Zacarias Gama[1]
Os jovens professores brasileiros nos seus primeiros anos de
docência tendem a ser assombrados pela avaliação dos seus alunos, em especial nos
seus primeiros anos de docência. Como avaliar corretamente? Como ser imparcial
e justo? O que fazer? Qual teoria de avaliação colocar em prática?
Há jovens professores que buscam a ajuda de algum colega mais
experiente ou que repetem as práticas de algum ex-professor que lhes servem de
inspiração. Essas duas alternativas podem ajudar imediatamente, mas, regra
geral, remetem a determinados padrões e tendências de avaliação, no mínimo discutíveis.
Em comunicação na 26ª Reunião Anual da Anped (Gama, 2003), chamei a
atenção para a existência de sólidos “padrões e tendências[2]
recorrentes nos processos avaliativos escolares, que convivem uns com os outros
sem se modificarem” e por causa da inexistência de um discurso avaliativo
unificado. Em seu lugar predominam diversas e diferentes maneiras de avaliar a
aprendizagem dos estudantes as quais, regra geral, são objetivistas e subjetivistas
filiadas às tendências de avaliar como operação de medida, construtivistas,
fenomenológicas, dialético-transformadoras ou crítico-libertadoras, e
socioculturais.
A partir dos anos 1980, face às críticas às práticas de
avaliação herdadas da escola tradicional, baseadas em rigorosos testes e provas
que reprovavam impiedosamente e contribuíam para o abandono escolar, a
tendência de avaliação para o sucesso tornou-se hegemônica, muito conhecida na
época como avaliação para a tomada de decisão. É grande a sua contribuição na
contestação e desconstrução da educação herdada dos anos da primeira metade do
século XX. Seus principais teóricos e divulgadores foram Stufflebeam &
Shinkfield,1985; De Ketele & Roegiers, 1992; e Luckesi, 1998, 2002 (apud Oliveira; Gama, 2010). Esta
avaliação se definia como emissão de um juízo de qualidade a partir de dados
relevantes, tendo em vista uma tomada de decisão. Cabia ao professor compor um
verdadeiro relatório das atividades estudantis (desempenho em testes e
trabalhos variados, participação, comprometimento com as tarefas escolares,
pontualidade e assiduidade e até o seu contexto social), emitir juízo
valorativo sobre elas, e decidir qual nota ou conceito o aluno deveria receber.
Nos dizeres de Luckesi (Oliveira;
Gama, 2010) tomar decisão significa levar o estudante é superar determinadas
condutas observadas; sem isto o ato amoroso de avaliar não completa seu ciclo
constitutivo.
A avaliação para a tomada de decisão como ato amoroso e
inclusivo curvou a vara em sentido contrário com grande força. A sobrevivência
das práticas características da escola tradicional se tornou marginal e démodé.
Os testes e provas praticamente desapareceram do cenário educacional. Houve,
porém, quem questionasse os instrumentos de avaliar desta avaliação como ato
amoroso, assim como a capacidade dos professores de realizar de forma correta o
que se propunham a avaliar. Outros questionavam os limites dos docentes: quais
as fronteiras entre a indiscrição e a ajuda à vida estudantil; a coleta de
dados relevantes expunha a vida particular de crianças e jovens nos conselhos
de classe. Alguns ainda questionaram se os professores e estudantes são detentores
do poder de realizar escolhas de maneira lógica e objetiva. Por fim se observou
que confunde o processo de avaliação com a análise das situações, a obtenção de
indicadores. (Oliveira;
Gama, 2010). Perrenoud, um dos arautos mais bem sucedidos do neoliberalismo
e do neotecnicismo em avaliação, também se insurgiu contra as práticas de
avaliação para a tomada de decisão destacando a ausência de normas de
excelência em suas práticas:
sem normas de
excelência, não há avaliação; sem avaliação, não há hierarquias de excelência;
sem hierarquias de excelência, não há êxitos ou fracassos declarados e, sem
eles, não há seleção, nem desigualdades de acesso às habilitações almejadas do
secundário ou aos diplomas (Perrenoud,
1998).
Muito embora eu tenha profundas
divergências relativas às teorias defendidas por Perrenoud, sou forçado a
concordar com a sua crítica à perda de excelência. A incorporação à avaliação
para a tomada de decisão de influências advindas da fenomenologia, por exemplo,
levou os professores a enfatizar as intenções e a criatividade dos alunos na
solução de problemas, considerando principalmente os seus locais de
pertencimentos e suas faculdades de percepção no “mundo vivido” sob
determinações opressivas. Admitiu-se que seus trabalhos escolares tinham a
forma do mundo em que se realizavam e desvelavam as suas visões de mundo.
A massa de alunos se tornou
disforme e acentuadamente grande com a aceitação de quaisquer trabalhos
estudantis, fossem bons ou não, considerando-se as condições em que viviam; com
as progressões ou aprovações automáticas instituídas por governos e prefeitos
populistas responsáveis pelo funcionamento das escolas públicas esta massa
aumentou ainda mais. A inexistência de tomada de decisão em favor da excelência
por parte das autoridades educacionais brasileiras agravou o problema de forma
avassaladora. Nos dias atuais a realidade continua, sobretudo, perversa com os
estudantes de níveis socioeconômicos mais baixos: 7 de cada 10 alunos do ensino médio têm nível insuficiente em português
e matemática (G1, 2018)
Seria, contudo, uma leviandade superdimensionar a avaliação
para a tomada de decisão e responsabilizá-la pela crise de qualidade da
educação nacional. Muito embora tenha considerável parcela de responsabilidade,
outras determinações são importantes e mais impactantes. Duas delas, entretanto, têm grande destaque.
A primeira diz respeito às nossas leis educacionais que primam
pouco pela excelência educacional e desenham para o alunado um horizonte muito estreito.
A Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996), como exemplo maior, tem como finalidade
“o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho” a ser garantida por “padrões mínimos de
qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por
aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem”. A Lei não define o que é “pleno desenvolvimento”, qual
cidadania e qual grau de excelência da qualificação para o trabalho; tampouco
outras leis complementares. A apuração da qualidade da educação oferecida utiliza
indicadores de qualidade da educação básica divulgados pelo MEC/INEP,
mas passam longe de apurar a excelência dos desempenhos em disciplinas ou áreas
do conhecimento, preferindo apurar a adequação da formação docente; complexidade
da gestão escolar; esforço docente; finanças da escola; média de alunos por turma;
média de horas-aula diária; nível socioeconômico; percentual de docentes com
nível superior; regularidade do corpo docente; remuneração média dos docentes; taxas
de distorção idade-série; taxas de rendimento, transição e não-respostas.
Nenhum, como se pode observar, visa definir o nível de proficiência dos
estudantes em qualquer disciplina do currículo escolar. Os domínios que podem
ter em determinado campo do conhecimento ou, em outras palavras, o
aproveitamento traduzido em bons desempenhos nas disciplinas curriculares passa
ao largo das preocupações legais, do Ministério da Educação e de seu principal
instituto de pesquisas educacionais, o INEP.
Duas outras determinações são, sem dúvida, o descaso com a formação
do professorado nas instituições superiores públicas e particulares e a
subordinação da educação pelo mercado intensamente preocupado com a reprodução
e conservação de uma cidadania pautada pelas relações de trabalho do modo de
produção capitalista e com a qualificação dos estudantes para o trabalho. Em
recente estudo, observei que a grande maioria das IES públicas e particulares de
formação de professores, com qualidade comprovada em diversos rankings nacionais
e estrangeiros, se concentra nas capitais da regiões Sudeste, em Porto Alegre e
Brasília. As IES particulares regra geral são religiosas. A subordinação da
educação pelo mercado vem acompanhada de pedagogias imediatistas para a qualificação
para o trabalho, sendo a pedagogia das competências o melhor exemplo. O
gerencialismo da educação, que transmuta métodos de administração de empresas
para as escolas, define-lhes as suas visões, valores e missões, consegue
elevados níveis de eficiência e rende excelentes campanhas publicitárias, é
ainda assim incapaz de elevar o desempenho médio de seus estudantes, por
exemplo, nas avaliações aplicadas pelo PISA, Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes patrocinado pela OCDE – Organização de Cooperação para
o Desenvolvimento Econômico.
O que
fazer?
Diante de tantos problemas é preciso encontrar e apurar os modos
de solucioná-los com eficácia. E, desde já, é preciso esclarecer: não será fácil
porquanto demandam grande mobilização política de dimensões nacionais.
a.
Individualmente
Em nível individual pouco se poderá fazer. Mas sempre serão bem-vindos
os docentes comprometidos com a oferta de educação de qualidade com valor de
uso, troca e excelência referenciada socialmente. Os jovens professores que
aprofundarem as suas formações básicas com leituras de fôlego e esforço para
desentranharem de si mesmos as internalizações reprodutoras do status quo, além
de se diferenciarem, mais cedo do que imaginam, adquirirão condições para o
necessário exercício de sua autoridade pedagógica e salto de qualidade. Bourdieu
& Passeron enfatizam a importância desta autoridade como condição de
inculcação do arbitrário cultural dominante; eu, entretanto discordo da condição
que eles lhe atribuem, mas devo dizer que sou favorável a que os professores a
resgatem aos olhos dos estudantes e da sociedade em geral. A desvalorização
social do magistério que vem ocorrendo sistematicamente liquidou essa
autoridade pedagógica, chegando ao ponto de se aceitar que qualquer um com
algum saber pode ser professor. Os governos golpistas negacionistas que tomaram
o poder a partir de 2016 chegaram ao cúmulo de deliberar em favor da atuação de
quaisquer profissionais apenas com notório saber comprovado para ministrar “conteúdos
de áreas afins à sua formação ou experiência profissional” na educação básica (Lei nº
13.415, de 16 de fevereiro de 2017.).
O passo seguinte de um jovem professor é assumir uma prática
avaliativa que não anula a realidade individual e a autonomia de cada aluno, com
cuidados para promover a produção de trabalhos de qualidade superior.
Diagnosticar o nível real em que se encontram os estudantes é fundamental para
a expressão subjetiva de ideias no momento seguinte. O nível real de cada estudante é dado pela
capacidade de resolver atividades sem qualquer ajuda, é o que efetivamente
dominam. Os testes objetivos facilitam identificar o potencial de aprendizagem
e as fragilidades ainda existentes, como diagnósticos revelam quais bases os
estudantes têm para uma cognição superior e mais complexa. O diagnóstico, nunca
entendido como ponto de chegada, dá ao professor as bases para elevar o
potencial dos alunos e a capacidade de se expressarem subjetivamente em textos
escritos por eles mesmos. São de grande importância neste momento as indicações
de livros, filmes, visitas educativas etc. para incentivar os alunos a realizarem
novas mediações e interagirem com colegas e adultos. É a partir das mediações
que eles podem fazer, e só eles podem fazê-las, é que se apropriam
definitivamente dos novos conhecimentos aprendidos. As mediações são atividades
que ocorrem no interior da mente, são elas que permitem a passagem de uma
situação para outra, é quando as quantidades são transformadas em qualidade; o aluno
se torna outro, diferente do que era; ele se apossa do conhecimento conforme o
seu nível de consciência, ou com outras palavras, conforme as suas estruturas
mentais, mais ou menos desenvolvidas. Ninguém pode mediar por ninguém. O
professor quando muito se põe como intermediário entre o aluno e o conhecimento,
incentivando o estudante a se apropriar dele; para tanto expõe aos alunos a sua
síntese atual sobre determinado conhecimento, apresenta métodos, fornece
bibliografia, projeta filmes... e, com carinho e ternura, incentiva que produza
sínteses cada vez mais elaboradas, seja por meio oral ou por meio da produção
de textos de forma autônoma. Os conhecimentos adquiridos e mediados funcionam
como ferramentas a partir dos quais o aluno pode interagir com o mundo real das
pessoas humanas, objetos e acontecimentos. Quanto mais conhecimentos,
consciência, interação social e mediações tanto maior a capacidade de se empenhar
nas atividades produtivas e construtivas. Ontologicamente, é a partir das
interações sociais que homens e mulheres se humanizam e se tornam poetas,
professores, engenheiros, bombeiros...
As interações que podem ocorrer na sala de aula por meio de
trabalhos em grupo têm elevada importância no processo de aprendizagem. Elas
favorecem aos estudantes a realização de catarses coletivas e mediações
individuais que ultrapassam a impressão inicial das ideias e dos novos
conhecimentos, buscam o que está além e as instrumentalizam para o exame da
realidade; as novas sínteses que resultam das interações e mediações com
colegas mais experientes e adultos conferem novos significados e olhares para a
vida. As interações ainda favorecem o processo de internalização dos
conhecimentos e ideias, isto é, o processo de desenvolvimento de sua memória de
longo prazo, e a capacidade de utilizá-los de forma autônoma, sem ajudas.
a.
Politicamente
É no campo da grande política que reside a possibilidade de
superar os problemas da educação nacional, quaisquer tentativas individuais
estão condenadas ao fracasso ou à conquista de resultados efêmeros. Urge que a
sociedade subordine a educação das nossas crianças e jovens, definindo perfis
de saída para além dos interesses imediatistas do mercado, presente tão somente
na qualificação de mão de obra. Uma simples comparação com as leis de educação
de outros países deixa transparecer a mesquinhez das elites empresariais do
país quando se trata de educação (ver Novo Ensino Médio: aos estudantes nem as batatas, Gama, 2021).
Uma frente extraparlamentar constituída de partidos
políticos, Confederação Nacional de Trabalhadores de Educação (CNTE), Centrais
Sindicais, Movimentos Sociais, igrejas progressistas etc. pode compor um campo capaz
de alterar a relação de forças existente e encaminhar ao Congresso Nacional uma
reforma da educação nacional que priorize a educação de qualidade com valor de
uso, valor de troca, com desempenhos escolares de excelência, professores bem
qualificados, garantia de financiamento, escolas bem aparelhadas e salários
competitivos. Também será imperativo que tal frente extraparlamentar pela
educação alargue as finalidades da educação nacional para além que dispõe a
LDB, (Lei
nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) e as
coloque a serviço das demandas sociais.
Em outros países, cuja razão do Estado não é o mercado, as
finalidades da educação têm outros alvos. Daí que nada impede que, como no México,
a finalidade da educação brasileira para além das necessidades mercadológicas
seja a busca da equidade, da excelência e a melhoria contínua na educação de
forma a promover o desenvolvimento integral do aluno, influenciar a cultura
educacional pela corresponsabilidade e promover transformações sociais na escola e na comunidade (México, Ley General de Educación
Federal, Artículo 11); ou como na França, onde
a educação é a primeira prioridade nacional, organizando-se
inclusivamente em torno dos estudantes para promover a igualdade de
oportunidades, o combate às desigualdades sociais e territoriais, os valores da
República, a igual dignidade do ser humano, liberdade de consciência e laicidade. No México e na França, como se observa, a
educação está longe de ser organizada para atender a uma razão de estado
voltada para o mercado (França,
Code de l'éducation,2022).
Istvan Mészàros (apud Rodrigues de Souza, 2014[3])
é quem nos dá apoio teórico para pleitear a formação de uma frente
extraparlamentar pela educação, cuja força de ação haverá de ser grande no
enfrentamento do executivo e legislativo.
Somente tal força pode negar o controle da educação pelos movimentos
patrocinados pela elite do atraso: Movimento Todos pela Educação, Fundação
Lemman, Itaú BBA, Fundação Bradesco, Instituto Ayrton Senna e muitos outros.
Ela defenderia nacionalmente a reforma de educação construída a partir das
bases como alternativa ao modelo atual subordinado ao mercado. Como movimento
de massas, a frente extraparlamentar também se encarregaria de organizar o novo
funcionamento de todos os níveis e modalidades de ensino, da creche às
universidades.
Sua vitória anunciaria um novo tempo, mais justo, equânime e
democrático.
[1]
Professor
Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação
Theotonio dos Santos (ProDEd-TS), colaborador do Programa de Políticas Públicas
e Formação Humana (PPFH).
[2] A noção de
tendência em uso designa correntes de ideias ou opiniões possíveis de existir
no âmbito de um mesmo padrão avaliativo.
[3]
SOUZA, R. B. Rodrigues de. O Estado e a transição em Mészáros: rompendo a
camisa de força da democracia burguesa. Lutas Sociais, São Paulo, vol.18
n.32, p.24-32, jan./jun. 2014