuneração seja elevada.
O debate está em ebulição e muitas medidas efetivadas pelo Ministério da Educação intensificam-no. Dos quatro cantos do país surgem propostas e projetos salvacionistas, cada um mais espetacular do que o outro. Todos, porém, deixam de incidir sobre questões estruturais que precisam efetivamente ser superadas e ainda teimam em desconsiderar as pesquisas que são realizadas nas Universidades.
As pesquisas contêm teses resultantes de dados empíricos que, se devidamente consideradas, facilitariam em muito a objetivação de reformas pró-escola pública de qualidade. Nossa motivação presentemente é existência de tais teses. Todas, obviamente, têm objetos de investigação diferentes, mas se somam e convergem para o mesmo fim. Em conjunto mostram-nos os principais focos de ataque para a qualidade educacional pretendida. Vejamos então algumas delas.
A “tese do ziguezague”, há muito formulada pelo professor Luiz Antonio Cunha, responsabiliza o entra-e-sai de secretários de educação pela não realização das políticas de Estado e de Governo relativas à educação de qualidade. Não há continuidades. Cada secretário recém empossado revela ter os seus compromissos e interesses políticos, na maioria das vezes, eleitoreiros. A sucessão deles é um desastre, gera descontinuidades e imobilismos nas bases, principalmente quando se sabe que são fátuas as fogueiras. Já o brasilianista David Plank, em seu estudo The means of our salvation, demonstra que os nossos políticos são hábeis em se posicionar estrategicamente nos caminhos das verbas públicas para a educação. Quando em suas campanhas eleitorais eles fazem promessas de novas escolas para os seus currais e esforçam-se para realizá-las uma vez eleitos, sem se importarem que isto liquide a prioridade de uma área carente e populosa.
As teses de Nicholas Davies trazem à luz as maquiagens fiscais nas contas da educação e nos mostram como esses mesmos políticos desviam verbas conforme seus interesses, contrapondo o discurso da prioridade da educação com os montantes investidos. Dermeval Saviani, analisando o investimento na educação brasileira, diz que ainda padeceremos com os parcos 3,5% do PIB até 2011, quando está previsto chegar aos 5%. Tal percentual está longe dos países que mais investem em educação: Estados Unidos (7,5%), Canadá (7,6%), Noruega (8,7%) e Suécia (8,8%). Devemos olhar esse quadro não só pelo percentual definido, mas também pelo volume do PIB de cada um desses países. E a Coréia do Sul, amplamente veiculada na mídia como modelo de gestão na Educação, investiu 10% do PIB ao longo de 20 anos.
Outras teses defendidas por Luis Dourado demonstram o emaranhado de concepções de gestão da educação, escolas e ensino que se sobrepõem, deturpam e engessam. Assim, as concepções liberais inscritas na Constituição de 1988 são travadas pelo eficientismo neoliberal e por outras concepções de gestão que ora tratam as escolas como instituições, ora como organizações. O efeito é a subordinação das direções e do professorado a processos de monitoramentos diretos, realizados a partir de gabinetes ocupados por pessoas que há muito deixaram de viver o cotidiano escolar. A comunidade escolar, sem autonomia, reduz-se a executora de projetos imediatistas, muitas vezes desconexos e nem sempre pensados organicamente para a melhoria da qualidade da educação.
Afora estas teses, prontas e à espera da devida atenção pelo Poder Público, há diversas pesquisas em andamento preocupadas, por exemplo, com a quantidade de projetos emanados da SEEDUC, com o assédio que o Terceiro Setor (ONGs – Organizações não-governamentais e OSCIP – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) vêm realizando sobre os sistemas públicos de educação, bem como com as últimas idéias privatistas que transferem a educação, cultura e outras áreas públicas para a administração privada das Organizações Sociais (OS).
Em relação à quantidade de projetos, uma amostra pode ser verificada somente recorrendo-se ao site eletrônico da SEEDUC/Rio de Janeiro, onde está pautada uma diversidade de projetos voltados para gestores, professores e alunos. Envolvendo os alunos há o Programa de Educação Fiscal, em parceria com a Secretaria de Fazenda, Receita Federal e secretarias municipais de sete prefeituras; Projeto Jovem Salva Vidas, em parceria com o HEMORIO; Projeto A Escola em Sintonia: Estação de Rádio, pensado para desenvolver a educomunicação nos ambientes escolares de ensino médio com vistas a formar profissionais de radiofonia no contexto escolar; Projeto Colóquio Escolar, com o SESC as CRES; Projeto Parlamento Jovem, em parceria com a ALERJ. Afora estes projetos, há outros diretamente promovidos por Fundações e ONGs preocupados com a preservação do meio-ambiente, limpeza urbana, reciclagem do lixo e com a conservação dos recursos hídricos.
Não nos cabe aqui apresentar objeções a estes projetos, mas sim questionar a organicidade deles no sentido de uma política de Estado e de Governo voltada para a educação integral e de qualidade. Regra geral tais projetos ocorrem como atividades extraclasses de enriquecimento, mas muitas vezes ocupam os tempos necessários para os esforços de fixação dos conteúdos trabalhados em sala de aula. A necessária articulação com tais conteúdos fica obscurecida e, além disto, obedecem a uma cronologia distinta da dos planos de aula. A lógica a que estão submetidos impõe à realidade concreta das escolas e do sistema educacional um frenesi de projetos, cujo impacto sobre o cotidiano escolar gera tumultos, atropelos, dispersões e, sobretudo, a desvalorização das práticas de ensino-aprendizagem, as quais deveriam merecer toda centralidade das atenções.
Já o conhecido assédio do terceiro setor como “parceiros” das escolas públicas, melhor dizendo, dos cofres públicos, agora vem sendo ampliado pelas OSs. As OSs são organizações criadas pelos setores da gestão pública (federal, estaduais e municipais) para administrarem serviços “não exclusivos do Estado”, como saúde, educação, pesquisa, entre outros, através de um “pacto de gestão” – diga-se fim das licitações -, regulamentadas pelas Leis nº 9637/98 e nº 9.790/99; as mais recentes OSs foram criadas pela Secretaria Municipal de Educação para gerir creches municipais e atividades de reforço escolar.
O fato é que as escolas estão abertas, escancaradas mesmo, às diversas interferências públicas e privadas, cada uma com interesses bem definidos e que não necessariamente convergem organicamente para a melhoria da qualidade da educação. O emaranhado de boas intenções públicas e privadas, sem qualquer sentido orgânico, mais atrapalha do que ajuda, impõe uma lógica que tumultua e dispersa. Nas escolas sequer há pessoal em quantidade e com disponibilidade para articular adequadamente tal assédio e alterar as coisas dessa lógica e lhe dar um sentido verdadeiramente pedagógico em favor da qualidade de uma educação que se traduza em melhores indicadores.
O que se verifica é o alargamento das funções extraclasses da escola com o estreitamento do seu sentido público, isto é, o da escola, não como “serviço não exclusivo do Estado”, mas de qualidade e de direito.
A autoridade educacional, verdadeiramente comprometida com a qualidade da educação que visa a formação do homem total, tem a tarefa intransferível e inadiável de restabelecer a ordem e a lógica das coisas no campo pedagógico e promover a escola que a sociedade brasileira exige. Nossa sugestão é que se comece pela definição de um projeto de escola a partir da leitura das teses existentes para evitar equívocos óbvios e em seguida que se cuide para enxugar a quantidade de projetos e de interferências “filantrópicas”, com desejos que mais justificam ações cidadãs de bons samaritanos do que promovem a qualidade da educação.
A responsabilidade de prover e promover a educação é do Estado e deve ser inalienável, assim como também ele não pode se eximir da garantia de sustentabilidade das ações para a educação de qualidade. As iniciativas privadas, assim como o capital que investem na educação, nas escolas e no ensino devem estar a serviço da promoção da educação de qualidade e não dos seus interesses particulares visando objetivar uma educação que forme futuros cidadãos exclusivamente para aumentar o valor do capital e satisfazer imediatamente as demandas empresariais.
(Artigo encaminhado para publicação no Jornal Folha Dirigida, caderno Educação, Coluna Sem Censura, 2009)
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