A digitalização integral da economia — desde a produção industrial até o consumo cotidiano mediado por plataformas — inaugura um novo regime de poder que ultrapassa os limites tradicionais do capitalismo industrial. O que está em curso não é apenas a substituição de máquinas por máquinas mais inteligentes, mas a constituição de um modo de produção algorítmico, baseado em decisões automatizadas, opacidades técnicas e novas formas de concentração de poder. Esse processo gera riscos democráticos inéditos: erosão do controle social, fragilização das instituições, formação de elites tecnológicas invisíveis e aprofundamento das desigualdades estruturais. No caso brasileiro, tais tensões são ampliadas pelo caráter incompleto de nosso processo democrático e pela fragilidade histórica das instituições de participação popular.
Assim, compreender a
emergência dessa hegemonia digital e suas contradições se torna urgente para
pensar não apenas o futuro da economia, mas o futuro da própria democracia.
Antes de avançar para a análise, é necessário formular algumas questões que
orientam o debate. Quais mecanismos da economia digitalizada concentram poder
de decisão fora do alcance democrático? Em que medida algoritmos e plataformas
moldam comportamentos, escolhas e valores sem mediação consciente dos cidadãos?
Como a lógica produtiva guiada por IA tende a reforçar desigualdades econômicas
e simbólicas já existentes no Brasil? Quais são as contradições internas do
capitalismo algorítmico que tensionam a promessa de eficiência e bem-estar? Como
recuperar o controle social e institucional sobre processos automatizados que
operam sem transparência nem accountability?
II
Se por um lado a economia digitalizada representa uma das
mais expressivas inovações técnicas deste século, por outro constitui um risco
profundo para processos democráticos ainda em consolidação, como o brasileiro.
A introdução da inteligência artificial nos mecanismos de produção, circulação,
vigilância e decisão econômica cria elites técnicas opacas, compostas não
apenas por especialistas humanos, mas sobretudo por sistemas algorítmicos que
operam sem rosto, sem responsabilidade política e sem vínculo com o bem comum.
Essas elites não são simplesmente grupos profissionais; são
infraestruturas inteiras que se tornam indispensáveis ao funcionamento da
sociedade. O problema não está apenas na automação, mas no deslocamento do centro
de comando da vida social para estruturas técnicas governadas por corporações
globais. A democracia, construída sobre a ideia moderna de soberania popular,
passa a conviver com uma soberania paralela: a soberania dos dados, exercida
pelos donos dos sistemas que capturam, processam e preveem comportamentos.
A hegemonia digital introduz contradições severas no modo de
produção capitalista. De um lado, promete eficiência, redução de custos e
expansão do lucro; de outro, converte trabalhadores em resíduos funcionais,
substituíveis e continuamente avaliados por métricas que ignoram dimensões
humanas fundamentais — criatividade, cooperação, solidariedade. O capitalismo
algorítmico tende a reduzir a complexidade humana à previsibilidade
computacional, o que gera tensões profundas com ideais de felicidade, emancipação
e autonomia.
A contradição fundamental emerge da própria lógica que
sustenta o sistema: a busca infinita por otimização. A IA não opera com
categorias éticas, mas com métricas. Isso implica que valores humanos —
dignidade, liberdade, bem-estar — tornam-se ruídos estatísticos. É essa
dissociação entre racionalidade técnica e racionalidade humana que produz o que
podemos chamar de hegemonia inumana do modo de produção digital.
Além disso, o caráter transnacional das plataformas
restringe drasticamente a capacidade dos Estados nacionais de regular o setor.
Em países como o Brasil, onde a democracia ainda enfrenta disputas internas
entre projetos autoritários e emancipatórios, essa vulnerabilidade é ainda mais
grave. A dependência tecnológica pode se converter em dependência política.
A recuperação de controle
democrático sobre a economia digital exige um conjunto articulado de medidas: regulação
pública forte, laica e baseada em evidências, capaz de reduzir assimetrias
informacionais e impor transparência algorítmica; governança democrática dos
dados, tratando-os como bem comum e não como propriedade exclusiva de
plataformas privadas; educação crítica em tecnologia, não reduzida ao ensino
técnico, mas focada na compreensão social e política dos sistemas digitais; políticas
de redistribuição e inclusão produtiva, evitando que o avanço tecnológico
aprofunde desigualdades históricas, e fortalecimento de instituições
democráticas clássicas, impedindo que decisões estratégicas sejam deslocadas
para estruturas automatizadas e não eleitorais.
Essas ações não buscam frear o desenvolvimento tecnológico,
mas reinscrever a técnica no campo da política, garantindo que as máquinas
estejam a serviço dos seres humanos — e não o contrário. A digitalização
completa do modo de produção inaugura uma etapa inédita do capitalismo, marcada
pela centralidade dos algoritmos e pela proliferação de poderes invisíveis. Sua
promessa de eficiência não pode obscurecer o fato de que, sem controle social,
essa infraestrutura global pode ameaçar a própria ideia de democracia. O
desafio contemporâneo, portanto, consiste em recuperar a primazia humana sobre
processos automatizados, evitando que a racionalidade técnica se converta em
novo despotismo. Em sociedades como a brasileira, onde a democracia ainda busca
solidez, esse debate não é apenas acadêmico: é um imperativo histórico.
Referencias bibliográficas
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DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a
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desigualdade e ameaça a democracia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2020.
PASQUALE, Frank. A sociedade da caixa-preta: algoritmos, big data e
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Literária, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2021.
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