18.11.22

O Vírus Pós-Moderno: A Ideologia que Esvaziou a Crítica e a Prática Progressista

 


Vivemos um paradoxo político e ideológico na América Latina. Historicamente, os movimentos de esquerda se estabeleceram em oposição ferrenha ao ideário neoliberal. Essa divergência, consolidada por um vasto aparato intelectual, deveria servir como barreira inegociável contra a lógica do mercado. No entanto, o que observamos é a emergência de uma dissociação preocupante: o distanciamento entre a crítica formulada e a prática adotada. Este artigo explora como o pós-modernismo, agindo como a ideologia do neoliberalismo, infiltrou-se em esferas cruciais como a educação e as artes, esvaziando o potencial transformador dessas áreas e corroendo a resistência progressista.A rigor, a esquerda latino-americana sempre se colocou de forma radicalmente contrária ao neoliberalismo. A produção acadêmica dos anos 1990 em diante é prova disso: um vasto esforço intelectual de combate ao liberalismo e às suas múltiplas variações vindas de diferentes partes do mundo. No entanto, nesse percurso, percebe-se uma dissociação entre teoria e prática — visível em setores que, mesmo formulando críticas contundentes, acabaram por se deixar contaminar pelo próprio discurso que denunciavam.

A esquerda latino-americana sempre se posicionou, em tese, de forma radicalmente contrária ao neoliberalismo. A produção acadêmica a partir da década de 1990 é prova disso: um vasto esforço intelectual dedicado ao combate ao liberalismo e às suas múltiplas variações globais. No entanto, nesse percurso, estabeleceu-se uma dissociação entre o discurso e a prática. Essa ruptura se tornou visível em setores que, mesmo formulando críticas contundentes, acabaram por absorver e se deixar contaminar pelo próprio discurso que denunciavam.

A filósofa Marilena Chauí ofereceu um alerta crucial, ao caracterizar o pós-modernismo como a ideologia do neoliberalismo. Muitos ignoraram essa advertência, e o pensamento pós-moderno se disseminou como uma planta invasora (tiririca-do-brejo), sem resistência ideológica proporcional e com efeitos profundamente corrosivos no campo progressista.

Na educação, essa lógica se traduziu na proliferação de diplomas esvaziados de conteúdo. Sob a máxima neoliberal de que “o mercado é o grande juiz”, a seleção dos “melhores” deixou de ser uma responsabilidade do processo formativoe foi transferida integralmente ao mercado de trabalho. Como consequência, instaurou-se um darwinismo social perverso: reprovar estudantes passou a ser visto como prejuízo financeiro. Muitas instituições de ensino, sobretudo privadas, optaram por transferir a responsabilidade de filtrar a mediocridade para o futuro empregador.

O campo das artes também foi capturado por esse espírito. Sob o falso lema da “morte da criatividade” ou do fim das vanguardas, abriu-se espaço para produções destituídas de qualquer valor intrínseco ou talento mínimo. Como o teórico Fredric Jameson pontua, “nesse ambiente, as imagens, os signos, tudo parece dado a uma apreciação estética imediatista e presentista, sem nenhum projeto crítico amplo que lhes dê suporte e sentido”. Sem as estruturas críticas e a tensão estética do modernismo, o campo foi inundado pelo pastiche — na maioria das vezes, em sua forma mais efêmera e cínica.O diagnóstico é claro: a incapacidade de manter a coerência entre a teoria anti-neoliberal e a prática política resultou em uma capitulação silenciosa. Ao ignorar advertências sobre a natureza ideológica do pós-modernismo e permitir que a lógica do mercado permeasse a educação e as artes, a esquerda fragilizou-se internamente. O desafio atual não reside apenas em combater o neoliberalismo em sua dimensão econômica, mas, sobretudo, em purgar as influências ideológicas que permitiram o esvaziamento de conteúdo na formação e na cultura, restaurando o projeto crítico e estrutural que é essencial para qualquer transformação social efetiva.

Você concorda que o campo progressista está absorvendo o discurso que deveria combater?

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#Neoliberalismo, #EsquerdaLatinoAmericana, #CriticaIdeologica

3.11.22

Uma cruzada nacional de amor contra o bolsonarismo e o obscurantismo educacional.

 


O Colégio Eleitoral brasileiro tem um número de eleitores (156.454.011) maior que a população de países como a França, Inglaterra, Espanha, Alemanha e muitos outros. Os números dos nossos indicadores, quase sem exceção, não apenas mostram a grandiosidade do Brasil, mas coloca os habitantes daqueles países no modo perplexidade. E, de fato, não é para menos. Nesta eleição, os eleitores do Presidente Lula (60.345.999) equivalem a toda a população da Itália. Os de seu concorrente, somaram mais de 58 milhões.

Em termos quantitativos é este o quadro que se desenhou neste segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Contudo, o que preocupa a todos, com um mínimo de sensatez, é a qualidade dos 58 milhões de votos que definem o bolsonarismo. Eles avalizam a morte de milhares de vítimas por incúria e perversidade do governante, as queimadas e destruição dos grandes biomas brasileiros, a redução antipática e inumana das políticas sociais, a volta avassaladora da fome, a liquidação de direitos trabalhistas e sociais, a violência contra homoafetivos, mulheres, negros, indígenas e quilombolas e até o isolamento do país no concerto das nações. Os eleitores de Bolsonaro, além disso, dificilmente titubeariam para restabelecer a ditadura militar, a tortura, a suspensão do habeas corpus... a violência e a intolerância passaram a ser a marca registrada deles. Sérgio Buarque de Hollanda ficaria ruborizado e envergonhado ao ver o seu homem cordial mostrando as entranhas que ele jamais poderia imaginar que camuflam a violência que herdou das práticas escravistas; da incrível capacidade de fraudar, extorquir, subornar; submeter as populações mais vulneráveis às suas sanhas de riqueza, poder e prestígio. O que une todos estes homens brancos “cordiais”, por mais díspares e de origens sociais diferentes, é, nos dizeres de Thompson (1977), o “modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações sociais”, com a cultura e as expectativas a elas transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural”. O que faz do bolsonarismo uma massa ignara e bastante uniforme é a defesa que os mais pobres dos seus integrantes – pouco importa que sejam negros, pobres, homossexuais e mulheres ameaçadas de feminicídio – fazem do modo de vida da elite. Todos se acham como seus integrantes. Como o personagem Caco Antibes, do hilariante “Toma lá, dá cá”, eles também têm horror aos pobres e os contemplam de apartamentos mal enjambrados do Jambalaya Ocean Drive.

A despeito das muitas teorias que podem explicar tal fenômeno, entre todas é preciso atribuir à educação brasileira um grande grau de responsabilidade para a sua existência, dada a crônica incapacidade de “educar para afirmar valores e estimular ações que contribuam para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (Brasil/BNCC, 2013), e cumprimento da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) para a construção de um mundo sustentável sem pobreza e sem comprometer a qualidade de vida das próximas gerações. De certo modo, tal onda bolsonarista, e não é descabido afirmar, é o preço que a oferta de educação de baixa qualidade vem cobrando da sociedade. Como se não bastassem os prejuízos econômicos e os atrasos que impõe à nossa competitividade internacional, a sua hegemonia durante os últimos quatro anos fizeram o país recuar, nos dizeres da principal liderança desta massa à Rádio Jornal, de Barretos (SP), seu principal objetivo é que o “Brasil volte a ser igual 40, 50 anos atrás”.

Os principais cientistas brasileiros há muito vêm denunciando a precariedade da educação oferecida às nossas crianças e jovens e o impacto negativo que promove em nosso desenvolvimento. A quantidade de estudos é impressionante, a maioria é baseada em dados empíricos. A própria OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico), que aplica regularmente os exames do PISA (Leitura, Matemática e Ciências) em estudantes com 15 anos de idade, desde o primeiro exame realizado no ano 2000, vem se mostrando preocupada com o baixo desempenho dos estudantes brasileiros. Na ocasião, o desempenho deles ocupou a última posição entre os participantes. Em vinte e dois anos de aplicação dos testes do PISA, as melhorias conseguidas pelos nossos brasileirinhos são quase imperceptíveis e tendem a permanecer distantes e abaixo da média de desempenho dos seus colegas de outros países participantes.

Ao longo das últimas décadas, com os manuais do neoliberalismo em punho, o Estado jogou para o mercado a seleção dos melhores, condenando os demais a garantir as suas sobrevivências da maneira informal que conseguissem, bem como a dormir sob as incertezas do tempo próximo aos pontos em que montavam as suas bancas de vender desde pequenos ralos para pias à última novidade vinda do Oriente. Os fracassados, bombardeados pela ideologia da meritocracia, foram deixados à própria sorte e a buscar ajuda divina junto a igrejas e pregadores inescrupulosos. Com o Movimento Escola Sem Partido, os conservadores em geral, e os bolsonaristas em particular, se dispuseram a varrer das escolas as disciplinas de História, Geografia, Sociologia e Filosofia admitindo o elitismo estrutural da sociedade que tanto nega a qualificação do estudante para o trabalho improdutivo quanto o alargamento de sua compreensão de mundo. A ideia é que as escolas somente sejam aparelhadas para instruir para o trabalho imediato, de preferência organizada em bases militares.

Estamos perdendo décadas no oferecimento de educação pública de qualidade referenciada socialmente. Nos anos 1990 o IPEA chamou muito atenção para o fato de termos perdido a década de 1980. De lá para cá, pouco ou nada se fez com resultados robustos. Nestas duas décadas do século XXI o que se vê é estarrecedor. É cada vez maior as retrações de verbas, ausência de preocupações sérias com a formação de professores e ataques à liberdade de ensinar. A despeito da vigência das Bases Nacionais Curriculares Comuns, BNCC (2018), em sã consciência é impossível afirmar que os nossos estudantes passaram a ser capazes de “entender e explicar a realidade, colaborar com a sociedade e continuar a aprender; investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções; fruir e participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural; expressar-se e partilhar informações, sentimentos, ideias, experiências e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo; comunicar-se, acessar e produzir informações e conhecimento, resolver problemas e exercer protagonismo de autoria; entender o mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas à cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade, autonomia, criticidade e responsabilidade; formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns com base em direitos humanos, consciência socioambiental, consumo responsável e ética; cuidar da saúde física e emocional, reconhecendo suas emoções e a dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas; fazer-se respeitar e promover o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade, sem preconceito de qualquer natureza; tomar decisões com princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e democráticos” (Educação online)

Quem já teve a oportunidade de debater alguma ideia com algum adulto ou jovem identificados com o bolsonarismo, que chamam o presidente de “mito”, pode comprovar com facilidade o quão longe estão da aquisição das competências da BNCC ou dos princípios e objetivos que norteiam e justificam a nossa Lei de Diretrizes e Bases (LDB).

A vitória do Presidente Luis Inácio Lula da Silva nestas eleições presidenciais é o renascer da esperança. Caberá ao seu ministro da educação empreender uma cruzada contra o obscurantismo que alimenta a massa de 58.206.354 votos e estancar a produção de novos indivíduos dispostos a negar os avanços da ciência, a acreditar que a Terra é plana e a preferir a Bíblia à Constituição. Será este ministro o líder de uma cruzada de amor contra o bolsonarismo e o obscurantismo educacional.


Publicado no Brasil 247 - https://www.brasil247.com/blog/uma-cruzada-nacional-de-amor-contra-o-bolsonarismo-e-o-obscurantismo-educacional 

Por uma nova escola pública: conhecimento, democracia e emancipação no século XXI

  Zacarias Gama ex-Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Problematizando A crise contemporânea da escola não é u...