24.11.25

Por que as Sociedades Não Mudam Apenas com Educação? A Pedagogia da Realidade


 Em diversas sociedades africanas, a educação é concebida como uma responsabilidade distribuída por toda a comunidade. A aprendizagem infantil é entendida como um processo social que não se esgota na escola, mas se desenrola no convívio cotidiano, nos rituais comunitários, na circulação de saberes tradicionais e na participação coletiva em tarefas e cuidados. Essa concepção contrasta com narrativas contemporâneas que atribuem à escola um poder quase redentor, como se fosse capaz de, sozinha, alterar estruturas sociais profundamente enraizadas.

Autores marxistas como Louis Althusser e Antonio Gramsci, embora com formulações distintas, convergem para uma compreensão semelhante: a escola integra um conjunto de aparelhos ideológicos que moldam subjetividades e reproduzem — ou contestam — as relações sociais de produção. Assim, a educação não constitui um agente autônomo de transformação, mas um componente de um sistema social mais amplo.

O objetivo desta postagem é examinar esses limites da escola como instituição isolada e analisar por que a transformação social exige, necessariamente, a articulação entre condições materiais, estruturas produtivas, instituições políticas e processos culturais. Somente alguém em estágio de absoluta ignorância ou sob efeito de alguma substância alucinógena poderia considerar a má qualidade educacional de dada sociedade um projeto político e intencional das elites.

Educar é um processo social ampliado

A noção de que a educação de uma criança é responsabilidade coletiva não é metafórica. Ela reflete práticas concretas de cuidado compartilhado, aprendizagem por observação, transmissão simbólica e divisão comunitária de funções sociais. Antropologicamente, a educação sempre foi um fenômeno distribuído entre diversos agentes sociais: família, pares, grupos etários, atividades produtivas e, mais recentemente, instituições formais.

A partir da modernidade, a escolarização formalizou apenas uma parte desse processo. Elementos como mídia, redes sociais, condições de moradia, estabilidade econômica, alimentação, saúde pública e até a materialidade urbana passaram a atuar como coautores na construção das subjetividades e competências.

Dessa perspectiva, torna-se evidente que atribuir à escola a responsabilidade exclusiva por transformar uma sociedade corresponde a uma redução analítica e a um equívoco político.

A escola como aparelho ideológico: Althusser e Gramsci

A leitura de Louis Althusser sustenta que a escola é o principal aparelho ideológico do Estado na sociedade capitalista. Ao socializar indivíduos nos valores dominantes, ela contribui para a reprodução das relações de produção ao formar trabalhadores dóceis, aptos e conformados ao modo de produção vigente. Gramsci, por sua vez, diferente de Althusser, embora reconheça a função reprodutora da escola, concebe-a escola um espaço dialético. Ela pode servir à hegemonia burguesa, mas também pode nutrir projetos contra-hegemônicos ao promover pensamento crítico e organização intelectual coletiva. A instituição escolar, portanto, não é unívoca, mas campo de disputa.

Essa convergência entre tradições comunitárias africanas e perspectivas marxistas põe em evidência que a educação, isolada, é estruturalmente incapaz de alterar sozinha as bases materiais que sustentam qualquer ordem social.

Educação e condições materiais de existência

A crença de que a educação pode, por si só, “salvar” uma sociedade parte de uma lógica voluntarista desconectada das dinâmicas materiais. Embora a educação produza qualificações, ela não cria empregos, pois estes dependem da estrutura produtiva, dos investimentos e da capacidade tecnológica de uma economia. Da mesma forma, a escola e a educação não alteram, autonomamente, a distribuição de renda ou terra, processos que exigem ação política, reforma institucional e disputa econômica.

Por mais qualificados que sejam os professores de uma escola, a aprendizagem significativa torna-se impossível para crianças expostas à fome, insegurança habitacional, doenças ou violência. A escola, portanto, é diretamente condicionada por determinantes extrapedagógicos. Esses limites da escola decorrem da interdependência entre os aparelhos ideológicos e os aparelhos repressivos do Estado, bem como entre o sistema educacional e as condições materiais mais amplas da vida social.


A Revolução Industrial e o mito do papel exclusivo da educação

A análise histórica da Revolução Industrial europeia ilustra de forma clara a insuficiência da educação como motor autônomo de desenvolvimento. Inglaterra e Alemanha possuíam, já no período pré-industrial, taxas de alfabetização entre 60% e 70%, motivadas em grande parte pela leitura religiosa individualizada. O salto qualitativo do século XVIII e XIX resultou não da escolarização isolada, mas de um conjunto de transformações articuladas:

  • inovação tecnológica e mecanização produtiva;
  • aumento da segurança alimentar;
  • ampliação do emprego industrial;
  • crescimento e redistribuição parcial da riqueza;
  • melhorias em saúde, saneamento e urbanização;
  • fortalecimento institucional e consolidação de mecanismos de controle social;
  • expansão de livros, jornais e revistas, com pluralidade de visões de mundo;
  • relativa estabilidade familiar e comunitária.

A educação formal participou desse processo, mas não o protagonizou isoladamente.

Conclusão

Esta postagem quer demonstrar que a escola, embora necessária, é estruturalmente insuficiente para transformar uma sociedade por si só. A emancipação social depende de uma configuração ampla de instituições, condições materiais de existência, dinâmica produtiva, estabilidade econômica e estruturas simbólicas. A educação escolar só adquire potencial transformador quando integrada a processos históricos mais vastos, capazes de alterar tanto as bases materiais quanto as formas ideológicas de reprodução social.

Dessa forma, não há fundamento empírico ou teórico para atribuir à escola o papel de agente isolado de salvação social. A mudança estrutural exige reformas econômicas, políticas, tecnológicas e culturais que ultrapassam a esfera educacional.


Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vários volumes.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1970.

 


Um comentário:

Zacarias Gama disse...

Luiz Sombra
A sociedade é muito mais forte do que a escola. Educa e forma muito mais do que as instituições escolares. Estamos perdendo de goleada. O improviso comanda a vida nas ruas e becos. A escola não consegue lutar contra isso, depois de décadas de desprestígio e achatamentos de todo o tipo. Salarial, principalmente.

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