25.11.25

A HEGEMONIA INUMANA DA ECONOMIA DIGITAL E OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS NO SÉCULO XXI

 



A digitalização integral da economia — desde a produção industrial até o consumo cotidiano mediado por plataformas — inaugura um novo regime de poder que ultrapassa os limites tradicionais do capitalismo industrial. O que está em curso não é apenas a substituição de máquinas por máquinas mais inteligentes, mas a constituição de um modo de produção algorítmico, baseado em decisões automatizadas, opacidades técnicas e novas formas de concentração de poder. Esse processo gera riscos democráticos inéditos: erosão do controle social, fragilização das instituições, formação de elites tecnológicas invisíveis e aprofundamento das desigualdades estruturais. No caso brasileiro, tais tensões são ampliadas pelo caráter incompleto de nosso processo democrático e pela fragilidade histórica das instituições de participação popular.

Assim, compreender a emergência dessa hegemonia digital e suas contradições se torna urgente para pensar não apenas o futuro da economia, mas o futuro da própria democracia. Antes de avançar para a análise, é necessário formular algumas questões que orientam o debate. Quais mecanismos da economia digitalizada concentram poder de decisão fora do alcance democrático? Em que medida algoritmos e plataformas moldam comportamentos, escolhas e valores sem mediação consciente dos cidadãos? Como a lógica produtiva guiada por IA tende a reforçar desigualdades econômicas e simbólicas já existentes no Brasil? Quais são as contradições internas do capitalismo algorítmico que tensionam a promessa de eficiência e bem-estar? Como recuperar o controle social e institucional sobre processos automatizados que operam sem transparência nem accountability?

II

Se por um lado a economia digitalizada representa uma das mais expressivas inovações técnicas deste século, por outro constitui um risco profundo para processos democráticos ainda em consolidação, como o brasileiro. A introdução da inteligência artificial nos mecanismos de produção, circulação, vigilância e decisão econômica cria elites técnicas opacas, compostas não apenas por especialistas humanos, mas sobretudo por sistemas algorítmicos que operam sem rosto, sem responsabilidade política e sem vínculo com o bem comum.

Essas elites não são simplesmente grupos profissionais; são infraestruturas inteiras que se tornam indispensáveis ao funcionamento da sociedade. O problema não está apenas na automação, mas no deslocamento do centro de comando da vida social para estruturas técnicas governadas por corporações globais. A democracia, construída sobre a ideia moderna de soberania popular, passa a conviver com uma soberania paralela: a soberania dos dados, exercida pelos donos dos sistemas que capturam, processam e preveem comportamentos.

A hegemonia digital introduz contradições severas no modo de produção capitalista. De um lado, promete eficiência, redução de custos e expansão do lucro; de outro, converte trabalhadores em resíduos funcionais, substituíveis e continuamente avaliados por métricas que ignoram dimensões humanas fundamentais — criatividade, cooperação, solidariedade. O capitalismo algorítmico tende a reduzir a complexidade humana à previsibilidade computacional, o que gera tensões profundas com ideais de felicidade, emancipação e autonomia.

A contradição fundamental emerge da própria lógica que sustenta o sistema: a busca infinita por otimização. A IA não opera com categorias éticas, mas com métricas. Isso implica que valores humanos — dignidade, liberdade, bem-estar — tornam-se ruídos estatísticos. É essa dissociação entre racionalidade técnica e racionalidade humana que produz o que podemos chamar de hegemonia inumana do modo de produção digital.

Além disso, o caráter transnacional das plataformas restringe drasticamente a capacidade dos Estados nacionais de regular o setor. Em países como o Brasil, onde a democracia ainda enfrenta disputas internas entre projetos autoritários e emancipatórios, essa vulnerabilidade é ainda mais grave. A dependência tecnológica pode se converter em dependência política.

A recuperação de controle democrático sobre a economia digital exige um conjunto articulado de medidas: regulação pública forte, laica e baseada em evidências, capaz de reduzir assimetrias informacionais e impor transparência algorítmica; governança democrática dos dados, tratando-os como bem comum e não como propriedade exclusiva de plataformas privadas; educação crítica em tecnologia, não reduzida ao ensino técnico, mas focada na compreensão social e política dos sistemas digitais; políticas de redistribuição e inclusão produtiva, evitando que o avanço tecnológico aprofunde desigualdades históricas, e fortalecimento de instituições democráticas clássicas, impedindo que decisões estratégicas sejam deslocadas para estruturas automatizadas e não eleitorais.

Essas ações não buscam frear o desenvolvimento tecnológico, mas reinscrever a técnica no campo da política, garantindo que as máquinas estejam a serviço dos seres humanos — e não o contrário. A digitalização completa do modo de produção inaugura uma etapa inédita do capitalismo, marcada pela centralidade dos algoritmos e pela proliferação de poderes invisíveis. Sua promessa de eficiência não pode obscurecer o fato de que, sem controle social, essa infraestrutura global pode ameaçar a própria ideia de democracia. O desafio contemporâneo, portanto, consiste em recuperar a primazia humana sobre processos automatizados, evitando que a racionalidade técnica se converta em novo despotismo. Em sociedades como a brasileira, onde a democracia ainda busca solidez, esse debate não é apenas acadêmico: é um imperativo histórico.


Referencias bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
O’NEIL, Cathy. Armas de destruição matemática: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2020.
PASQUALE, Frank. A sociedade da caixa-preta: algoritmos, big data e inteligência artificial. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2021.
SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

 

 


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