Introdução
Em sociedades que se pretendem democráticas, a escola
pública tem a função civilizatória de assegurar o direito constitucional à
aprendizagem e a continuidade das trajetórias educativas. No entanto, a
persistência da reprovação e da evasão no Brasil revela uma contradição
estrutural: o sistema educacional produz, ele próprio, parte significativa dos
fracassos que deveria prevenir. Nesse cenário, o Decreto nº 49.994/2025, que
institui a Política Estadual Excepcional de Progressão Parcial no Estado do Rio
de Janeiro, emerge como esperançosa tentativa de reorganizar o fluxo escolar e
reduzir distorções que historicamente penalizam estudantes de baixa renda,
negros, periféricos e que já acumularam defasagens em sua trajetória.
Partindo de uma perspectiva materialista e crítica, este
texto analisa a política à luz de evidências internacionais, dados empíricos de
pesquisas recentes e quinze teses de doutorado produzidas entre 2001 e 2025. Busco
compreender não apenas o decreto em si, mas as condições estruturais que
permitem — ou inviabilizam — sua implementação. A pergunta de fundo é
filosófico-pedagógica: uma política de progressão parcial pode ser instrumento
de justiça educacional ou corre o risco de se tornar apenas resposta
tecnocrática a um problema estrutural?
A Política de Progressão Parcial
O decreto estabelece que estudantes do Ensino Médio, entre
15 e 17 anos, com rendimento insatisfatório em até seis componentes
curriculares possam avançar de série, vinculados a planos especiais de estudo,
diagnósticos periódicos, recuperação orientada e acompanhamento sistemático.
Diferentemente da antiga “aprovação automática”, a medida pressupõe
contrapartidas pedagógicas obrigatórias e registro contínuo das ações pelas
escolas.
Além dos dispositivos pedagógicos, a sua implementação
dependerá de monitoramento pelas Diretorias Regionais e pela SEEDUC, com
avaliação anual do impacto sobre indicadores como retenção, abandono,
infrequência e recomposição das aprendizagens.
Contudo, a recepção social do decreto foi heterogênea.
Enquanto setores governistas o defendem como resposta racional à evasão, o SEPE
o interpreta como tentativa de inflar artificialmente indicadores, e
conselheiros estaduais criticam sua elaboração verticalizada. Estudantes, por
sua vez, enxergam simultaneamente uma flexibilização das exigências e uma
sobrecarga potencial — dado que um aluno reprovado em seis disciplinas poderá
cursar até dezoito no ano seguinte. Essas percepções foram registradas pelo
jornal O Globo (26/11/2025) e revelam
tensões entre expectativas, discursos e condições reais de trabalho escolar.
Metodologia e Desenvolvimento
A minha análise articula três
fontes: experiências internacionais (França, Inglaterra, Finlândia, Singapura,
Chile e Hong Kong), relatórios da OCDE sobre repetência, equidade e transições
escolares e quinze teses de doutorado (2001–2025) sobre repetência, progressão,
baixo desempenho e evasão em programas de excelência (Capes ≥ 5).
Três questões orientam o meu estudo:
a progressão parcial nos termos do decreto reduz desigualdades? Barreiras
institucionais e culturais comprometem sua eficácia? É pedagogicamente viável e
efetiva?
Experiências Internacionais
As práticas globais mostram que a repetência é exceção, não
regra. Destacam-se alguns pontos:
1.
França: a progressão é definida por avaliações
contínuas. Há recuperação formal e repetência pontual. Estudos mostram que
regiões com maior concentração de alunos de origem migrante apresentam índices
de repetência superiores, revelando correlação entre desigualdade e fluxo.
2.
Inglaterra: a aprovação depende do desempenho
regular e dos exames nacionais (GCSE). Escolas com forte acompanhamento
individual reduzem significativamente a necessidade de retenção.
3.
Finlândia: a repetência é raríssima. O sistema
oferece apoio imediato, intervenção precoce e forte formação docente. Dados do
National Agency for Education indicam que 96% dos estudantes concluem o Ensino
Básico sem defasagem. A escola não pune: intervém.
4.
Singapura: o sistema educacional é muito competitivo,
porém oferece suportes robustos ao estudantes: monitoramento semanal, grupos de
reforço e materiais personalizados. Estudos mostram que estudantes que recebem
tutoria têm probabilidade 40% menor de sofrer retenção.
5.
Chile: seu modelo é muito semelhante ao
brasileiro, com exigência de médias mínimas. Pesquisas locais indicam que a
repetência afeta sobretudo estudantes de baixa renda — padrão idêntico ao do
Brasil.
6.
Hong Kong: é alta a pressão por resultados,
coexistindo modelos distintos de promoção. A repetência, no entanto, tende a se
concentrar em escolas de menor prestígio.
Pequeno
Estado da Arte
A OCDE tem produzido documentos
como No More Failures (2007) e PISA 2022: Reduzir Drasticamente a Repetência e
eles convergem em três pontos: a repetência aprofunda desigualdades; é ineficaz
do ponto de vista pedagógico e a existência de apoio pedagógico estruturado
produz efeitos significativamente melhores. É consensual em tais documentos que
repetir não ensina.
As produções acadêmicas, por sua vez, afluem em três
dimensões.
1. Dimensão Epistemológica
As teses rejeitam explicações biologizantes (“alunos
incapazes”), moralistas (“alunos que não se esforçam”) e individualistas
(“fracasso como responsabilidade pessoal”). Nelas, o fracasso escolar é
entendido como fenômeno socialmente produzido, associado a desigualdades de
renda, raça, território, acesso à educação infantil e currículos rígidos.
Os exemplos recorrentes nas
teses demonstram que estudantes negros têm probabilidade maior de sofrer
reprovação nas redes estaduais, mesmo controlando variáveis socioeconômicas; alunos
de áreas periféricas acumulam defasagens desde os anos iniciais, o que lhes aumenta
progressivamente a chance de retenção no Ensino Médio; e escolas com cultura de
punição apresentam taxas de desistência duas vezes superiores às que utilizam
avaliação formativa.
A conclusão epistemológica central nas quinze teses é
inequívoca: o fracasso não reside no estudante, mas na arquitetura dos sistemas
social e educacional.
2. Dimensão Empírica
Os achados empíricos apontam
causas e efeitos estruturais dos principais fatores associados à repetência,
que são: baixa renda familiar; escolaridade materna reduzida; pertencimento
racial (negros e pardos); moradia periférica; IDEB baixo; ausência de educação
infantil de qualidade. Os impactos mensuráveis que provocam nos estudantes são responsáveis
pela queda persistente no desempenho posterior; auto percepção negativa da
capacidade; sentimento de não pertencimento; ruptura de vínculos com colegas; risco
ampliado de evasão.
Os exemplos empíricos
frequentes nas teses evidenciam que os estudantes que repetem o 1º ano do
Ensino Médio têm probabilidade quatro vezes maior de abandonar a escola até os
18 anos. Também provam que os exemplos dados têm efeitos sobre o trabalho
docente: desgaste emocional; tempo excessivo dedicado à manutenção da
disciplina das turmas; impotência diante da desigualdade acumulada.
Em escolas vulneráveis, é
recorrente aparecer como “solução de sobrevivência” a redução do tamanho das
turmas e o afastamento os “alunos-problema”. As pesquisas educacionais,
contudo, mostram que intervenções como tutoria, flexibilização curricular e
suporte psicossocial reduzem drasticamente os riscos.
3. Dimensão Política
As teses defendem que a
repetência seja excepcional e não padrão, e evitável desde que articulada a planos
individualizados; avaliações formativas; interdisciplinaridade; reorganização
curricular; políticas territoriais integradas; financiamento adequado; e redução
do número de alunos por turma.
Todas elas rechaçam o binômio “aprovar automaticamente ×
reprovar para corrigir comportamentos”. Reprovar não educa.
Conclusão
O Decreto Fluminense nº 49.994/2025, não obstante os seus
problemas, representa um esforço de alinhar o sistema estadual às melhores
evidências nacionais e internacionais. Seu mérito está em deslocar o debate da
lógica punitiva para a lógica do acompanhamento pedagógico. No entanto, nenhuma
política de progressão parcial se sustenta apenas pela mudança normativa. Sem
infraestrutura, não há pedagogia; sem professores suficientes bem formados, não
há suporte individualizado; sem financiamento, não há qualidade.
A tarefa é monumental: transformar a cultura escolar,
superar a pedagogia da punição e construir práticas que assegurem o direito à
aprendizagem de mais de meio milhão de estudantes. Isso exige concurso público para
haver professores de apoio, recomposição salarial à luz das remunerações para
as formações de mesmo nível, ampliação da equipe pedagógica, apoio
psicossocial, políticas intersetoriais e formação docente continuada. Exige,
sobretudo, abandonar a crença simplista de que reprovar educa.
Se a progressão parcial será instrumento de justiça
educacional ou mera resposta administrativa dependerá menos do decreto e mais
das condições materiais que o Estado decidir mobilizar. O desafio é, portanto,
pedagógico, político e civilizatório: garantir que a escola pública deixe de
produzir fracasso e comece, de fato, a produzir futuro. Não dá mais para
empurrar o problema irresponsavelmente.
Referências bibliográficas:
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