14.5.20

Adiar o ENEM é questão de justiça social


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As provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) estão marcadas para novembro, mas face à pandemia provocada pelo Novo Coronavírus – Covid19 – e o consequente fechamento das escolas e cursos preparatórios, é grande o clamor nacional pelo seu adiamento. As alegações dos estudantes procedem. Até a juíza Marisa Cláudia Gonçalves Cucio, da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo, sentenciou favoravelmente ao seu adiamento, alegando que “os alunos da rede pública não estão assistindo as aulas com o conteúdo programático cobrado no Exame”; que grande parte dos estudantes da rede pública não “possuem acesso ao ensino à distância (EAD) e diversas outras ferramentas eletrônicas de aprendizado”; e que “nem mesmo é possível afirmar que todas as escolas particulares estão disponibilizando aulas por vídeo ou atividades similares uma vez que a pandemia e as normas de isolamento social determinaram o fechamento das instituições de ensino” (Portal Agência Brasil, 2020)[1].

O Ministério da Educação até o presente parece ter ouvidos moucos. Em seu microblogue o Senhor Abraham Weintraub, o Ministro, foi categórico usando poucas palavras: “O Brasil não pode parar!” Vai ter Enem!”. E ainda acrescentou: “70% fez o pedido de isenção da taxa do Enem 2020 pelo celular, smartphone” (idem).

A perversidade e a intransigência do Ministro não causam qualquer estranheza, dado o seu alinhamento político-ideológico ao bolsonarismo e ao olavismo. O seu chefe, o presidente da República, desde o primeiro momento da pandemia mundial menosprezou a sua intensidade e letalidade, considerou-a como uma “gripezinha” ou um “resfriadinho” e deixou claro que a economia não poderia parar, ainda que muitas mortes fossem inevitáveis. Para o “filósofo” negacionista Olavo de Carvalho, o seu guru, “essa epidemia simplesmente não existe”, “é a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana” (Isto É, 2020)[2]. Bolsonaro, Weintraub e Carvalho são contrários ao isolamento social e, portanto, defendem com unhas e dentes a reabertura de todos os setores da economia. Se morrerem milhares de brasileiros, qual é o problema? E daí?

Mas nem só de perversidade e intransigência se alimenta o Ministro. O autoritarismo, o antidemocratismo e a ignorância sobre o Brasil também integram o seu cardápio. Manter as provas do Enem em novembro é a mais absoluta prova de ignorância acerca das desigualdades que tornam o nosso país um dos mais injustos na face do Planeta; ele somente perde para o Catar em concentração de renda. Esta discrepância determina também a concentração de melhores escolas, universidades, cursos de pós-graduação com avaliação igual ou superior a cinco, institutos de pesquisas, bibliotecas, teatros, cinemas etc. nas regiões Sudeste e Sul. Isso vale também para os sinais de telefonia celular e Internet, cujas sombras, isto é, áreas com baixo ou nenhum sinal, castigam as populações mais pobres das periferias urbanas e do campo, distantes do alcance das antenas das operadoras. A alegação do Ministro de que 70% de pedidos de isenção da taxa de inscrição ao Enem 2020, chega a ser um deboche porque desconsidera a precariedade dos aparelhos, a qualidade do sinal, a quantidade de créditos e o tamanho das memórias; um smartphone pré-pago, regra geral, tem menos de 100 GB de memória e, portanto, grande dificuldade de receber uma aula com textos, áudio e vídeo. Na Baixada Fluminense, por exemplo, entre 40 e 45% dos inscritos no Enem não têm computadores domésticos e os seus telefones pré-pagos às vezes são dos pais e o seu uso é controlado.  

Não bastassem os problemas de ordem técnica, é preciso considerar ainda a desigualdade na distribuição do professorado de qualidade no território brasileiro. Os melhores e mais qualificados, aprovados em concursos públicos e incorporados ao corpo docente de alguma escola particular de boa reputação, mesmo que inicialmente sejam alocados em escolas de periferia, têm grande mobilidade no interior do sistema educacional e em pouco tempo conseguem se transferir para as escolas mais centrais, mais bem equipadas e com equipes bem avaliadas pelos núcleos centrais e sociedade. Grande parte do professorado, formada em instituições de ensino superior, mal avaliadas pelo MEC, em um mercado de trabalho bastante competitivo, acaba se tornando docente nas piores escolas de periferia, interior e meio rural. O efeito imediato é a mobilidade estudantil, daqueles que têm mais recursos, em direção às escolas e cursos preparatórios de maior fama, muitos a quilômetros de distância dos seus locais de residência. O fechamento de escolas por conta do isolamento social impõe grande prejuízo à maior parte do alunado brasileiro, principalmente àqueles sem computadores domésticos, celulares possantes e sinal de qualidade. Deixar de reconhecer estes fatos chega a ser uma obscenidade.

Adiar as provas do Enem é um imperativo democrático. Não as adiar é aprofundar mais ainda as desigualdades sociais, impedir o acesso dos mais pobres e negros às universidades, garantir um fluxo de estudantes brancos e mais bem aquinhoados, para lá na frente privatizar todas as instituições de ensino superior e garantir aos empresários da educação baixos índices de inadimplência nas mensalidades. Se não houver adiamento, tornar-se-á mais evidente o caráter elitista deste governo, o seu desprezo pelo povo mais pobre e a sua aversão à democratização das oportunidades e justiça social. Outra face desta mesma hipótese é o interesse de diminuir a “tara dos estudantes por cursos de formação superior” e encaminhá-los aos “cursos técnicos de máquina de lavar e geladeira”, conforme declarou o presidente Jair Bolsonaro ao jornalista Heraldo Pereira durante entrevista ao Jornal das Dez, da Globo News em 28/8/2018.


[1] PORTAL AGÊNCIA BRASIL. Ministro diz que governo recorrerá de decisão sobre adiamento do Enem. WEB. 18/04/2020. Disponível no site: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-04/ministro-diz-que-governo-recorrera-de-decisao-sobre-adiamento-do-enem. Acessado em maio de 2020.   
 [2] ISTO É. Essa epidemia simplesmente não existe”, diz Olavo de Carvalho sobre coronavírus. WEB. Maio de 2020. Disponível no site: https://istoe.com.br/essa-epidemia-simplesmente-nao-existe-diz-olavo-de-carvalho-sobre-coronavirus/. Acesso em maio de 2020.


11.5.20

Educação, política e classe social. Parte do professorado reforça o bolsonarismo?

Publicado em Vermelho Org



Diante da ignorância de parcela considerável da sociedade brasileira, mais ou menos 30%, fico me perguntando se nós, o professorado, temos alguma parcela de responsabilidade na formação desta gente que sequer acredita nas milhares de mortes por Covid-19, que mitifica o senhor Jair Bolsonaro, que atribui a pandemia que assola o país à mídia antibolsonarista, que acredita na forma plana da Terra e em muitas outras coisas mais que até Deus duvida. De onde saiu tanta gente analfabeta em tantos assuntos?

Em sã consciência é impossível culpar o professorado em sua totalidade. Mas não se pode fazer vistas grossas  muito embora uma boa parcela seja bolsonarista de quatro costados, mesmo sabendo que este governo tem diversas medidas contra o magistério. Essa parcela docente precisa ser estudada. 

Tenho duas hipóteses a respeito. 
1. Ela vem sendo formada nas instituições de ensino superior, públicas e particulares, apenas em bases técnicas, isto é, para dar aulas de determinados conteúdos e ponto. E mesmo assim com um discutível domínio de conteúdo. O que sustenta esta hipótese é a baixa avaliação dos cursos de formação, públicos e particulares, no Ranking Universitário Folha (RUF). Dos 1800 cursos particulares e públicos existentes, mais ou menos 50%, são incapazes de atingir ao menos a metade da pontuação que os melhores são capazes de atingir. 

2. Os cursos de formação de professores definem o professor conforme a primeira parte da definição dada pelo dicionário Caldas Aulete, por exemplo: 
1. Indivíduo que se especializou em ensinar, em escola ou universidade; DOCENTE; MESTRE
2. Aquele que ensina algo (disciplina, atividade, arte, ofício, técnica etc.) a alguém
Parecem, talvez por conveniência, nunca ler no mesmo verbete que professor é  4. Aquele que professa (uma religião, uma dada concepção de mundo etc.).  E isto é muito ruim porque reduzem o professor a um sujeito técnico e asséptico, alienado por excelência. 

A soma das duas hipóteses tem como resultado um professor que conhece superficialmente o conteúdo de sua disciplina e, às vezes, de forma enviesada, e não está nem ai para a vida política, econômica, religiosa e cultural de sua gente. Nada questiona por insegurança e insuficiência de conhecimento. Sua formação e ele próprio se situam na contramão do que disse o mestre Paulo Freire: "a prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes" (Freire, 2001). 

E onde está o campo de atuação deste docente? A resposta parece ser óbvia, ele atua na periferia das cidades, nas cidades mais pobres e no campo, ou seja nos redutos políticos mais conservadores e reacionários, nos currais eleitorais dos piores políticos. Nestes redutos, para piorar as coisas, é obrigado a rezar pela cartilha do poder dominante e a se "aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes". Nestes redutos, não nos esqueçamos, está a força do bolsonarismo e do fundamentalismo religioso. Eles constituem os 30% da população que mantém o poder autoritário, antidemocrático e neofascista do atual governo. Os professores realmente deixam de assumir a educação como ato político indispensável à emancipação popular. Suas escolas se transformam em espaços de neutralidade política, como se isto fosse possível, e sem nada a ver com a luta de classes. Como diria Paulo Freire, o a favor deles situa-os em um certo ângulo, que é de classe, que é bolsonarista. 

A constatação que faço torna imperativo que revejamos a formação de professores no Brasil. É preciso que seja revestido do imperativo categórico de equidade formativa. Todos os cursos precisam cuidar da formação técnica e política, nenhum professor pode abdicar, em suas aulas, de posições políticas, éticas, estéticas, urbanistas e ecológicas. O ato educativo também precisa ser uma posição de classe, jamais a favor da classe dominante. 










6.5.20

Bicentenário da Educação Brasileira em 2022, cadê a nossa festa de arromba?

Foram alegres e suntuosas as comemorações do Centenário da Independência do Brasil em 1922. O ponto alto foi a Exposição Internacional, com a participação de treze países da Europa, América e Ásia. Na cidade do Rio de Janeiro, a capital da República, foram construídos diversos pavilhões de exposições, chamados “vitrines do progresso”, alguns dos quais ainda resistem heroicamente à inclemência do tempo e dos surtos tresloucados de modernidade: pavilhão da Administração (Museu da Imagem e do Som – na Praça Quinze); o palácio da França (Academia Brasileira de Letras); o palácio das Indústrias (Museu Histórico Nacional); e o pavilhão de Estatística (órgão do Ministério da Saúde). As exposições de produtos brasileiros e estrangeiros, filmes, conferências e muitas atividades artístico-culturais atraíram milhares de visitantes de várias partes do território nacional. O Brasil tinha o que mostrar e comemorar em termos econômicos e a Semana de Arte Moderna, que acontecia em paralelo, extasiava a todos com as exposições de escultura, pintura, arquitetura, saraus e debates literários. 
Cem anos depois, a fervura comemorativa dos 200 anos de Independência do Brasil já deveria estar próxima do ponto máximo. Deveria. Ao contrário da Argentina, Chile, Bolívia e outros países latino-americanos, por aqui nem há preparativos. Ou deixaremos para a última hora, ou faremos uma festinha improvisada e desenxabida. Os acontecimentos políticos de 2013 para cá jogam água fria na fervura e o governo bolsonarista se encarrega de abaixar o fogo e até apagá-lo. 
No campo da educação a festa que estava sendo preparada deveria ser de arromba. A partir da XXª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da Organização dos Estados Ibero-americanos que se reuniu em Mar del Plata, em 2010, e das edições dos Planos Nacionais de Educação (2001-2010, 2014-2024), a expectativa é que comemoraríamos em 2022 a erradicação do analfabetismo, evasão escolar precoce, trabalho infantil, baixo rendimento dos alunos e baixa qualidade da oferta educacional pública. Deveríamos ainda festejar a ampliação do acesso ao ensino médio, melhoria da qualidade da educação e do currículo escolar, conexão entre educação e emprego por meio da educação profissional e técnica, oferecimento de oportunidades de educação continuada a todos, fortalecimento e atratibilidade da profissão docente, incremento da pesquisa científica, elevação e maior qualificação dos investimentos em educação, e por fim, a melhoria da avaliação do funcionamento dos sistemas educativos. 
Claro que o MEC, de 2010 a 2018, esforçou-se e muita coisa foi feita desde então. As gestões deste período se empenharam e a despeito dos percalços no caminho o país conseguiu avançar bastante. A promulgação das Bases Nacionais Curriculares Comuns (BNCC) em dezembro de 2017, apesar de todas as críticas que ainda precisam ser feitas a elas, foi o último ato na corrida para apresentar um novo cenário educativo nacional nas comemorações dos nossos duzentos anos de Independência, em 2022. Os ministros de educação do governo bolsonarista, no entanto, desde que entraram em cena, pouco ou nada fizeram a respeito e o que teremos a apresentar serão as obras dos ministros anteriores. Eles, os bolsonaristas, seguem na construção de uma obra pífia e desnecessária. 
As duas gestões ministeriais deste governo, de 2018 até o presente, estão mais a provocar o riso da sociedade, tantas as gafes e confusões, não fossem os graves prejuízos que imprimem à educação nacional. A primeira gestão, a do ministro Ricardo Veléz, que se tornou hours concurs, teve as características típicas de um forasteiro colombiano que nada entendia de educação brasileira. A segunda gestão, a do ministro Abraham Weintraub, é um constante show de sandices. Seus grandes feitos têm sido proferir impropérios contra as universidades públicas, movimentos populares e estudantil liderado pela UNE; enaltecer a monarquia e figuras monárquicas em plena comemoração dos 130 anos da República; realizar cortes substantivos de verbas e de pessoal; e demonstrar publicamente a sua ignorância em relação a Paulo Freire e sua obra.  No Portal do MEC na WEB, as direções de sua gestão não mostram qualquer disposição de cumprir as Metas Educativas 2021 e as Metas do PNE 2014-2024. À revelia delas visam universalizar o acesso à Internet (Programa de Inovação Educação Conectada); combater o derrame de diplomas falsos e carteiras de estudantes por meio dos programas Diploma e ID Digital estudantil (esta última suspensa pelo MPF); orientar as famílias nas práticas de literacia familiar (Programa Conta pra Mim); ampliar a rede de escolas Cívico-Militares; oferecer programas e ações às redes de escolas e aos alunos de contribuição das ciências cognitivas da leitura à alfabetização de crianças (Política Nacional de Alfabetização); e, por fim, o Programa Future-se que permite a uma instituição financeira privada, uma Organização Social (OS), a administração de um fundo e financiamento das atividades de pesquisa, extensão, desenvolvimento, empreendedorismo e inovação das universidades públicas brasileiras.
O claro menosprezo às Metas Educativas 2021 e às do PNE 2014-2024 não nos permitirá comemorar nem a extirpação do analfabetismo, o fim da evasão escolar precoce e do trabalho infantil, nem a elevação do rendimento estudantil e da qualidade da oferta educacional pública; muito pelo contrário. Eles, os bolsonaristas, é possível que comemorem a privatização do financiamento das pesquisas, extensão etc. nas universidades públicas; o acesso escolar à banda larga de Internet, mesmo que os professores ainda tenham baixas qualificações e nem todos tenham computadores domésticos; a militarização das escolas com professores treinados em ordem unida; o aumento das contações de histórias no seio das famílias para o deleite das crianças (Programa Conta Pra Mim); as brilhosas impressões de diplomas digitais penduradas nas paredes de escritórios e dependências familiares. Talvez até façam inveja às regiões mais atrasadas da América Latina e do Caribe, ainda distantes das últimas novidades tecnológicas de matizes neoliberais!
Será uma comemoração cabisbaixa e pífia aos olhos da sociedade brasileira, Organização dos Estados Americanos, dos seus chefes-de-estado e ministros da educação e da sociedade latino-americana e caribenha. Uma comemoração que, sem dúvida, estará distante de todas as expectativas. Uma festa na qual a empolgação terá deixado de comparecer. 
Definitivamente não será uma festa de arromba. 

Publicado originalmente no jornal Brasil 247

Quando a escolha é péssima

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