21.4.20
20.4.20
A Covid-19, a pandemia e a educação brasileira: mudanças à vista?
Grandes eventos históricos
foram determinantes para marcar o início das idades Média, Moderna e Contemporânea.
A ruptura que impuseram levou à criação de novas civilizações. Todas as nossas
atenções se voltam para eles desde quando somos ainda crianças de escola
básica. Nem sempre, contudo, olhamos para eventos menores com os mesmos olhos e
a mesma atenção. Sabemos, por exemplo, da importância da Revolução Industrial
inglesa do século XVIII, mas pouco nos interessamos pelas transformações que
imprimiu ao modo de viver e ser da contemporaneidade. Devemos ao êxodo rural inglês
que provocou as primeiras ações de saneamento das cidades em consequência da
superpopulação urbana e a escassez de produtos agrícolas que forçou a
importação de proteína animal da Austrália e Nova Zelândia e o inevitável
surgimento de navios frigoríficos. A partir da Revolução Francesa, para além da
derrubada de tronos e altares, foram outras e melhores as relações entre os
cidadãos, entre eles e o Estado e o respeito aos direitos dos cidadãos. Os
grandes efeitos dos grandes acontecimentos, e até de alguns de menor
envergadura, contudo, estão cantados em verso e prosa e não é muito difícil
elencarmos muitos deles.
O grande Eric
Hobsbawm que se dedicou a estudar as modificações que as Revoluções causaram em
diversos lugares, reconheceu a importância de grandes eventos para marcar o início
de um novo tempo e não pensou duas vezes em atribuir à Primeira Guerra Mundial
o marco inicial do século XX. Muitos críticos já se insurgiram contra a
demarcação de novas eras por grandes eventos, alegando, por exemplo, que
ninguém se tornou moderno ou contemporâneo nos réveillons de 1543 e 1789 sem
considerar a gestação do novo no próprio ventre do velho. As contradições que
levam a novas civilizações, de fato, não nascem da noite para o dia, elas nem
sempre são rápidas enquanto vão criando a superação do velho e as condições de
sustentação do novo.
Se é difícil perceber
todos os elementos que conformam o novo quando temos em perspectiva grandes
eventos, imagina se o nosso objetivo é apreendê-los em eventos de menor
envergadura e profundidade. Ao pensar assim tenho em mira dois eventos com
sérias repercussões na sociedade brasileira e, em especial, sobre a educação
nacional. O primeiro foram os longos tempos de ditadura que vivemos (1964-1985)
e o segundo a pandemia atual que nos afeta a todos provocada pela Covid-19. Que
impactos tiveram e terão sobre a nossa educação escolar?
Os anos de ditadura
despertaram em grande maioria da população o ardente desejo de vida democrática
e liberdade. Ninguém mais suportava o tacão militar, o estado autoritário e o cerceamento
às liberdades naturais dos cidadãos. A explosão de gente nos comícios pelas
Diretas-Já permitia que fossemos para as ruas e exigíssemos de volta a nossa
liberdade e o regime democrático. Não prestamos atenção, porém, nos impactos de
tamanha mobilização sobre as estruturas escolares da época. E eles foram
grandes.
Os anos 1980 nas
escolas deixaram de ser de resistência aos cânones ditatoriais para serem de
fustigação aos elementos simbólicos e físicos que teimavam em sobreviver nas
dependências escolares. A sociedade política e progressista se levantaria para
construir uma nova realidade educacional no Brasil. Diversos governadores e
prefeitos assumiram grande protagonismo nesta construção. No campo da sociedade
civil, além dos movimentos sindicais docentes e outros, os pais reagiram e se
insurgiam enfáticos contra as disciplinas curriculares criadas durante o
governo militar, as famosas Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e
Educação Moral e Cívica (EMC). Exigiram que fossem banidas dos currículos
escolares. Eles, nas reuniões bimestrais e Associações de Pais, tornaram-se os
grandes arautos de um novo tempo e renegaram aquela escola autoritária,
excludente, antidemocrática, hierarquizada e reprodutivista. Seus filhos não
fizeram por menos, a ponto de traumatizar professores ao chamá-los de autoritários
ou equivalentes. A violência simbólica e física não demorou a ceder lugar a uma
escola mais humanizada, acolhedora e capaz de compreender as crianças e jovens.
E foi esta mesma geração de jovens que saiu às ruas, com as caras-pintadas,
gritando a plenos pulmões “Fora Collor” e “Cadeia para os Anões do Orçamento”.
Claro que a escola de
qualidade e referência social tão sonhada e inscrita na LDB de 1996 está longe
de ter saído do papel. Mas justiça seja feita, chegamos ao final dos anos 1990
com uma expansão da rede de escolas públicas jamais vista no país, quase
completa universalização do ensino fundamental, eleição de diretores, fundo
nacional da educação básica (FUNDEB), distribuição gratuita de livros didáticos
etc.
Agora vivemos estes
tempos de Covid-19 em pleno isolamento social com as aulas suspensas sine
die e a filharada em casa, poucos recebendo atividades à distância nos
computadores, laptops, tablets e smartphones. Que impactos já podem ser
percebidos nas nossas relações pedagógicas, que envolvem pais, professores,
alunos e escolas? Posso elencar alguns, observados em reações postadas em
plataformas das redes sociais e publicadas nas grandes mídias.
Recentemente chamou a
minha atenção a resposta de uma criança, talvez de 9 anos, respondendo à
seguinte questão: “Estamos em um momento de pandemia e alguns serviços deixaram
de ser prestados para conter o avanço do coronavírus. Desenhe e escreva qual é
o serviço que mais tem feito falta para a sua família e o porquê”. A resposta
foi a escola e o porquê chega a ser hilariante: “não é fácil ser aluno da minha
mãe”.
O que poderia ser uma
simples piada infantil muito engraçada tem elementos muito sérios. Primeiro
porque distingue as diferentes naturezas das mães e das professoras. As mães são preparadas para uma vida em
família com os seus filhos e círculo de amigos, não se preparam
profissionalmente como as professoras, não tem aulas de Pedagogia, Psicologia
Geral, Psicologia do Desenvolvimento e
da Aprendizagem, Didática e Literatura
Infantil etc. Nem tampouco são obedientes aos mesmos padrões éticos que devem
caracterizar o magistério e, muitas sequer já abriram o Estatuto da Criança e
do Adolescente, o famoso ECA. Certas mães podem ser e são excelentes
professoras e vice-versa, mas o critério que define as duas concepções e
competências são diferentes e irredutíveis.
Um segundo elemento, tem a ver com a atual
campanha de desmoralização e xingamentos aos docentes em favor do ensino
doméstico a ser realizado pelas famílias em suas próprias casas (“homeschooling”).
A pandemia o impôs compulsoriamente às famílias de todas as classes sociais e
gêneros. E a grande maioria está com os cabelos em pé sem saber como realizar
uma tarefa nada fácil. Recentemente o professor universitário Rodrigo Ratier
publicou em sua coluna no UOL Notícias um texto no qual chamou a atenção para o
impacto negativo da quarentena na campanha do homeschooling (Ratier, 2020)[1].
Nela, ele se coloca como pai incapaz de fazer sua filha de cinco anos realizar
uma tarefa escolar simples. Sente-se desesperado e despreparado para realizar
“uma missão que de longe parecia tão trivial, mas que de perto é um mistério
insondável: como diabos se faz para uma criança estudar?”. Acolher, dar bronca,
deixar quieto, começar de novo? Sua conclusão revela a medida do seu despreparo
e falta de estudos pedagógicos. Não é fácil nem qualquer um tem condições de
ser professor. Ele termina a sua coluna exortando a sociedade brasileira a
valorizar os educadores e educadoras e chama a atenção para as armadilhas
contidas na campanha pró-homeschooling.
Um terceiro elemento: pela primeira vez as
crianças e adolescentes poderão optar entre os pais e os professores. Terão
claramente a distinção entre explicadores de final de tarde ou de semana que
ajudam nas lições de casa e os seus professores de segunda a sexta, dos quais
costumam sentir falta em grandes interrupções escolares. Claro que há
professores dos quais querem distância, mas sentem falta daqueles que são
respondedores e, sobretudo, dos que parecem irmãos mais velhos que compreendem
e aplacam as suas angústias, como Bachelard descreveu os professores. Claro que
as diferenças entre casa e escola também emergem e se consolidam como
profundas, as escolas são espaços de trocas, cumplicidades, novas amizades,
aventuras e das últimas notícias de interesse.
As nossas crianças e jovens ao terem capacidade de comparar tendem a
valorizar mais os seus professores e perceber as diferenças entre o céu e a
terra.
Também não ficarão ilesas as relações entre
as escolas e os núcleos centrais e professores e alunos. A exigência de atender
o alunado por meio digital, apoio a distância, traz como novidade a
possibilidade de trocas e demais formas de interação a distância, a qual
dificilmente será deletada ao final da pandemia. Pela primeira vez há um canal
para dúvidas, instruções e aquisição de novos conhecimentos de forma mais
imediata e confiável, sem as inúmeras horas de navegação a esmo no ciberespaço
e as imprecisões do Google e da Wikipedia. Os tutoriais e fóruns haverão de
adquirir outras dimensões. Os professores também estão aprendendo a se
organizar e a debater online questões pertinentes à categoria, livres das
repressões de gestores, autoridades educacionais e até policiais. Esta nova
forma de organização conseguiu criar consenso para deter a determinação do
Núcleo Central – Secretaria de Educação – de oferecer educação a distância
obrigatória, computando-se normalmente os dias letivos e realizando práticas
avaliativas obrigatórias.
O fato é que estamos em um período de
transição e muitas contradições estão sendo expurgadas e colocadas a olhos nus.
O desmonte da saúde, por exemplo, é uma contradição que sobressai e mostra que
o seu sucateamento já deu com os burros n’água, a despeito de toda a literatura
do liberalismo clássico e do neoliberalismo de origem hayeckiana. O estado
mínimo, tão decantado por ambos, em literatura interminável, mostrou a sua
incapacidade de socorrer as pessoas de forma humanitária. Diante da pandemia, até
o poderoso império americano teve os
seus pés de barro descobertos e colocados à vista, a Covid-19 devasta a sua
população em um trimestre, em quantidade proporcionalmente superior à guerra do
Vietnã que durou 10 anos e ceifou mais de 55 mil jovens americanos.
Este momento de passagem histórica que
estamos vivendo, talvez esteja também, como diria Hobsbawm, marcando o início
real do século XXI. Não é impossível que esta pandemia esteja como a Primeira
Guerra Mundial assinalando o fim da civilização ocidental, individualista,
movida por cálculos utilitaristas e capaz de cultivar práticas e ações inumanas
que foi hegemônica até o presente. A saúde e a educação brasileira certamente
terão muito a ganhar.
Zacarias Gama
Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ
Publicado no jornal eletrônico Brasil 247
Disponível no site: https://www.brasil247.com/blog/a-covid-19-a-pandemia-e-a-educacao-brasileira-mudancas-a-vista
[1]
RATIER, R. Quarentena é a melhor propaganda possível contra o
homeschooling. 2020. Disponível no site: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/rodrigo-ratier/2020/04/06/quarentena-e-melhor-propaganda-possivel-contra-o-homeschooling.htm.
Acesso em abril de 2020.
19.4.20
Qual pizza prefiro: assada em forno elétrico ou a lenha?
Tem me chamado a atenção o modo como alguns países e cidades conseguem oferecer educação de qualidade com referência social para todos. E estou me referindo à Finlândia, Polônia e Sobral, aqui no Ceará. São três fórmulas diferentes, com alguma coisa em comum.
Os elementos comuns das reformas que realizaram a partir dos anos 1980 - apuro da gestão escolar, qualificação do professorado, reformas curriculares etc. - são os mais aparentes, isto é, aqueles que podem ser identificados de imediato. As diferenças começam a ser identificadas quando investigamos os objetivos das reformas e nos perguntamos quais os seus objetivos últimos, que tipos de resultados a obter?
Para mim a diferença básica é relativa aos processos. A Polônia e a cidade de Sobral fizeram as suas apostas e definiram métodos e estratégias racionais adequadas de curto prazo. Quando analiso as duas experiências sou remetido à cibernética usada pela NASA ou pela Agência Espacial Brasileira para colocar em órbita os seus artefatos espaciais. A cibernética, como campo de estudo da Física, desenvolve teorias de controle e de sistemas, juntamente com outras disciplinas, permite que os cientistas guiem os seus artefatos corrigindo os seus desvios até atingir, quase cirurgicamente, os seus alvos. O controle sobre eles em suas rotas é quase total.
A utilização de princípios cibernéticos na administração de sistemas educacionais produz resultados semelhantes e tais princípios, fora do campo da Física, conformam a gestão de qualidade com a qual operam a Polônia e a cidade de Sobral. Ambas se serviram deles para evitar evasões, desvios de fluxo, fracassos etc. Desenvolveram meios para atingir o sucesso e conseguiram. A Polônia que até os anos 1990 tinha um péssimo oferecimento de educação de qualidade já aparece no Top 10 do ranking promovido pela OCDE após a aplicação da bateria de testes do PISA e, Sobral, com a mesma aplicação é disparada o melhor IDEB do Brasil, 9.1, o que a coloca numa posição mundial invejável. Esta administração do sistema educacional com vistas ao sucesso - medido pelo desempenho de estudantes em testes padronizados - satisfaz as autoridades educacionais e até permitem as suas reeleições e a continuidade dos seus partidos no topo da vida política nacional.
A concepção de sucesso presente na reforma educacional da Finlândia não é o alto desempenho em testes padronizados. Para os finlandeses tal desempenho não é o fim, mas efeito colateral de uma educação sólida ao longo de todo o percurso básico. Suas formas de controle são outras e, às vezes, com resultados inesperados. Privilegia-se o aprofundamento dos estudos em bases científicas desde a educação infantil, as leituras dos grandes autores e o contato com os teoremas de ouro das ciências exatas. Seus professores são incentivados a aprofundar os seus estudos, seja no campo específico de sua disciplina, seja no campo de sua área de interesse. Todos têm autonomia curricular, teórica e metodológica para provocar mediações superiores em seus alunos, exigir que desenvolvam os seus potenciais e revelem com criatividade ou inovação novos modos de compreender fenômenos. As crianças e jovens suômis fazem pouquíssimas provas ao longo da escolaridade básica, no máximo duas, mas, em contrapartida, são exigidos a se desdobrarem em pesquisas, produção de relatórios, demonstrações, debates etc.
Como podem observar, não há somente uma via para a conquista do sucesso educacional, aqui estou colocando em evidência uma horizontal, utilizada pela Polônia e Sobral, e uma vertical. Também estou afirmando que ambas são viáveis e produzem resultados esperados.
Porém, preciso advertir: os resultados tem diferentes durações e agregam maior valor de uso e troca aos estudantes. Os poloneses e sobralenses podem estar obtendo os seus certificados de conclusão da educação básica com mais destreza na resolução de testes padronizados e até das mais elevada nota nas redações de tais exames, mas fica a dúvida relativas à capacidade deles de demonstrar determinados teoremas, resolver problemas de grande complexidade, apresentar soluções criativas e inovadoras, como os alunos da Finlândia que se preparam para se inserirem em um mundo de alta complexidade e velozes transformações.
Neste momento me vem à mente o motorista que transita em alta velocidade nas rodovias de última geração, chega ao seu destino com segurança mas é incapaz de expressar qualquer comentário sobre a paisagem por onde esteve a muitos quilômetros por hora, e aquele outro que foi incapaz de voar em um bólido de muitos cavalos, mas que usufruiu a paisagem, aprendeu com ela, tornou-se outro em sua viagem.
Eu como gosto de viajar apreciando as paisagens e do sabor da pizza e feijoada de fogão a lenha, já defini a minha preferência. Fico com o sistema educacional da Finlândia.
Os elementos comuns das reformas que realizaram a partir dos anos 1980 - apuro da gestão escolar, qualificação do professorado, reformas curriculares etc. - são os mais aparentes, isto é, aqueles que podem ser identificados de imediato. As diferenças começam a ser identificadas quando investigamos os objetivos das reformas e nos perguntamos quais os seus objetivos últimos, que tipos de resultados a obter?
Para mim a diferença básica é relativa aos processos. A Polônia e a cidade de Sobral fizeram as suas apostas e definiram métodos e estratégias racionais adequadas de curto prazo. Quando analiso as duas experiências sou remetido à cibernética usada pela NASA ou pela Agência Espacial Brasileira para colocar em órbita os seus artefatos espaciais. A cibernética, como campo de estudo da Física, desenvolve teorias de controle e de sistemas, juntamente com outras disciplinas, permite que os cientistas guiem os seus artefatos corrigindo os seus desvios até atingir, quase cirurgicamente, os seus alvos. O controle sobre eles em suas rotas é quase total.
A utilização de princípios cibernéticos na administração de sistemas educacionais produz resultados semelhantes e tais princípios, fora do campo da Física, conformam a gestão de qualidade com a qual operam a Polônia e a cidade de Sobral. Ambas se serviram deles para evitar evasões, desvios de fluxo, fracassos etc. Desenvolveram meios para atingir o sucesso e conseguiram. A Polônia que até os anos 1990 tinha um péssimo oferecimento de educação de qualidade já aparece no Top 10 do ranking promovido pela OCDE após a aplicação da bateria de testes do PISA e, Sobral, com a mesma aplicação é disparada o melhor IDEB do Brasil, 9.1, o que a coloca numa posição mundial invejável. Esta administração do sistema educacional com vistas ao sucesso - medido pelo desempenho de estudantes em testes padronizados - satisfaz as autoridades educacionais e até permitem as suas reeleições e a continuidade dos seus partidos no topo da vida política nacional.
A concepção de sucesso presente na reforma educacional da Finlândia não é o alto desempenho em testes padronizados. Para os finlandeses tal desempenho não é o fim, mas efeito colateral de uma educação sólida ao longo de todo o percurso básico. Suas formas de controle são outras e, às vezes, com resultados inesperados. Privilegia-se o aprofundamento dos estudos em bases científicas desde a educação infantil, as leituras dos grandes autores e o contato com os teoremas de ouro das ciências exatas. Seus professores são incentivados a aprofundar os seus estudos, seja no campo específico de sua disciplina, seja no campo de sua área de interesse. Todos têm autonomia curricular, teórica e metodológica para provocar mediações superiores em seus alunos, exigir que desenvolvam os seus potenciais e revelem com criatividade ou inovação novos modos de compreender fenômenos. As crianças e jovens suômis fazem pouquíssimas provas ao longo da escolaridade básica, no máximo duas, mas, em contrapartida, são exigidos a se desdobrarem em pesquisas, produção de relatórios, demonstrações, debates etc.
Como podem observar, não há somente uma via para a conquista do sucesso educacional, aqui estou colocando em evidência uma horizontal, utilizada pela Polônia e Sobral, e uma vertical. Também estou afirmando que ambas são viáveis e produzem resultados esperados.
Porém, preciso advertir: os resultados tem diferentes durações e agregam maior valor de uso e troca aos estudantes. Os poloneses e sobralenses podem estar obtendo os seus certificados de conclusão da educação básica com mais destreza na resolução de testes padronizados e até das mais elevada nota nas redações de tais exames, mas fica a dúvida relativas à capacidade deles de demonstrar determinados teoremas, resolver problemas de grande complexidade, apresentar soluções criativas e inovadoras, como os alunos da Finlândia que se preparam para se inserirem em um mundo de alta complexidade e velozes transformações.
Neste momento me vem à mente o motorista que transita em alta velocidade nas rodovias de última geração, chega ao seu destino com segurança mas é incapaz de expressar qualquer comentário sobre a paisagem por onde esteve a muitos quilômetros por hora, e aquele outro que foi incapaz de voar em um bólido de muitos cavalos, mas que usufruiu a paisagem, aprendeu com ela, tornou-se outro em sua viagem.
Eu como gosto de viajar apreciando as paisagens e do sabor da pizza e feijoada de fogão a lenha, já defini a minha preferência. Fico com o sistema educacional da Finlândia.
4.4.20
Educação a distância em tempos de pandemia e a reprodução da desigualdade social
A pandemia provocada pelo novo coronavirus – Covid-19 – que assola
o mundo e impõe o isolamento social generalizado, fechando as pessoas em suas
casas, está mantendo metade dos estudantes de todo o mundo longe das salas de
aulas, em ambos hemisférios do globo terrestre. A OMS – Organização Mundial da
Saúde – já prenunciou a perda do semestre letivo. Os pais estão em polvorosa
com a suspensão das aulas, com os filhos
em isolamento dentro de casa e com criatividade insuficiente para mantê-los
calmos e ocupados. Alguns segmentos da sociedade começam a pressionar as
autoridades escolares exigindo oferecimento de lições por meio das novas tecnologias
de comunicação.
Aqui no Estado do Rio de Janeiro oferecer ou não oferecer
educação a distância está na agenda do dia. Grande quantidade de pais exige-a. A
Secretaria de Educação – SEDUC – é favorável e exerce pressão sobre o
professorado para o seu oferecimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda
que a SEDUC suspenda as atividades não presenciais por meio de qualquer
plataforma educacional previstas para começar no dia 13 de março.
O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital
não é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento agem
açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e de forma
autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de Internet fosse
gratuito, universal e de qualidade igual para aproximadamente 250 mil
estudantes e 40 mil professores. Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à
realidade socioeconômica de discentes e docentes que, em grande parte, somente
têm acesso por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro.
Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm péssima
cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance.
Um dia admiti igualmente fetichizado e com arrogância a
possibilidade de oferecer ensino de qualidade universalmente a todos os
estudantes de todas as regiões brasileiras. Hoje admito o meu grau de idealismo
e a impossibilidade de oferecer EaD, dadas as desigualdades sociais e regionais
do Brasil. Ainda há regiões desprovidas de luz elétrica de qualidade durante as
vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores a diesel são
desligados às 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas ainda são
indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que habita estes
lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade de usar os
recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem tenha de subir em
árvores para obter melhores sinais.
Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de
Internet, mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes
redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteligentes. Não
são todos os usuários que acessam esta rede e têm dinheiro suficiente para
pagar os serviços técnicos indispensáveis. O consórcio público de educação a
distância, do qual sou um dos fundadores, organizado pelas universidades
públicas do estado do Rio de Janeiro, o CEDERJ, registra anualmente elevado
índice de evasão exatamente por conta de dificuldades técnicas que os
estudantes enfrentam com as suas máquinas e locais de recepção.
A cidade do Rio de Janeiro, dada a sua geografia, também
reproduz a mesma realidade das demais regiões do país, a despeito de ser uma
capital. Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim
Botânico, Humaitá ou Barra da Tijuca é uma coisa que chega a ser prazerosa;
outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do Alemão,
Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça. Muitos estudantes destes lugares,
inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais quando eles
permitem e mesmo assim com tempo contado.
O ciberespaço está longe de conhecer a igualdade social, ele reproduz
com integralidade a mesma divisão de classe da sociedade capitalista. As
classes populares sofrem nele as mesmas agruras do mundo real. Os mais ricos se
deliciam e se enriquecem mais e mais com os avanços científico-tecnológicos e a
subordinação deles como rápidas e eficientes forças de produção.
Por esta razão, a determinação de oferecer educação a
distância para o alunado do Estado do Rio de Janeiro é desprovida de empatia e
alteridade, ao mesmo tempo em que pode contribuir para aprofundar as
desigualdades sociais existentes. Não vem acompanhada de políticas garantidoras
da igualdade de acesso para os estudantes fluminenses. Os mais abonados e
remediados poderão acessar a plataforma onde se encontram os textos, vídeos,
bibliotecas online etc. nos seus próprios tempos, os mais vulneráveis que se
virem. O utilitarismo das autoridades educacionais, que favorece a uns com base
num cálculo, desconhece e desdenha o imperativo categórico formulado por Kant: o
princípio da universalidade, o fundamento da democracia social: ou é para
todos, de igual modo, ou é imoral e antiético.
O pragmatismo que a impregna a determinação da SEDUC se
preocupa com os fins, sem observar a iniquidade e imoralidade dos meios que usa
para satisfazer parte da sociedade e obter bons dividendos políticos, já que o
calendário eleitoral de 2020 ainda está em curso. Na equação
político-eleitoreira com a qual opera, dar uma satisfação social, ainda que
promova mais desigualdade educacional, é melhor do que nada. O oferecimento de
uma educação de qualidade pode ser postergado, pode continuar a ser uma
poderosa promessa de campanha eleitoral.
[1][1][1][1]
Professor Titular da UERJ/EDU/Departamento de Políticas Públicas, Avaliação e
Gestão da Educação. Membro do LPP-UERJ e Coordenador Geral do Programa de
Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio dos Santos – ProDEd-TS
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