29.12.21

Novo Ensino Médio: aos estudantes nem as batatas

 


Zacarias Gama[1]

 

 

O atual presidente da República, o ex-capitão Jair Messias Bolsonaro, disse em 15 de outubro de 2018, Dia do Professor, que o seu objetivo era “fazer o Brasil semelhante ao que tínhamos há 40, 50 anos” (O Globo, 2018). Nunca um presidente foi tão cumpridor de promessas de campanha! Há um ano do término de seu governo, é grande o atraso que impôs à sociedade brasileira. Todos os setores recuaram de forma extraordinária, incluindo os direitos dos trabalhadores. Em balanço feito pelo jornal Folha de São Paulo (21/08/2021) está dito que “o país não conseguiu avançar significativamente em nenhuma área e assistiu retrocesso na economia, no social, meio ambiente, saúde e educação, entre outros" Dos indicadores analisados pela Folha, 63 tiveram piora, 28 melhoraram e 10 permaneceram estáveis.

No campo da educação, além de não apresentar um plano de educação ou ao menos alinhar a educação nacional às  metas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, nada indica que se esforce para cumprir o Objetivo 4 desta agenda:  Garantir uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Contrariamente, as suas ações concorrem para reduzir os gastos totais do governo com a educação básica e superior; descuidam das vinte metas do PNE 2014-2024, em especial a que se refere ao aumento das matrículas da educação básica em tempo integral; comprometem o funcionamento do ensino superior; e colocam em risco de sobrevivência as instituições públicas de pesquisa, ciência e inovação para o desenvolvimento. Tampouco fez ou faz qualquer esforço para desarmar a bomba de efeito retardado que é o novo ensino médio, herdado do governo golpista de Michel Temer, a entrar em vigor a partir de 2022 conforme as determinações da Lei nº 13.415/2017 . Esta lei que reestrutura o ensino médio, aumenta para 1.000 horas o tempo de permanência na escola, flexibiliza o currículo escolar com a oferta de itinerários formativos, coloca foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional e permite que os estudantes escolham os seus itinerários de formação.

Quanto ao novo ensino médio a sociedade brasileira está dividida. Conservadores, grandes empresários e ampla quantidade de instituições privadas de ensino básico festejam a sua implementação a partir de 2022; intelectuais progressistas, defensores da escola pública, movimentos sociais, sindicatos e educadores comprometidos com a educação dos jovens exigem a sua postergação com o objetivo de discutir a reforma com mais profundidade, tantos os seus efeitos perversos. Gaudêncio Frigotto, um dos mais importantes cientistas de educação na atualidade, considerou o novo ensino médio como um “pastel de vento” que trai e condena as novas gerações a uma cidadania de segunda categoria por não "terem as ferramentas básicas de conhecimento para a cidadania política e econômica” (Brasil de Fato, 2021). Para Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp, a reforma do Ensino Médio” é uma volta às leis de educação dos anos 1940, “que previam um ensino secundário diferenciado para “elites condutoras”, e outro para "o povo conduzido” (Brasil de Fato, 2017). O Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia-APLB alerta que tal reforma ampliará a desigualdade social entre os estudantes das redes pública e privada, condenará a juventude pobre a se contentar com o precarizado  itinerário profissionalizante sem poder acessar a universidade (CNTE, 2019).

Esta malfadada reforma do ensino médio brasileiro se inspirou nas reformas que vem ocorrendo na União Europeia, consonantes com as determinações da OCDE, em especial a Ley Orgánica para la Mejora de la Calidade Educativa, promovida pelo governo da Espanha (LOMCE, n. 8/2013). Esta lei espanhola enfatiza os itinerários de formação com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnico-profissional e ainda permite aos estudantes comporem os seus próprios itinerários. Em nome da flexibilidade torna possíveis as escolhas mais adequadas às capacidades e aspirações de cada estudante, o que, no jargão do mercado, customiza a educação e, ao mesmo tempo, deixa transparecer os interesses capitalistas subjacentes. Na semântica educacional, a diversidade de talentos dos estudantes força o sistema a reconhecê-la e desenvolver uma estrutura que a contemple. Sua lógica se assenta em um sistema capaz de encaminhar os estudantes para os itinerários mais conforme as suas competências, projetos de vida, condições futuras de empregabilidade e empreendedorismo.

Na Espanha a reforma da educação foi mal-recebida pela sociedade organizada e a sua derrogação é o principal ponto de pauta dos sindicatos de professores, confederação de pais de escolas públicas, associações de estudantes; todos contando com o apoio explícito da Unida Podemos – UP (El País, 2017). Em consequência da pressão popular várias das medidas principais propostas pela LOMCE já estão sendo deixadas de ser aplicadas.

Aqui entre nós é célere o movimento de formulação e implementação da reforma do ensino médio, bastante intensificado pelos movimentos de educação patrocinados pelo empresariado e com apoio da mídia tradicional. O Movimento Todos pela Educação e o Itaú BBA, por exemplo, vêm apoiando desde o primeiro momento a “formulação de um novo modelo, mais flexível, que articule a Base Nacional Comum Curricular do ensino médio com o ensino técnico profissionalizante e a qualificação profissional” (Fernão Bracher, 2018). Os interesses imediatistas da elite do atraso, porém, em comparação com o que ocorre em outros países que também fazem reformas educacionais (Finlândia, Suécia, Alemanha, Áustria, França, Itália, Dinamarca, Polônia, Hungria, Reino Unido, Cingapura, Japão, China (Xangai), Canadá (Ontário), República da Coreia e EUA) pouco oferecem em termos de melhoria da qualidade da educação, financiamento, diminuição da desigualdade social, novos perfis de cidadãos e trabalhadores mais sofisticados e diversificados... Sequer se aproximam dos ideais espanhóis de elevar os níveis atuais de educação com o objetivo de promover a convivência pacífica e o desenvolvimento cultural da sociedade, considerando-se que uma democracia cada vez mais complexa e participativa exige cidadãos mais conscientes. Também fica muito aquém dos Padrões Estaduais do Núcleo Comum (Common Core State Standards) dos Estados Unidos, criados entre 2009 e 2010 e já aceitos em 43 estados, com a finalidade de padronizar minimamente a educação nacional dadas as especificidades existentes no território americano.  Com eles os EUA projetam o perfil de saída dos estudantes ao fim da escolaridade básica em matemática e artes da linguagem, esperando que devem estar preparados para a carreira pessoal e para a universidade, assim como para tornar os EUA mais competitivos academicamente. 

Aqui no Brasil estamos nos domínios de uma elite mesquinha que subsume a nação à realização dos seus interesses e à sua reprodução. Ela tudo controla, nosso sistema educacional e a educação das nossas crianças e jovens não seriam exceção; nossas crianças e jovens, afinal de contas, serão a futura ralé a lhe assegurar mão de obra farta e barata, conforme Jessé Souza (2017) já nos assegurou. O que mais lhe importa é o controle dos fundos de educação, a expansão das instituições privadas, concentração das matrículas, produção e venda de material didático-pedagógico... e a maior realização de seu capital. Aos estudantes, nem as batatas.

 

 



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Geral do PPG Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS).

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