23.12.12
Educar para qual sociedade? Humanística, republicana e democrática ou para uma sociedade de homens “alfa” e “ípsilon”?
Na história da República brasileira, a educação como direito de todos, inspirada em princípios de liberdade e em ideais de solidariedade humana, é bem recente em comparação, por exemplo, com países da Europa. Aqui entre nós foi inscrita pela primeira vez na Constituição do Brasil de 1946. Apenas a partir daí é que o ensino primário tornou-se obrigatório e gratuito, oferecido desta forma pelo Estado e pelas empresas industriais, comerciais e agrícolas com mais de cem trabalhadores.
A Lei de Diretrizes e Bases – Lei 4024 de 1961 – que complementou a Constituição de 1946 foi o instrumento legal encarregado de explicitar as finalidades da educação nacional para o período de democratização que se iniciava após a ditadura do Estado Novo varguista. O projeto de uma nova sociabilidade pressupunha um cidadão que fosse compreendedor dos seus direitos e deveres, respeitador da dignidade e das liberdades fundamentais do homem, e fortalecedor da unidade nacional e da solidariedade nacional. Os processos educativos escolares deveriam, por conseguinte, contribuir para desenvolver integralmente a sua personalidade e as suas formas de participar na obra do bem comum, despido de preconceitos sociais, filosóficos, políticos e religiosos.
A Constituição Federal de 1946 e a LDB de 1961, pilares fundamentais para a democratização do Brasil, traduziam o credo republicano segundo o qual a educação deve estar comprometida com o “projeto de autonomia do cidadão como titular de direitos e fonte do poder republicano”, segundo nos informa Luiz Gonzaga Belluzzo em excelente artigo publicado na revista Carta Capital, edição de setembro de 2012.
A ditadura que se instaurou a partir de 1964 não apenas se encarregou de rasgar ambos os documentos e interromper o processo de redemocratização do país, mas também tratou imediatamente de abastardar os “valores originais do humanismo iluminista”, básicos para a República e Democracia. Seu projeto de educação se propôs a desenvolver as potencialidades do educando para qualificá-lo para o trabalho e para uma cidadania restringida pela Lei de Segurança Nacional e pelas exigências do processo sociometabólico do capital.
A Constituição Cidadã de 1988, em seu esforço de varrer o autoritarismo hegemônico do período de 1964-1984, retomou o ideal de educação humanista e republicano. Ela se inspirou nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, e se baseou em princípios de igualdade de condições para acesso e permanência na escola, pluralismo de ideias, liberdade e tolerância, gratuidade de ensino de qualidade, gestão democrática do ensino público e valorização do profissional da educação escolar. Deixou, entretanto, de defender diversos flancos nos quais se aninham e proliferam hoje em dia os especialistas, técnicos e arrivistas educacionais produtores de “um exército de subjetividades mutiladas”, segundo a expressão de Belluzzo. Estes são os mesmos que derramam qualificações e certificados esvaziados de capacidades de compreensão do mundo, as quais, ao mesmo tempo, “pauperizam as mentalidades e massacram a capacidade crítica”. O ideal de educação está sendo reduzido à qualificação para o trabalho, consumo e vivência numa sociedade produtiva e competitiva, enquanto os cidadãos são apartados da formulação das políticas públicas e transformados em simples trabalhadores de execução. Os cidadãos cada vez mais podem menos na condição de “indivíduos médios”.
A educação, abastardada como valor humanístico e republicano, vem sendo atrelada à marcha do progresso e tornando-se funcionalista; seu ideal passa a ser o de preparação de todos para integrar a sociedade capitalista atual e diminuir a exclusão de amplos setores do mercado de trabalho e de consumo. A escola básica, por sua vez, vem sendo reformada para harmonizar-se com o compasso do novo padrão de desenvolvimento científico, tecnológico e de acumulação de capital.
A classe média tradicional e os segmentos emergentes das classes populares, por sua vez, tratam de se deixarem encantar com as promessas de uma educação de qualidade subsumida por esta racionalidade mercadológica. Desprezam a educação pública, laica, gratuita e de qualidade social para matricular os seus filhos em dispendiosos educandários privados, a grande maioria deles de qualidade duvidosa.
O IDEB 2012 – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – demonstra que o grande grupo massivo de escolas frequentado pela classe média e segmentos emergentes, sequer é capaz de superar em larga medida as médias das escolas públicas estaduais, mas mesmo assim esta classe e segmentos emergentes insistem na afirmação e conservação das aparências parecendo não se incomodar com os cortes no orçamento familiar e demais sacrifícios a que são obrigadas. A alienação de ambas impede-lhes o uso da razão crítica em defesa da educação pública do cidadão omnilateral como direito social e dever do Estado, e da retomada do processo de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e republicana.
A mais recente promessa da razão neoliberal para a educação nacional é a de que esteja entre as melhores do mundo no Bicentenário da Independência, em 2022. Resta-nos, porém, questionar: a ênfase atual em Linguagem, Matemática e Ciências será suficiente para construir um legado educacional que supere a sociedade dos homens “alfa” e “ypsilon” que nos foi descrita por Huxley na obra Admirável Mundo Novo e para a qual nos encaminhamos com o abastardamento do ideal de educação humanista, republicano e democrático?
9.12.12
Ensino Superior e Qualidade. Qual qualidade?
(Entrevista concedida a Renato Deccache, publicada no Caderno Educação, na edição de 11 de dezembro de 2012)
FOLHA DIRIGIDA — De acordo com os dados do IGC divulgados na última quinta, 30% das instituições de ensino superior obtiveram IGC 1 ou 2, em uma escala que varia de 1 a 5. A maior parte destas instituições é do setor privado. Este resultado o surpreende? Ou evidencia o quadro da qualidade (ou falta dela) no ensino superior do país?
ZACARIAS GAMA – A única surpresa neste resultado é o esforço de diversas Instituições de Ensino Superior particulares (IES) terem saído dos níveis 1 e 2. Mas isto ainda quer dizer pouca coisa, na medida em que o IGC é um índice composto. Ele se compõe de três elementos: rendimento dos alunos (55%), Infraestrutura (15%) e corpo docente (15%). Uma pequena melhoria em qualquer dos componentes melhora quantitativamente o IGC final. Mas é preciso muita cautela antes afirmar positivamente que a oferta de ensino nas IES privadas está melhorando significativamente. É possível que os estudantes tenham sido adestrados para o Exame Nacional de Desempenho, como é comum nos cursos preparatórios para os vestibulares das IES públicas; que determinadas obras infraestruturais tenham sido feitas para melhorar o componente do IGC; e ter havido a contratação de muitos mestres e doutores. Mas é preciso ainda questionar tanto as obras físicas quanto a qualidade dos mestres e doutores. O derrame de títulos obtidos em instituições privadas é estarrecedor. Grande parte delas nem sempre têm recomendação da CAPES, a agência reguladora dos cursos de pós-graduação do País.
FOLHA DIRIGIDA — O governo deveria ser mais duro com instituições de desempenho ruim? O que deveria ser feito?
ZACARIAS GAMA - Claro que sim. O derrame de títulos de graduação e pós-graduação tem impacto direto no mercado de diplomas, forçando as remunerações para baixo, incidindo sobre a qualidade da oferta de ensino e sobre a própria segurança da sociedade. A OAB vive denunciando a qualidade dos jovens advogados que pleiteiam a licença para advogar. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo recentemente também veio a público para denunciar a quantidade de jovens médicos reprovados em exames para obtenção da licença profissional. Muito embora o magistério não tenha exames semelhantes, os concursos das diversas secretarias estaduais e municipais de educação também têm muitos candidatos reprovados oriundos de instituições particulares de ensino superior; os candidatos que são aprovados têm muitas dificuldades para progredir como professores.
FOLHA DIRIGIDA — A justificativa mais comum das instituições mal avaliadas é que o desempenho no ENADE tem um peso muito grande no IGC. E, como, segundo eles, os alunos não têm interesse em responder bem a prova, a instituição acaba prejudicada. Em sua opinião, esta justificativa é válida? Por quê?
ZACARIAS GAMA – Esta justifica não tem validade. Não há necessidade de diminuir este percentual. Cabe a estas instituições desenvolver modos de superação, isto é, de oferecer melhor qualidade de ensino. No atletismo, por exemplo, o atleta precisa se esforçar para ultrapassar determinada marca. Houvesse diminuições de marcas, teríamos os belos esforços de superação e os recordes que nos surpreendem? Quanto à questão do interesse penso que, em se tratando de avaliação dos cursos das Instituições de Ensino Superior não ter interesse é uma coisa, obter baixo desempenho no ENADE é coisa de outra natureza. A falta de interesse estudantil se reflete nas faltas ao exame. O baixo desempenho, ao contrário, está diretamente relacionado com a qualidade de respostas dos estudantes que fizeram as provas. É o conjunto destas notas que é computado e isto somente tem a ver com a qualidade de ensino ofertada. As IES particulares e públicas com baixo IGC, por esta razão, precisam ser objeto de investigação e intervenção do MEC, INEP e CAPES. A voracidade gananciosa de realizar fortunas com a oferta de ensino em instituições privadas precisa ser contida imediatamente. Estes resultados obtidos junto a 8.665 cursos das áreas de ciências exatas e dos eixos tecnológicos de controle e processos industriais, informação e comunicação, infraestrutura e produção industrial demonstram os riscos aos quais estão expostas estas áreas e os seus eixos. Como sustentar nosso desenvolvimento atual e futuro? Precisaremos importar esta mão de obra qualificada? Que prejuízos representam para a sociedade e para a nossa própria segurança nacional?
FOLHA DIRIGIDA — As instituições públicas, em geral, obtêm melhores resultados que as do setor privado, no IGC. A seu ver, por que isto acontece? O que existe nas instituições públicas que ainda falta no setor privado?
ZACARIAS GAMA – Apesar das campanhas ideológicas contra as Instituições de Ensino Superior públicas, das pressões privatistas que dificultam repasses de verbas, da incompreensão das nossas autoridades sobre a importância da centralidade que elas devem ter em um projeto de construção de uma nação forte e soberana e do abandono a que estão relegadas, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão que existe nelas é uma das chaves deste sucesso. Outras chaves são a dedicação exclusiva, vital para o desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão. os programas de capacitação docente (PROCADs), as licenças para estudos de pós-graduação stricto sensu no Brasil e no Exterior, os financiamentos para estudos e pesquisas etc. Enquanto estas chaves existem e estão a disposição na IES públicas somente em poucas IES elas existem e podem ser acessadas. Nelas a ideia de lucratividade é o que predomina e o até o uso de novas tecnologias nas práticas de ensino são restritivas. Os tabletes que oferecem “gratuitamente” no ato das matrículas, por exemplo, restringem os estudantes aos seus conteúdos das mesma forma que as famosas apostilas usadas em cursos de adestramento para aprovação em concursos e vestibulares.
FOLHA DIRIGIDA — De acordo com os dados do IGC divulgados na última quinta, 30% das instituições de ensino superior obtiveram IGC 1 ou 2, em uma escala que varia de 1 a 5. A maior parte destas instituições é do setor privado. Este resultado o surpreende? Ou evidencia o quadro da qualidade (ou falta dela) no ensino superior do país?
ZACARIAS GAMA – A única surpresa neste resultado é o esforço de diversas Instituições de Ensino Superior particulares (IES) terem saído dos níveis 1 e 2. Mas isto ainda quer dizer pouca coisa, na medida em que o IGC é um índice composto. Ele se compõe de três elementos: rendimento dos alunos (55%), Infraestrutura (15%) e corpo docente (15%). Uma pequena melhoria em qualquer dos componentes melhora quantitativamente o IGC final. Mas é preciso muita cautela antes afirmar positivamente que a oferta de ensino nas IES privadas está melhorando significativamente. É possível que os estudantes tenham sido adestrados para o Exame Nacional de Desempenho, como é comum nos cursos preparatórios para os vestibulares das IES públicas; que determinadas obras infraestruturais tenham sido feitas para melhorar o componente do IGC; e ter havido a contratação de muitos mestres e doutores. Mas é preciso ainda questionar tanto as obras físicas quanto a qualidade dos mestres e doutores. O derrame de títulos obtidos em instituições privadas é estarrecedor. Grande parte delas nem sempre têm recomendação da CAPES, a agência reguladora dos cursos de pós-graduação do País.
FOLHA DIRIGIDA — O governo deveria ser mais duro com instituições de desempenho ruim? O que deveria ser feito?
ZACARIAS GAMA - Claro que sim. O derrame de títulos de graduação e pós-graduação tem impacto direto no mercado de diplomas, forçando as remunerações para baixo, incidindo sobre a qualidade da oferta de ensino e sobre a própria segurança da sociedade. A OAB vive denunciando a qualidade dos jovens advogados que pleiteiam a licença para advogar. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo recentemente também veio a público para denunciar a quantidade de jovens médicos reprovados em exames para obtenção da licença profissional. Muito embora o magistério não tenha exames semelhantes, os concursos das diversas secretarias estaduais e municipais de educação também têm muitos candidatos reprovados oriundos de instituições particulares de ensino superior; os candidatos que são aprovados têm muitas dificuldades para progredir como professores.
FOLHA DIRIGIDA — A justificativa mais comum das instituições mal avaliadas é que o desempenho no ENADE tem um peso muito grande no IGC. E, como, segundo eles, os alunos não têm interesse em responder bem a prova, a instituição acaba prejudicada. Em sua opinião, esta justificativa é válida? Por quê?
ZACARIAS GAMA – Esta justifica não tem validade. Não há necessidade de diminuir este percentual. Cabe a estas instituições desenvolver modos de superação, isto é, de oferecer melhor qualidade de ensino. No atletismo, por exemplo, o atleta precisa se esforçar para ultrapassar determinada marca. Houvesse diminuições de marcas, teríamos os belos esforços de superação e os recordes que nos surpreendem? Quanto à questão do interesse penso que, em se tratando de avaliação dos cursos das Instituições de Ensino Superior não ter interesse é uma coisa, obter baixo desempenho no ENADE é coisa de outra natureza. A falta de interesse estudantil se reflete nas faltas ao exame. O baixo desempenho, ao contrário, está diretamente relacionado com a qualidade de respostas dos estudantes que fizeram as provas. É o conjunto destas notas que é computado e isto somente tem a ver com a qualidade de ensino ofertada. As IES particulares e públicas com baixo IGC, por esta razão, precisam ser objeto de investigação e intervenção do MEC, INEP e CAPES. A voracidade gananciosa de realizar fortunas com a oferta de ensino em instituições privadas precisa ser contida imediatamente. Estes resultados obtidos junto a 8.665 cursos das áreas de ciências exatas e dos eixos tecnológicos de controle e processos industriais, informação e comunicação, infraestrutura e produção industrial demonstram os riscos aos quais estão expostas estas áreas e os seus eixos. Como sustentar nosso desenvolvimento atual e futuro? Precisaremos importar esta mão de obra qualificada? Que prejuízos representam para a sociedade e para a nossa própria segurança nacional?
FOLHA DIRIGIDA — As instituições públicas, em geral, obtêm melhores resultados que as do setor privado, no IGC. A seu ver, por que isto acontece? O que existe nas instituições públicas que ainda falta no setor privado?
ZACARIAS GAMA – Apesar das campanhas ideológicas contra as Instituições de Ensino Superior públicas, das pressões privatistas que dificultam repasses de verbas, da incompreensão das nossas autoridades sobre a importância da centralidade que elas devem ter em um projeto de construção de uma nação forte e soberana e do abandono a que estão relegadas, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão que existe nelas é uma das chaves deste sucesso. Outras chaves são a dedicação exclusiva, vital para o desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão. os programas de capacitação docente (PROCADs), as licenças para estudos de pós-graduação stricto sensu no Brasil e no Exterior, os financiamentos para estudos e pesquisas etc. Enquanto estas chaves existem e estão a disposição na IES públicas somente em poucas IES elas existem e podem ser acessadas. Nelas a ideia de lucratividade é o que predomina e o até o uso de novas tecnologias nas práticas de ensino são restritivas. Os tabletes que oferecem “gratuitamente” no ato das matrículas, por exemplo, restringem os estudantes aos seus conteúdos das mesma forma que as famosas apostilas usadas em cursos de adestramento para aprovação em concursos e vestibulares.
5.12.12
Dilemas da Universidade. Entrevista - Jornal O Globo
O GLOBO - O atual modelo da universidade brasileira é oriundo ainda da reforma universitária na Ditadura Militar. A própria universidade tem dificuldade em se discutir? Quais outros fatores precisam ser levados em conta para compreender a falta de inovação no que diz respeito a própria organização das instituições, currículos etc.?
ZG - Não diria que a Universidade tem dificuldade em se discutir. Sua dinamicidade impõe constantes discussões acerca de sua função social. A grande discussão atual é sobre o modelo de Universidade e para qual sociabilidade. Há uma grande tensão nesta discussão em função das pressões provenientes da sociedade pautada pelo mercado. Muitos aceitam esta pauta defendendo a universidade pragmática, inovadora, a serviço das demandas colocadas pelo mercado. Estes acreditam que a Universidade inovadora seja capaz de acelerar o crescimento nacional e aumentar os indicadores de inovação, ciência e tecnologia. Particularmente não acredito nisto. Penso que é o desenvolvimento que cria as condições para que ela seja inovadora, e para tanto é preciso disponibilizar-lhe recursos, sem, entretanto, prejudicar as suas atividades meio e fins voltadas para o social. Mais objetivamente: se a universidade brasileira é acusada de não ser inovadora, penso ser necessário verificar quanto de recursos ela dispõe para investir em inovação, ciência e tecnologia.
O GLOBO - A reforma universitária realizada na década de 1960 rompeu com o modelo de cátedras e introduziu a organização por departamentos. Houve algum avanço nesta mudança ou só há pontos negativos? Quais são os maiores problemas do modelo implantado na época e seguido até hoje com poucas modificações?
ZG - A reforma em questão subordinou definitivamente a universidade brasileira ao modelo de universidades anglo-saxônicas. As cátedras eram acusadas de personalistas etc. Positivamente os departamentos dão mais dinamicidade à vida universitária; eles democratizam-na. O problema, segundo minha perspectiva, não está na organização estrutural da universidade, muito embora ela sempre possa ser objeto de novas melhorias, de aperfeiçoamentos. Para mim o problema deve ser deslocado para a compreensão que os nossos governantes têm sobre a Universidade e o papel estratégico que ela pode ter no desenvolvimento da sociedade. As greves deste ano, nas federais e estaduais, demonstram que essa compreensão é estreita. Acredito que para muitos dos nossos governantes a Universidade é sinônimo de um grande colégio, aliás, bastante problemático e reivindicador.
O GLOBO - Na Europa, principalmente com o Tratado de Bologna, encurtou-se a duração dos cursos de graduação, entre outras medidas. As medidas foram tomadas num contexto em que o acesso ao ensino superior é muito mais fácil do que no Brasil, onde permanece excludente. Este modelo poderia ser aproveitado? Quais são os problemas trazidos por ele também?
ZG - O Processo de Bolonha que resulta deste Tratado realmente encurtou a duração dos cursos de graduação e pós-graduação. Ele estabeleceu a fórmula 3-2-3, isto é, 03 anos para a graduação, 02 para o mestrado e 03 para o doutoramento; isto sem dúvida representa o aligeiramento da formação universitária. São menos dois anos em relação ao Brasil. Todos os países da União Europeia estão se adaptando ao Processo. Mas as contestações já começaram a aparecer. São muitas as contestações que este modelo enfrenta perante o Movimento Estudantil e Docente, particularmente em um contexto de recessão econômica. Já houve grandes movimentos de rua na Inglaterra, Itália, Portugal, Espanha e Alemanha. Todos fazem grandes restrições ao Processo de Bolonha. Este Processo, de fato, por um lado cria este aligeiramento que barateia a manutenção das universidades para o Estado, e por outro despeja no mercado um enxame de diplomados que não encontra trabalho e emprego na União Europeia forçando a migração. A UE hoje em dia é exportadora de mão de obra altamente qualificada. Contam-se às centenas os emigrantes para outros países onde há oportunidade de trabalho e emprego. Em meu ponto de vista, não precisamos importar modelos, especialmente o de Bolonha para a reforma das nossas universidades. O que precisamos, insisto, é situar estrategicamente a universidade no centro de nosso projeto de desenvolvimento, com independência e sustentabilidade.
O GLOBO - No Brasil, as principais experiências de inovações curriculares e de organização da universidade se deram dentro do âmbito do projeto "Universidade Nova". Este é caracterizado, tanto na UFBA quanto na UFABC, por bacharelados interdisciplinares de cunho generalista. A especialização profissional seria realizada em uma etapa posterior, assim como a formação de licenciatura ou de pesquisador (mestrado e doutorado). Como senhor avalia essas iniciativas?
ZG - A ideia de ciclos básicos interdisciplinares é interessante, incluindo a interdisciplinarização dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Estou ligado a um Programa de Pós-graduação Interdisciplinar e a avaliação que fazemos é que há grandes vantagens para a produção de novos conhecimentos em contextos mais amplos. Contudo, é preciso que o desenho de cursos interdisciplinares não seja pautado pela redução de custos. Os processos de educação, de quaisquer níveis e modalidades, jamais devem ser compreendidos como gastos, mas sim como investimentos não apenas na formação profissional, como também na formação do cidadão.
O GLOBO - A universidade brasileira vive um momento de abertura para diferentes classes sociais, com a aprovação das ações afirmativas em todas as instituições federais. A universidade precisa se adaptar a essa nova realidade?
ZG - As ações afirmativas são praticadas nas universidades públicas, com as cotas sociais representando a correção parcial de injustiças sociais e históricas. Digo parcial, porque só elas não bastam. É preciso que o país corrija a sua distribuição de riquezas, restringindo os processos de concentração nas mãos de poucos. Considero uma pena que tais ações não sejam universalizadas para todo o sistema de ensino superior – público e privado, laico e religioso. Além disso, cabe perguntar: a adaptação da universidade aos cotistas significa o quê? Organizar-se como universidade para pobres, negros etc.? Dicotomizar o mundo universitário, com instituições diferenciadas para pobres e ricos? Isto não seria preconceituoso? Penso que se a universidade tiver centralidade para responder às necessidades criadas pela sociedade, com os investimentos necessários à carreira docente e ao ensino, pesquisa e extensão esta questão perde o peso que vem adquirindo em alguns setores elitistas da sociedade que ainda guardam ranços da sociedade senhorial. Nenhuma universidade, pública ou particular, precisa de qualquer adaptação para dar respostas às ações afirmativas. A riqueza delas está exatamente na sua composição plural e na pluralidade de conhecimentos que é capaz de produzir para o nosso desenvolvimento atual e futuro. O que é preciso é que a universidade pública seja compreendida em todas as suas dimensões e como importante instituição, gratuita e de qualidade para a formação do cidadão. A universidade laica, autônoma, gratuita e de qualidade mantida pelo Estado está historicamente comprometida com a autonomia do cidadão, titular de direitos e fonte do poder republicano.
(Esta entrevista não foi publicada na íntegra. Partes dela foram aproveitadas pelo jornalista Leonardo Cazes em matéria publica na edição do dia 29.09.2012 com o título Dilema da Universidade, no Caderno Prosa)
ZG - Não diria que a Universidade tem dificuldade em se discutir. Sua dinamicidade impõe constantes discussões acerca de sua função social. A grande discussão atual é sobre o modelo de Universidade e para qual sociabilidade. Há uma grande tensão nesta discussão em função das pressões provenientes da sociedade pautada pelo mercado. Muitos aceitam esta pauta defendendo a universidade pragmática, inovadora, a serviço das demandas colocadas pelo mercado. Estes acreditam que a Universidade inovadora seja capaz de acelerar o crescimento nacional e aumentar os indicadores de inovação, ciência e tecnologia. Particularmente não acredito nisto. Penso que é o desenvolvimento que cria as condições para que ela seja inovadora, e para tanto é preciso disponibilizar-lhe recursos, sem, entretanto, prejudicar as suas atividades meio e fins voltadas para o social. Mais objetivamente: se a universidade brasileira é acusada de não ser inovadora, penso ser necessário verificar quanto de recursos ela dispõe para investir em inovação, ciência e tecnologia.
O GLOBO - A reforma universitária realizada na década de 1960 rompeu com o modelo de cátedras e introduziu a organização por departamentos. Houve algum avanço nesta mudança ou só há pontos negativos? Quais são os maiores problemas do modelo implantado na época e seguido até hoje com poucas modificações?
ZG - A reforma em questão subordinou definitivamente a universidade brasileira ao modelo de universidades anglo-saxônicas. As cátedras eram acusadas de personalistas etc. Positivamente os departamentos dão mais dinamicidade à vida universitária; eles democratizam-na. O problema, segundo minha perspectiva, não está na organização estrutural da universidade, muito embora ela sempre possa ser objeto de novas melhorias, de aperfeiçoamentos. Para mim o problema deve ser deslocado para a compreensão que os nossos governantes têm sobre a Universidade e o papel estratégico que ela pode ter no desenvolvimento da sociedade. As greves deste ano, nas federais e estaduais, demonstram que essa compreensão é estreita. Acredito que para muitos dos nossos governantes a Universidade é sinônimo de um grande colégio, aliás, bastante problemático e reivindicador.
O GLOBO - Na Europa, principalmente com o Tratado de Bologna, encurtou-se a duração dos cursos de graduação, entre outras medidas. As medidas foram tomadas num contexto em que o acesso ao ensino superior é muito mais fácil do que no Brasil, onde permanece excludente. Este modelo poderia ser aproveitado? Quais são os problemas trazidos por ele também?
ZG - O Processo de Bolonha que resulta deste Tratado realmente encurtou a duração dos cursos de graduação e pós-graduação. Ele estabeleceu a fórmula 3-2-3, isto é, 03 anos para a graduação, 02 para o mestrado e 03 para o doutoramento; isto sem dúvida representa o aligeiramento da formação universitária. São menos dois anos em relação ao Brasil. Todos os países da União Europeia estão se adaptando ao Processo. Mas as contestações já começaram a aparecer. São muitas as contestações que este modelo enfrenta perante o Movimento Estudantil e Docente, particularmente em um contexto de recessão econômica. Já houve grandes movimentos de rua na Inglaterra, Itália, Portugal, Espanha e Alemanha. Todos fazem grandes restrições ao Processo de Bolonha. Este Processo, de fato, por um lado cria este aligeiramento que barateia a manutenção das universidades para o Estado, e por outro despeja no mercado um enxame de diplomados que não encontra trabalho e emprego na União Europeia forçando a migração. A UE hoje em dia é exportadora de mão de obra altamente qualificada. Contam-se às centenas os emigrantes para outros países onde há oportunidade de trabalho e emprego. Em meu ponto de vista, não precisamos importar modelos, especialmente o de Bolonha para a reforma das nossas universidades. O que precisamos, insisto, é situar estrategicamente a universidade no centro de nosso projeto de desenvolvimento, com independência e sustentabilidade.
O GLOBO - No Brasil, as principais experiências de inovações curriculares e de organização da universidade se deram dentro do âmbito do projeto "Universidade Nova". Este é caracterizado, tanto na UFBA quanto na UFABC, por bacharelados interdisciplinares de cunho generalista. A especialização profissional seria realizada em uma etapa posterior, assim como a formação de licenciatura ou de pesquisador (mestrado e doutorado). Como senhor avalia essas iniciativas?
ZG - A ideia de ciclos básicos interdisciplinares é interessante, incluindo a interdisciplinarização dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Estou ligado a um Programa de Pós-graduação Interdisciplinar e a avaliação que fazemos é que há grandes vantagens para a produção de novos conhecimentos em contextos mais amplos. Contudo, é preciso que o desenho de cursos interdisciplinares não seja pautado pela redução de custos. Os processos de educação, de quaisquer níveis e modalidades, jamais devem ser compreendidos como gastos, mas sim como investimentos não apenas na formação profissional, como também na formação do cidadão.
O GLOBO - A universidade brasileira vive um momento de abertura para diferentes classes sociais, com a aprovação das ações afirmativas em todas as instituições federais. A universidade precisa se adaptar a essa nova realidade?
ZG - As ações afirmativas são praticadas nas universidades públicas, com as cotas sociais representando a correção parcial de injustiças sociais e históricas. Digo parcial, porque só elas não bastam. É preciso que o país corrija a sua distribuição de riquezas, restringindo os processos de concentração nas mãos de poucos. Considero uma pena que tais ações não sejam universalizadas para todo o sistema de ensino superior – público e privado, laico e religioso. Além disso, cabe perguntar: a adaptação da universidade aos cotistas significa o quê? Organizar-se como universidade para pobres, negros etc.? Dicotomizar o mundo universitário, com instituições diferenciadas para pobres e ricos? Isto não seria preconceituoso? Penso que se a universidade tiver centralidade para responder às necessidades criadas pela sociedade, com os investimentos necessários à carreira docente e ao ensino, pesquisa e extensão esta questão perde o peso que vem adquirindo em alguns setores elitistas da sociedade que ainda guardam ranços da sociedade senhorial. Nenhuma universidade, pública ou particular, precisa de qualquer adaptação para dar respostas às ações afirmativas. A riqueza delas está exatamente na sua composição plural e na pluralidade de conhecimentos que é capaz de produzir para o nosso desenvolvimento atual e futuro. O que é preciso é que a universidade pública seja compreendida em todas as suas dimensões e como importante instituição, gratuita e de qualidade para a formação do cidadão. A universidade laica, autônoma, gratuita e de qualidade mantida pelo Estado está historicamente comprometida com a autonomia do cidadão, titular de direitos e fonte do poder republicano.
(Esta entrevista não foi publicada na íntegra. Partes dela foram aproveitadas pelo jornalista Leonardo Cazes em matéria publica na edição do dia 29.09.2012 com o título Dilema da Universidade, no Caderno Prosa)
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