27.11.25

Progressão Parcial e Justiça Educacional: Análise Crítica do Decreto nº 49.994/2025 do Estado do Rio de Janeiro

 



 Zacarias Gama

Professor Titular Aposentado da UERJ



Introdução

Em sociedades que se pretendem democráticas, a escola pública tem a função civilizatória de assegurar o direito constitucional à aprendizagem e a continuidade das trajetórias educativas. No entanto, a persistência da reprovação e da evasão no Brasil revela uma contradição estrutural: o sistema educacional produz, ele próprio, parte significativa dos fracassos que deveria prevenir. Nesse cenário, o Decreto nº 49.994/2025, que institui a Política Estadual Excepcional de Progressão Parcial no Estado do Rio de Janeiro, emerge como esperançosa tentativa de reorganizar o fluxo escolar e reduzir distorções que historicamente penalizam estudantes de baixa renda, negros, periféricos e que já acumularam defasagens em sua trajetória.

Partindo de uma perspectiva materialista e crítica, este texto analisa a política à luz de evidências internacionais, dados empíricos de pesquisas recentes e quinze teses de doutorado produzidas entre 2001 e 2025. Busco compreender não apenas o decreto em si, mas as condições estruturais que permitem — ou inviabilizam — sua implementação. A pergunta de fundo é filosófico-pedagógica: uma política de progressão parcial pode ser instrumento de justiça educacional ou corre o risco de se tornar apenas resposta tecnocrática a um problema estrutural?

A Política de Progressão Parcial

O decreto estabelece que estudantes do Ensino Médio, entre 15 e 17 anos, com rendimento insatisfatório em até seis componentes curriculares possam avançar de série, vinculados a planos especiais de estudo, diagnósticos periódicos, recuperação orientada e acompanhamento sistemático. Diferentemente da antiga “aprovação automática”, a medida pressupõe contrapartidas pedagógicas obrigatórias e registro contínuo das ações pelas escolas.

Além dos dispositivos pedagógicos, a sua implementação dependerá de monitoramento pelas Diretorias Regionais e pela SEEDUC, com avaliação anual do impacto sobre indicadores como retenção, abandono, infrequência e recomposição das aprendizagens.

Contudo, a recepção social do decreto foi heterogênea. Enquanto setores governistas o defendem como resposta racional à evasão, o SEPE o interpreta como tentativa de inflar artificialmente indicadores, e conselheiros estaduais criticam sua elaboração verticalizada. Estudantes, por sua vez, enxergam simultaneamente uma flexibilização das exigências e uma sobrecarga potencial — dado que um aluno reprovado em seis disciplinas poderá cursar até dezoito no ano seguinte. Essas percepções foram registradas pelo jornal O Globo  (26/11/2025) e revelam tensões entre expectativas, discursos e condições reais de trabalho escolar.

Metodologia e Desenvolvimento

A minha análise articula três fontes: experiências internacionais (França, Inglaterra, Finlândia, Singapura, Chile e Hong Kong), relatórios da OCDE sobre repetência, equidade e transições escolares e quinze teses de doutorado (2001–2025) sobre repetência, progressão, baixo desempenho e evasão em programas de excelência (Capes ≥ 5).

Três questões orientam o meu estudo: a progressão parcial nos termos do decreto reduz desigualdades? Barreiras institucionais e culturais comprometem sua eficácia? É pedagogicamente viável e efetiva?

Experiências Internacionais

As práticas globais mostram que a repetência é exceção, não regra. Destacam-se alguns pontos:

1.      França: a progressão é definida por avaliações contínuas. Há recuperação formal e repetência pontual. Estudos mostram que regiões com maior concentração de alunos de origem migrante apresentam índices de repetência superiores, revelando correlação entre desigualdade e fluxo.

2.      Inglaterra: a aprovação depende do desempenho regular e dos exames nacionais (GCSE). Escolas com forte acompanhamento individual reduzem significativamente a necessidade de retenção.

3.      Finlândia: a repetência é raríssima. O sistema oferece apoio imediato, intervenção precoce e forte formação docente. Dados do National Agency for Education indicam que 96% dos estudantes concluem o Ensino Básico sem defasagem. A escola não pune: intervém.

4.      Singapura: o sistema educacional é muito competitivo, porém oferece suportes robustos ao estudantes: monitoramento semanal, grupos de reforço e materiais personalizados. Estudos mostram que estudantes que recebem tutoria têm probabilidade 40% menor de sofrer retenção.

5.      Chile: seu modelo é muito semelhante ao brasileiro, com exigência de médias mínimas. Pesquisas locais indicam que a repetência afeta sobretudo estudantes de baixa renda — padrão idêntico ao do Brasil.

6.      Hong Kong: é alta a pressão por resultados, coexistindo modelos distintos de promoção. A repetência, no entanto, tende a se concentrar em escolas de menor prestígio.

Pequeno Estado da Arte

A OCDE tem produzido documentos como No More Failures (2007) e PISA 2022: Reduzir Drasticamente a Repetência e eles convergem em três pontos: a repetência aprofunda desigualdades; é ineficaz do ponto de vista pedagógico e a existência de apoio pedagógico estruturado produz efeitos significativamente melhores. É consensual em tais documentos que repetir não ensina.

As produções acadêmicas, por sua vez, afluem em três dimensões.

1. Dimensão Epistemológica

As teses rejeitam explicações biologizantes (“alunos incapazes”), moralistas (“alunos que não se esforçam”) e individualistas (“fracasso como responsabilidade pessoal”). Nelas, o fracasso escolar é entendido como fenômeno socialmente produzido, associado a desigualdades de renda, raça, território, acesso à educação infantil e currículos rígidos.

Os exemplos recorrentes nas teses demonstram que estudantes negros têm probabilidade maior de sofrer reprovação nas redes estaduais, mesmo controlando variáveis socioeconômicas; alunos de áreas periféricas acumulam defasagens desde os anos iniciais, o que lhes aumenta progressivamente a chance de retenção no Ensino Médio; e escolas com cultura de punição apresentam taxas de desistência duas vezes superiores às que utilizam avaliação formativa.

A conclusão epistemológica central nas quinze teses é inequívoca: o fracasso não reside no estudante, mas na arquitetura dos sistemas social e educacional.

2. Dimensão Empírica

Os achados empíricos apontam causas e efeitos estruturais dos principais fatores associados à repetência, que são: baixa renda familiar; escolaridade materna reduzida; pertencimento racial (negros e pardos); moradia periférica; IDEB baixo; ausência de educação infantil de qualidade. Os impactos mensuráveis que provocam nos estudantes são responsáveis pela queda persistente no desempenho posterior; auto percepção negativa da capacidade; sentimento de não pertencimento; ruptura de vínculos com colegas; risco ampliado de evasão.

Os exemplos empíricos frequentes nas teses evidenciam que os estudantes que repetem o 1º ano do Ensino Médio têm probabilidade quatro vezes maior de abandonar a escola até os 18 anos. Também provam que os exemplos dados têm efeitos sobre o trabalho docente: desgaste emocional; tempo excessivo dedicado à manutenção da disciplina das turmas; impotência diante da desigualdade acumulada.

Em escolas vulneráveis, é recorrente aparecer como “solução de sobrevivência” a redução do tamanho das turmas e o afastamento os “alunos-problema”. As pesquisas educacionais, contudo, mostram que intervenções como tutoria, flexibilização curricular e suporte psicossocial reduzem drasticamente os riscos.

3. Dimensão Política

As teses defendem que a repetência seja excepcional e não padrão, e evitável desde que articulada a planos individualizados; avaliações formativas; interdisciplinaridade; reorganização curricular; políticas territoriais integradas; financiamento adequado; e redução do número de alunos por turma.

Todas elas rechaçam o binômio “aprovar automaticamente × reprovar para corrigir comportamentos”. Reprovar não educa.

Conclusão

O Decreto Fluminense nº 49.994/2025, não obstante os seus problemas, representa um esforço de alinhar o sistema estadual às melhores evidências nacionais e internacionais. Seu mérito está em deslocar o debate da lógica punitiva para a lógica do acompanhamento pedagógico. No entanto, nenhuma política de progressão parcial se sustenta apenas pela mudança normativa. Sem infraestrutura, não há pedagogia; sem professores suficientes bem formados, não há suporte individualizado; sem financiamento, não há qualidade.

A tarefa é monumental: transformar a cultura escolar, superar a pedagogia da punição e construir práticas que assegurem o direito à aprendizagem de mais de meio milhão de estudantes. Isso exige concurso público para haver professores de apoio, recomposição salarial à luz das remunerações para as formações de mesmo nível, ampliação da equipe pedagógica, apoio psicossocial, políticas intersetoriais e formação docente continuada. Exige, sobretudo, abandonar a crença simplista de que reprovar educa.

Se a progressão parcial será instrumento de justiça educacional ou mera resposta administrativa dependerá menos do decreto e mais das condições materiais que o Estado decidir mobilizar. O desafio é, portanto, pedagógico, político e civilizatório: garantir que a escola pública deixe de produzir fracasso e comece, de fato, a produzir futuro. Não dá mais para empurrar o problema irresponsavelmente.


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