29.11.25

Por uma nova escola pública: conhecimento, democracia e emancipação no século XXI

 




Zacarias Gama

ex-Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro



Problematizando

A crise contemporânea da escola não é um acidente conjuntural nem o resultado da suposta decadência moral dos estudantes ou da incompetência dos professores. Trata-se, antes, de uma crise do modelo de escola, constituído entre os séculos XVIII e XIX como aparelho disciplinar, organizador das hierarquias sociais e difusor da racionalidade necessária ao capitalismo industrial. O que assistimos hoje é o esgotamento histórico dessa instituição diante de transformações profundas no modo de produção, na cultura, nas tecnologias e nas formas de sociabilidade juvenil. A análise crítica da escola tradicional — inaugurada por Althusser, Bourdieu, Passeron, Bowles & Gintis e aprofundada por autores como Giroux, Apple, Enguita, Saviani e Bernstein — demonstra que, embora reprodutiva, a escola é também um espaço contraditório, permeado de disputas, resistências e possibilidades de reinvenção. É nesse terreno dialético que se inscreve a reflexão sobre a superação da crise escolar.

No Brasil, apesar do distanciamento — quando não da ignorância e franca negligência — das autoridades educacionais em relação à complexidade do fenômeno escolar, a instituição tem sido objeto de investigação sistemática e sofisticada na produção acadêmica contemporânea. A crítica dirigida à escola tradicional foi particularmente fecunda na segunda metade do século XX. A partir dos anos 1970, consolidou-se um campo analítico robusto que examinou a escola à luz de suas funções políticas, ideológicas e econômicas. Autores como Althusser, Bourdieu e Passeron, Foucault, Bowles e Gintis, entre outros, produziram diagnósticos contundentes: a escola opera como um aparelho de reprodução social, reafirmando desigualdades estruturais, legitimando relações de dominação e naturalizando hierarquias de classe, raça e gênero.

Entre esses autores formou-se um consenso robusto. Todos reconheceram que a escola participa da reprodução da ordem social de modo desigual, ideológico, condicionado e contraditório. As divergências entre eles não residiram na existência dessa reprodução — que é tomada como ponto de partida —, mas nas suas modalidades: como ela ocorre, quais mecanismos predominam, que forças a impulsionam, que margens de autonomia existem e que fissuras podem ser exploradas para disputa, resistência e eventual transformação das relações sociais.

Com o avanço das pesquisas acadêmicas, as abordagens estritamente reprodutivistas foram analisadas criticamente e tensionadas por perspectivas que recusaram o determinismo estrutural. Autores como Enguita, Giroux, Saviani, Apple, Willis e Bernstein evidenciaram que a escola, longe de ser um mecanismo automático e transparente, é uma instituição atravessada por contradições. Eles mostraram que ela contém espaços de resistência, abriga projetos e práticas em disputa e constitui um campo onde diferentes grupos lutam pela definição legítima do conhecimento escolar. Demonstraram também que o currículo é uma arena de conflito cultural, na qual se confrontam interesses, valores e visões de mundo. Ao enfatizar que a reprodução social não é mecânica — mas mediada por práticas, significados, culturas juvenis e ações docentes —, esses autores recolocaram no centro a agência, a contingência e a historicidade do fenômeno educativo.

Assim, o deslocamento teórico não rejeita o diagnóstico reprodutivista, mas o complexifica. A escola pode reproduzir desigualdades, mas não está totalmente capturada pelo aparelho ideológico dominante; ela conserva certa margem de manobra, aberta a disputas, contradições e possibilidades contra-hegemônicas. Tal compreensão dialética permite olhar a escola como instituição ambígua, dialética, simultaneamente funcional ao modo de produção e potencialmente capaz de produzir rupturas, dependendo das condições históricas, das correlações de força e dos projetos pedagógicos em jogo.

É a partir do reconhecimento da dialeticidade estrutural da escola que se coloca a questão que orienta este ensaio: por que os estudantes desprezam a escola e fazem corpo mole em todas as aulas? A resistência dos estudantes, quando paramos para analisar o que está acontecendo, não se dirige apenas a currículos descontextualizados, práticas pedagógicas autoritárias ou dispositivos de controle — embora estes sejam alvos frequentes de contestação. Eles resistem também ao modelo institucional da escola moderna: sua organização do tempo, do espaço, das relações, dos ritmos, das expectativas e das formas de subjetivação. Em outras palavras, os estudantes deste início de século tensionam o formato escolar herdado da longínqua sociedade industrial, exigindo que ele se reorganize conforme as condições sociotécnicas contemporâneas, as novas formas de interação e o estágio atual do modo de produção.

Se a escola sempre foi moldada pelas exigências históricas da economia e pelas formas de sociabilidade correspondentes, a resistência estudantil contemporânea expressa justamente o descompasso entre a instituição e o mundo que a circunda. Trata-se de uma pressão objetiva, não de mero capricho geracional. A escola é instada a redefinir suas funções, métodos, espaços e sentidos, não para atender ao individualismo consumista — como frequentemente caricaturado por autoridades —, mas porque o modelo escolar moderno, concebido para disciplinar corpos na era industrial, já não responde adequadamente às formas de vida e trabalho que emergem no capitalismo cognitivo, informacional e automatizado.

Este ensaio, portanto, concentra-se na análise dessa tensão entre a forma escolar e as dinâmicas sociais contemporâneas. Parto do pressuposto, fundamentado na tradição crítico-materialista, de que a escola é instituição histórica e contraditória, e que as resistências estudantis constituem indicadores privilegiados das transformações do modo de produção e de suas demandas sobre a formação dos sujeitos.

O que dizem os professores:

1.   1)  "Que as escolas públicas estão virando depósito de jovens absolutamente desinteressados nos temas das aulas e que são aprovados baseados numa pedagogia populista de aprovação automática disfarçada. É disso que se trata. E não de cultura de reprovação, termo vago e genérico. A escola é a única experiência contínua de cidadania que temos nessa idade. Se o que assistimos é uma imensa farsa pedagógica, dá para entender por que a sociedade brasileira tá ladeira abaixo e calçadas invadidas por motoqueiros acima..." (Luiz Zelongo)[1]

2.      2) "Isso já acontece há algum tempo. E o maior problema dessa aprovação automática e este modelo que o Castro determinou, não é porque o aluno não sabe nada sobre mitocôndrias, história antiga, era Vargas… é porque ele chega ao final do EM e não sabe ler. Não sabe interpretar o que lê, não sabe o significado de uma frase curta, não sabe o significado das palavras… e com isso não sabe escrever. Li uma reportagem com alguns dados onde apenas 8% dos brasileiros interpretam um texto, apenas 6% sabem diferenciar fato de opinião, e 29% dos adultos são analfabetos funcionais. Isso é muito triste. É um projeto de governo. Nem as cotas vão dar conta disso não"(Maria da Horta)

3.   3) "... o problema da educação que é os alunos  por não saberem matemática básica culpam o modelo de escola e os professores. Mais um ano formando um bando de idiotas que mal sabem ler porque o estado quer isso mesmo, gente burra pra mão de obra! (Clara dos Lírios do Campo)

444) "Além de aprovação automática os alunos vão poder pular de série na secretaria de educação do Rio de Janeiro! Escola virou fábrica de diplomas!" (Vitor do Marreh)

Os quatro depoimentos expressam um mal-estar docente profundo. Eles traduzem a percepção de perda de sentido da escola; sensação de que a instituição se tornou impotente; experiência cotidiana de frustração diante da indiferença estudantil; ideia de que “alguém acima” (governos, políticas, gestão) esvaziou a escola de sua função. De um ponto de vista teórico, essas falas revelam o choque entre o modelo escolar moderno (disciplinar, conteudista, industrial) e as exigências sociotécnicas contemporâneas. Eles são sintomas da crise estrutural do modelo de escola oriundo dos séculos XIX e XX.

Mergulhando com mais profundidade nestes depoimentos os professores relevam a perda de função e sentido da escola, a sua inadequação formal a novas condições do modo de produção informatizado e não apenas um colapso moral dos jovens, a crise da função cultural da escola e seu distanciamento de qualquer projeto consistente de democratização do conhecimento e a personalização de problemas estruturais, típica de contextos semelhantes de crise.

Detendo-me na personalização de problemas estruturais considero importante ressaltar que a transformação de um fenômeno social complexo (a crise da escola) em uma cadeia de culpas individuais somente obscurece tal crise, em especial ao responsabilizar os estudantes, as famílias, os professores, os políticos, os governos. Torna-se imperativo reconhecer a falência do modelo atual de escola diante do estágio atual do capitalismo.

Neste estágio de profundas mudanças no modo de produção, transformações culturais gestadas pelo capitalismo informacional, reorganização da juventude e da sociabilidade digital, precarização das políticas públicas voltadas para o obsoleto modelo de escola seriada e disciplinar, desigualdade estrutural brasileira, e desvalorização histórica do trabalho docente, é um equivoco impressionantemente grande atribuir causa moral e subjetiva ao que é estrutural e histórico. Afinal, não são os “os estudantes que não querem nada”, “os pais que não educam”, “os professores que são incompetentes”, “o governo que quer gente burra”. Há muito tempo, Althusser, Bourdieu & Passeron, Bowles & Gintis etc. já demonstraram que os problemas da escola não nascem dos indivíduos.

O que fazer?

Antes é necessário compreender que a construção de uma nova escola é impossível nascer espontaneamente do sofrimento social; ela precisa de um sindicato forte, organizado, capaz de levar consciência política aos profissionais de educação e unificar todas lutas sob um projeto de transformação do sistema educacional.

A resposta à pergunta “como superar a crise da escola?” também é um imperativo forte, mas que só pode ser obtida com rigor se partirmos de uma premissa que os estudos críticos já demonstraram: não se trata de salvar a velha escola, mas de compreender que o modelo escolar existente — disciplinar, seriado, textual, homogêneo — tornou-se estruturalmente incompatível com as formas contemporâneas de vida, trabalho e sociabilidade. A questão central não é mais como consertar a escola, mas que tipo de instituição educativa é capaz de responder às demandas reais da juventude e da sociedade atual.

A nova escola a ser estruturada de modo a atender às demandas dos estudantes e da sociedade precisa considerar que as juventudes estão conectadas; a   economia é informacional; que a formação cultural brasileira é um cadinho multicultural com linguagens digitais, novas expectativas de vida, novas formas de trabalho e novos modos de atenção.

Para esta escola que não seria profissionalizante eu proporia um intenso relacionamento entre teoria e prática; aproximação ciência e realidade; conexão com laboratórios, museus e redes de pesquisa; competências científicas como práticas sociais. Ao invés de aulas de 50 minutos, melhor seriam os blocos temáticos longos; oficinas de produção; tempos de pesquisa; tempos de criação; tempos de projeto. Para não ser 100% radical, preservaria as aulas de Matemática e Língua Portuguesa/Literatura. Suas marcas indeléveis seriam: flexibilidade, crítica, democrática, criativa, conectada e intelectualmente exigente, capaz de integrar ciência, tecnologia, cultura e projeto de vida. Ela cuidaria para ter uma disciplina rigorosa, mas significativa; e uma cultura viva e socialmente critica. Seria contemporânea, mas jamais submissa ao mercado.

Concluindo

Em conclusão devo dizer que a escola que poderá enfrentar os desafios do século XXI não é uma escola restaurada, nostálgica ou moralizante, mas uma instituição intelectualmente exigente, culturalmente viva, socialmente crítica e politicamente democrática. É uma escola que assume sua natureza dialética: reproduz, mas também transforma; conserva, mas também produz novas formas de pensar e agir; organiza saberes, mas também reinventa práticas. Em vez de disciplinar corpos para um mundo que não existe mais, ela deve formar sujeitos autônomos, capazes de compreender a complexidade das sociedades contemporâneas e de intervir nelas com racionalidade, criatividade e responsabilidade pública. Superar a crise da forma escolar significa, portanto, produzir uma nova escola contemporânea, compatível com o estágio atual do desenvolvimento científico, tecnológico e social — sem abdicar do ideal iluminista de uma educação voltada à emancipação humana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Os nomes dos professores são fictícios.


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