17.2.22

A educação brasileira de volta ao passado, 30 ou 40 anos em quatro

 



 

Zacarias Gama[1]

 

 

O Brasil foi um dos signatários da declaração final da Conferência Ibero-americana de Educação, promovida pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) em El Salvador, 2008, a partir da qual os presentes assumiram acolher as “Metas 2021: a Educação que Queremos para a Geração dos Bicentenários” e se comprometeram a concretizá-las em harmonia com os planos de educação dos seus respectivos países. As metas, onze no total, corresponderiam às aspirações históricas de colocar a educação como sustentáculo das liberdades individuais e como força de consolidação dos regimes democráticos.  

A rigor nenhuma das onze metas exigiriam esforços gigantescos ou dispêndios além da capacidade de financiamento de cada país. Em tese as vontades políticas dos governos e das sociedades civis somadas aos recursos já existentes seriam suficientes para que fossem materializadas. As Metas 2021 visavam ampliar a participação da sociedade na ação educativa; alcançar a igualdade educacional e eliminar a discriminação na educação de crianças e jovens; aumentar a oferta de educação infantil e potencializar seu caráter educativo; universalizar o ensino fundamental e ampliar o acesso ao ensino médio; melhorar a qualidade da educação e do currículo escolar; conectar educação e emprego com o incremento da educação profissional e tecnológica; oferecer a todos oportunidade de educação ao longo da vida; fortalecer a profissão docente; ampliar o espaço ibero-americano do conhecimento e fortalecer a pesquisa científica; investir mais e melhor; e avaliar o funcionamento dos sistemas educacionais e do projeto “Metas Educativas 2021”. Aqui no Brasil, muitas destas metas já estavam incorporadas ao Plano Nacional de Educação de 2001-2010 e ainda integram o PNE 2014-2024 (LEI Nº 13.005/2014).

O impacto da crise política no Brasil que culminou no Golpe de 2016 atrasou o cumprimento das metas. O governo golpista de Michel Temer que substituiu a Presidente Dilma Rousseff até o fim do mandato em 31 de dezembro de 2017, pouco fez para cumpri-las; sua maior iniciativa foi o engessamento das ações do MEC ao limitar os seus gastos aos patamares de 2016 (Brasil, PEC 241/2016). O governo de Jair Bolsonaro, que  assumiu a presidência em janeiro de 2018, desde a sua campanha eleitoral deixou bem claro que o seu “objetivo é fazer Brasil semelhante ao que era há 40, 50 anos” (Folha de São Paulo, 15.out.2018). Até o presente o presidente tem se esmerado no cumprimento de sua promessa. O Relatório de fevereiro de 2021 da Comissão Externa destinada a acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos do Ministério da Educação, bem como da apresentação do seu Planejamento Estratégico (CEXMEC) constata que o Presidente caminha a passos largos para efetivar in totum a sua promessa de campanha.

A CEXMEC, coordenada pelo Deputado Felipe Rigoni (PSL/ES), tendo como relatora a Deputada Tabata Amaral (PSB/SP), e integrada por parlamentares da base de apoio do governo, portanto, acima de qualquer suspeita, concluiu o seu relatório afirmando que “os esforços e os investimentos realizados pelo Ministério da Educação nestes três anos (2019, 2020 e 2021) foram muito aquém do necessário para o atendimento das principais demandas da educação básica brasileira. Mais ainda: avaliou serem grandes as omissões do MEC em iniciativas de coordenação e políticas educacionais estruturantes, além de despriorizar as modalidades de ensino, rebaixar as dotações orçamentárias e pagamentos, serem inertes e letárgicas. Fechou o documento chamando a atenção de todos para as consequências negativas para milhões de estudantes, professores e demais atores do campo da educação.

O relatório de monitoramento do PNE divulgado pelo INEP em julho de 2020, de exclusiva responsabilidade do MEC, na mesma linha do relatório da CEXMEC, confirma a péssima administração da educação desde a crise de 2016. Somente uma das 20 metas do PNE previstas em lei foi cumprida integralmente e 5 tiveram cumprimento parcial, isto porque não eram ambiciosas e já estavam próximas de serem cumpridas; todas as demais estão longe de serem alcançadas. É grande a estagnação do MEC e muitas as trapalhadas dos incompetentes ministros (até agora quatro) que se sucederam na sua gestão, um deles (Ricardo Vélez Rodríguez, de origem colombiana), nada sabia de educação brasileira e mal sabia falar português. Para piorar, há expressivos retrocessos dado o aumento do analfabetismo funcional e a diminuição do número de matrículas em educação integral.

Quanto à concretização das “Metas 2021: a Educação que Queremos para a Geração dos Bicentenários”, acatadas pelo Brasil na Conferência Ibero-americana de El Salvador, em nível continental o vexame é maior: nenhuma meta foi ou será batida até o nosso bicentenário.  Segundo relatório da OEI (Seguimiento de las Metas Educativas 2021 y su articulación con el ODS4, 2019) a ampliação da sociedade na ação educativa dos filhos (Meta 1), acompanhando e perguntando sobre atividades escolares, tarefas e notas obtidas, a despeito dos níveis socioeconômicos, foi menor no Brasil do que no Chile, Equador, Honduras, Paraguai, Peru e República Dominicana; na mídia corporativa brasileira não se viu ou se vê qualquer campanha que incentive os pais a acompanharem mais os seus filhos nas atividades escolares. Quanto à Meta 2 que previa o aumento do grau de equidade entre escolas e dentro das mesmas a fim de beneficiar os estudantes menos favorecidos, o Brasil deixou de cumpri-la e ainda ficou abaixo do Chile, Peru, Portugal e Uruguai. As metas seguintes de aumentar a oferta de educação infantil e potencializar seu caráter educativo, concluir o ensino fundamental e aumentar as matrículas no ensino médio estão longe de serem batidas.  Quanto à meta de melhorar a qualidade da educação e do currículo escolar com vistas ao melhor desempenho em Leitura, Matemática e Ciências, o resultado brasileiro foi melhor apenas em matemática; Colômbia e Portugal foram os únicos países com aumentos notáveis de rendimento nas três disciplinas, bem diferentes do Uruguai e Espanha que deixaram de mostrar melhoras significativas. Dentre as demais metas vale destacar positivamente os avanços brasileiros em relação à profissão docente no que se refere à titulação: em 2014 o Brasil já tinha superado a meta de ampliar em 75% o percentual de docentes com mestrado e doutorado. Porém, paradoxalmente, o país ainda se encontra longe de ter 100% dos docentes com formação adequada na educação básica. No ensino médio pouco mais da metade dos docentes (56,6%) possuem licenciatura na disciplina que lecionam ou bacharelado na área e curso de complementação pedagógica.

O monitoramento avaliativo das 20 Metas do PNE (2014-2024) espelha com nitidez o relatório Metas 2021 elaborado pela OEI. Praticamente inexiste discrepâncias entre eles. A seguir apresento os estágios em que se encontram algumas metas constantes do PNE. A meta de atender 50% dos menores de 3 anos e 11 meses nas creches até 2024, somente atingiu 37% até 2019. A alfabetização de todas as crianças até o terceiro ano do Ensino Fundamental continua a ser um sonho; até 2016 em média 52% tinham aprendizagem adequada em leitura, escrita e matemática. A meta de 95% dos alunos do Ensino Fundamental o concluírem até os 16 anos de idade também está distante de ser batida: somente 82,4% conseguiram completar esta etapa da educação básica em 2020. Sequer conseguiremos reduzir para 13,5% a porcentagem de analfabetos funcionais; em 2020 ainda havia 29% de brasileiros maiores de 15 anos nesta condição. Em 2020 as matrículas de tempo integral correspondiam à metade da meta de 25% até 2024. O acesso ao ensino fundamental, para crianças de 6 a 14 anos, está praticamente universalizado, mas somente 82,4% o concluem com êxito; a meta estipulando que 95% o concluíssem aos 16 anos em 2024 está adiada. O mesmo ocorre com o ensino médio. A meta que deveria garantir 85% dos jovens de 15 a 17 anos matriculados no ensino médio em 2024 também não foi batida; apenas 75% dos jovens cursavam esta etapa em 2020.

A visibilização de tais resultados confirma o nosso andar de caranguejo no campo da educação. A remota hipótese de reeleição do ex-capitão à presidência da República é apavorante e acena com uma volta ao passado ainda maior, quem sabe à Idade Média negacionista, terraplanista, fundamentalista...

Que Deus nos acuda, a educação brasileira está de volta ao passado!



[1] Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS). Membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).

14.2.22

LDB - Organização, Níveis e Modalidades, Profissionais e Financiamento da Educação




Nosso tema continua sendo a LDB de 1996 e tomaremos como objeto três dos seus títulos: a organização da educação nacional, os níveis e modalidades de educação e ensino, os profissionais de educação e o financiamento da educação. O objetivo continuará sendo iluminar o que se encontra subjacente em seus artigos e a subordinação do projeto de educação do estado brasileiro aos interesses do empresariado capitalista. A abordagem metodológica utilizada  contém a intenção de desvelar as “verdades” que ela contém.  

A organização da Educação Nacional

A organização da educação nacional conforme é estipulado na Constituição e na LDB é da competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e a sua operacionalização ocorre de acordo com a razão do Estado brasileiro. De acordo com as leis, os estados e os municípios têm liberdade de organizar os seus sistemas de ensino, porém, sem fugir às determinações do poder central. É a União que coordena, articula, normatiza e avalia; determina as formas de colaboração; coleta, analisa e dissemina informações sobre a educação; presta assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios e administra os estabelecimentos do seu próprio sistema de ensino. A liberdade organizacional dos entes federativos, por maior que possa ser, é limitada pelo poder central.

Há três sistemas de ensino no território brasileiro, cada qual cuidando de órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino: federal, estadual e municipal. Os estados, restritos aos limites das suas fronteiras, é que prioritariamente cuidam do Ensino Médio e os municípios de cada estado, do Ensino Fundamental. O sistema de ensino federal abarca as instituições de ensino superior (públicas e privadas), de ensino básico (Colégio Pedro II, colégios militares, CEFETS etc.) e demais órgãos federais de educação, pesquisa e inovação tecnológica (Conselho Nacional de Educação, CNPq, Capes etc.).

Os estabelecimentos de ensino dos diferentes níveis são públicos, administrados pelo Poder Público, e privados, por entidades mantenedoras leigas, confessionais, comunitárias e filantrópicas. Em 2020 havia 178,4 mil escolas de educação básica no território brasileiro: municipais, 60,1%; estaduais, 16,6 %; privadas, 22,9 %; as federais correspondiam a menos de 1%. Quando consideramos a distribuição das matrículas na educação básica por dependência administrativa, percebe-se que a maior quantidade ocorre na rede municipal (48,4%); na rede estadual, 32,1%; na rede privada, 18,6%, e na federal menos de 1%. No ano de 2021, foram registradas 46,7 milhões de matrículas nas 178,4 mil escolas de educação básica no Brasil (Brasil, Censo da Educação Básica, 2021).

Como disse anteriormente, a organização e o funcionamento do sistema de ensino brasileiro ocorrem de acordo com a razão do Estado brasileiro, isto é, em concordância com os interesses dos detentores dos poderes do estado, não obstante os limites existentes, entre os quais o direito, sem dúvida um poderoso instrumento limitativo. Mas há outras limitações, como por exemplo, aquelas que são impostas pelos interesses da classe social ou grupo de poder que domina o aparelho de estado. Um estado dominado por uma grande aliança de empresários de todos os setores da economia, como no Brasil nos dias atuais, dificilmente atenderá às demandas dos trabalhadores assalariados e vice-versa. Um estado religioso, de qualquer religião, primeiro governará para satisfazer a classe sacerdotal. E assim por diante. O Estado, como campo de forças, sempre será organizado conforme aqueles que ocupam os centros de poder; no Brasil de hoje eles são ocupados por empresários da indústria, finanças, comércio, bancos, serviços, agronegócio e também por intelectuais, partidos, igrejas neopentecostais e o próprio estado). A forma que o Estado adquire e todo seu poder emana daí. Foucault, no curso que administrou em 1979, denominado Nascimento da Biopolítica, afirma haver atualmente uma razão de Estado neoliberal pautada pelo mercado, e, de acordo com tal razão, o estado lida com os fenômenos político-mercadológicos para sempre favorecer ao bloco de alianças que o hegemoniza. O governo prioritariamente se interessa pelo que é vital a esse bloco, à ampliação do seu poder e capital. Assim, se torna claro que a organização e o funcionamento da educação nacional estão de acordo com o que este Estado de empresários se dispõe a oferecer aos demais membros da sociedade, o que, aliás, é muito pouco:  o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo para o exercício da cidadania que reproduza e não se insurja contra o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade” (Brasil, Guia da política de governança pública,  2018), e sua qualificação para o trabalho produtivo.

Níveis e Modalidades de Educação e Ensino

A educação escolar que emana da LDB de 1996 compõe-se dos atuais níveis de ensino: I – educação básica, com as etapas educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior. Esta nomenclatura é uma característica da LDB de 1996. As LDBs anteriores tinham outras nomenclaturas e não incorporavam a educação infantil. Para termos uma ideia, a LDB de 1961 reconhecia os seguintes níveis: primário, secundário, colegial (científico, clássico, normal, comercial etc.) e superior. A LDB do período ditatorial, por sua vez, dividia a atual educação básica em 1º grau (com 8 séries), 2º grau (correspondente ao atual ensino médio) e Educação Superior.

Além desses níveis e etapas, a LDB define como modalidades de ensino a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Profissional e Tecnológica e a Educação Especial. A Educação Indígena e Quilombola não constituem modalidades de educação, ela só se refere à Educação Indígena en passant alertando para a necessidade de ofertar escola bilingue e intercultural aos povos indígenas; quanto ao oferecimento de educação às populações quilombolas, o tratamento é o mesmo das escolas rurais no Art. 28. 

A LDB atual, em relação às anteriores, apesar de atender às demandas do mercado, contém significativos avanços com destaque para o aumento da escolaridade obrigatória para 11 anos a partir dos 3 anos de idade até os 17 anos. Também merece destaque a inclusão da educação infantil (até os 5 anos de idade) no sistema de ensino nacional permite à escola complementar a ação educacional da família e da comunidade e equaliza o tempo de duração da educação básica com outros países. Por fim, deve-se destacar a consideração da educação básica como uma totalidade, isto é, como um conjunto estruturado no qual as partes têm influências umas sobre as outras. Se antes as políticas podiam ser pensadas para determinados segmentos (por exemplo: primário ou 1º grau séries iniciais), a partir da promulgação desta LDB elas passarão a pensar todos os 11 anos da escolaridade básica. Foi por esta razão que o ex-Presidente Lula da Silva transformou o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – 1997) em FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). 

Profissionais de Educação

A LDB define como profissionais da educação escolar básica “os que, nela exercem a docência estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos” (Art. 61). Eles precisam ser habilitados em nível médio ou superior ou serem portadores de diplomas de pedagogia ou de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim. O profissional com notório saber reconhecido pelos sistemas de ensino pode ser docente em áreas afins à sua formação, o mesmo vale para o graduado em qualquer área que tenha feito complementação pedagógica.

A LDB, é preciso atentar, é ambígua no tratamento dispensado ao profissional de educação, ele ora é tratado como professor, ora como profissional de educação; nas LDBs anteriores tal indeterminação era inexistente, todos eram considerados como professores. Foi somente quando a razão do Estado passou a ser o mercado é que se desenvolveu uma concepção técnica que reduziu o docente da educação básica à mesma condição de todos os demais profissionais assalariados, chegando-se ao ponto de se consagrar o dia 6 de agosto como Dia Nacional dos Profissionais de Educação (Lei Nº 13.054, de 22 de dezembro de 2014), revogando-se o Decreto nº 52.682, de 14 de outubro de 1963, que declarava o dia 15 de outubro como o Dia do Professor”. De certa forma, com esta nova denominação, conclui-se assim o processo de proletarização do professorado brasileiro.

A LDB determina que os profissionais de educação sejam valorizados pelos sistemas de ensino federal, estadual e municipal, e que se lhes garantam Ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aperfeiçoamento contínuo, piso salarial, progressão na carreira, carga horária com tempo reservado para estudo, planejamento e correção de trabalhos e, claro, condições adequadas de trabalho.

Financiamento da educação

Os recursos financeiros para a educação brasileira são provenientes dos impostos recebidos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, transferências determinadas pela Constituição e outras, receita do salário-educação e de outras contribuições sociais, receita de incentivos fiscais e outros recursos legais. A União deve aplicar no mínimo 18%, e os Estados, DF e Municípios, 25% do que for arrecadado; o valor inicial para efeito de cálculo é dado pela receita estimada na lei do orçamento anual.  

No orçamento executado, isto é, efetivamente pago em 2020, as aplicações públicas em educação corresponderam a 2,49% do total arrecadado. Segundo informes do jornal Correio Braziliense, 2021, houve uma diminuição de 10,2% em comparação com o ano anterior.

 O modo como o governo Jair Bolsonaro conduz a educação brasileira indica que a Meta 20 do PNE 2014-2024 de “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto (PIB) do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio”, dificilmente será batida. São constantes os cortes, cancelamentos e bloqueios orçamentários. Em 2021 este governo bloqueou R$ 2.7 bilhões da Educação no orçamento; agora, em 2022 os cortes já somaram um pouco mais de 800 milhões de reais (Correio Braziliense, 2022).


7.2.22

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a subordinação da educação pelo mercado e o nosso atraso educacional

 


Zacarias Gama[1]

A LDB

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996), como seu nome indica, fornece as instruções ou indicações para a devida concretização do plano ou projeto de educação que o Estado brasileiro se dispõe a oferecer à sociedade. 

Os seus 92 artigos estão distribuídos nos seguintes títulos:

TÍTULO I - Da Educação

TÍTULO II - Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

TÍTULO III - Do Direito à Educação e do Dever de Educar

TÍTULO IV - Da Organização da Educação Nacional

TÍTULO V - Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino (educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior.

TÍTULO VI - Dos Profissionais da Educação

TÍTULO VII - Dos Recursos financeiros

TÍTULO VIII - Das Disposições Gerais

TÍTULO IX - Das Disposições Transitórias

 

O projeto original desta lei surgiu por iniciativa da comunidade educacional imediatamente à promulgação da Constituição da República em 1988, a qual se encontrava fortemente mobilizada para assegurar suas propostas para a organização da educação.

No período de tramitação (1988 -1996), o projeto relatado pela Deputada Angela Amim passou por diversos embates tantas as tensões advindas da luta de classes no campo da educação; de um lado os capitalistas de educação – proprietários de instituições de ensino presenciais e a distância – e de outro, os trabalhadores de educação e defensores do oferecimento de uma educação pública, de qualidade referenciada socialmente, universal, laica e gratuita. 

Uma vez aprovado na Câmara e na Comissão de Educação do Senado o relatório da Deputada Angela Amim, que contemplava bastante os anseios dos defensores da escola pública de qualidade, foi objeto de um golpe político, que mudou inteiramente seu rumo, tendo sido substituído por um projeto induzido pelo Ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Paulo Renato de Souza (PSDB), relatado e assinado pelo Senador Darcy Ribeiro. E este foi o projeto aprovado e promulgado em 20 de dezembro de 1996, muito de acordo com as pressões do empresariado nacional de educação e distante das aspirações da comunidade educacional em favor da escola pública democrática.

De sua promulgação até os dias de hoje, a LDB já sofreu 331 alterações por meio de 287 novas leis e 44 medidas provisórias, a maioria provinda dos lobbies do empresariado de educação, no qual estão incluídas as igrejas católica, presbiteriana, metodista e diversas outras denominações, todas elas donas de redes de escolas no país.

A esta luta de classes interna se somam as pressões provenientes de organismos multilaterais internacionais: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Mundial, Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board), G20, BID, OEi. O Brasil, por ser membro de tais organismos ou signatário de documentos que emitem não tem força para simplesmente lhes fazer ouvido mouco.

O fato é que a soma de todas as forças do bloco de poder a favor do capital acabou por subordinar a educação aos seus interesses; o estado atual em que se encontra a educação brasileira é de estrita subordinação ao mercado. São fortes as organizações que defendem a privatização da educação ou a organização da educação pública conforme as suas demandas. Entre tais organizações se destacam o Movimento Todos pela Educação que agrupa em torno de si as seguintes fundações e grupos empresariais: Associação Crescer Sempre, Família Kishimoto, Fundação Bradesco, Fundação Grupo Volkswagen, Itau Social, Fundação Lemann, Fundação Lúcia & Pelerson Penido, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Vale, Gol, IFood, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Burger King, Fundação Educar DPaschoal, Fundação Roberto Marinho, Instituto Cyrela, Instituto Votorantim e Grupo Suzano etc.

TÍTULO I – Da Educação

Neste título está o conceito de educação, explicitado como sendo “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”

Reconhece a existência de outros agentes educativos para além da escola: família, convívio social, trabalho e locais de trabalho, instituições de ensino, movimentos sociais (feministas, negros, LGBTQI++, indígenas, quilombolas, estudantis, ambientalistas, trabalhistas etc.

A LDB, no entanto, somente trata da educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias; ela determina que esta educação deve estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social.

Aqui cabe uma observação: quando a LDB se refere ao trabalho sempre deixa transparecer a sua preferência pelo trabalho produtivo, aquele que produz mais valia. Pouco ou nenhum apreço dá ao trabalho improdutivo que não gera mais valia, ele é considerado como gasto desnecessário/ custo no jargão econômico e tratado como inutilidade pelo empresariado. Assim, não é por acaso ser grande a desconsideração da LDB com as disciplinas das áreas humanas e artísticas: história, filosofia, letras, artes, sociologia, teologia etc.

TÍTULO II – Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

A LDB atual é a primeira a dividir o dever do Estado de educar as crianças e jovens com as famílias; todas as anteriores consideravam exclusivo e inalienável este dever. Dividir tal dever com as famílias abre uma larga porta para a privatização da educação pública e revela uma vontade de saciar a voracidade de lucro do empresariado de educação. De acordo com a doutrina neoliberal de minimização do Estado, quanto maior o poder aquisitivo das famílias maior será o acesso às escolas particulares e consumo de produtos materiais pedagógicos e escolares.

Os fins ou objetivos da educação pública, conforme o Art. 2º da LDB, são “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho [produtivo].

A Constituição e a LDB ficam a dever o entendimento sobre “pleno desenvolvimento do educando”. A UNESCO o relaciona à humanização do educando, ao seu crescimento interior e desenvolvimento da consciência de liberdade e responsabilidade. Na prática, porém, a intenção é mais a de formar e qualificar o melhor e mais eficiente trabalhador do que oferecer uma educação que vise verdadeiramente o pleno desenvolvimento da personalidade. É, no entanto, difícil falar de pleno desenvolvimento do educando em face às condições de pobreza e bem-estar, questões de gênero e de discriminação sexual e relativos ao desenvolvimento social, entre outros. Para Amartya Sen (apud Zambam in “A Teoria da Justiça de Amartya Sen: as capacidades humanas e o exercíco das liberdades substantivas”, 2014) a persistência de tais condições “representam os desafios que precisam ser integrados às políticas de desenvolvimento. Sendo assim, não se pode falar em garantia das liberdades substantivas”. Por fim, é preciso acrescentar que a exacerbada pressão pela qualificação para o trabalho produtivo abafa o desenvolvimento de muitos talentos jovens e brilhantes em muitas áreas compreendidas no campo das humanidades.

O Art. 3º da LDB define quais princípios devem nortear o ensino nas escolas brasileiras. São estes os princípios: igualdade, liberdade, pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, respeito e tolerância, gratuidade nos estabelecimentos oficiais, valorização docente, gestão democrática, garantia de padrão de qualidade, valorização da experiência extraescolar, vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e de consideração com a diversidade étnico-racial.

TÍTULO III – Do Direito à Educação e do Dever de Educar

A educação básica é um direito de todos e dever do Estado e da família, conforme é estabelecido na Constituição Federal.  Conforme o Art.5º da LDB o acesso obrigatório a ela, dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete anos de idade) é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão acionar o poder público para exigi-lo”. A garantia de acesso ao ensino obrigatório (educação básica) é o primeiro dever do estado, os demais são atendidos conforme as prioridades constitucionais e legais.

Observem, porém, que a existência do Art. 5º da LDB, a rigor, não precisaria existir se o Estado, de fato, democraticamente, criasse vagas para todas as crianças e jovens em todo território nacional, que radicalmente tivesse intenções de universalização da educação. Hoje em dia, 2021, para se ter uma ideia, ainda persistem déficits de matrículas na pré-escola, somente 81% das crianças estão matriculadas, o que significa que cerca de 1,2 milhão de crianças dessa faixa etária ainda não frequentam a escola.

 Quando nos debruçamos sobre a LDB, querendo apreender a sua essência, é inevitável que sobressaia nela a persistência de um ranço utilitarista muito caro à nossa elite do atraso. Sempre esteve longe desta elite a ideia de universalização da educação de qualidade referenciada socialmente; o dever moral do estado de oferecê-la, por esta razão deixa de atingir a todos imediatamente, é preciso que os indivíduos exijam o seu cumprimento a partir de procedimentos legais que ele próprio disponibiliza. Assim, a universalização do ensino fundamental a partir de 1996 próxima de estar completada, antes de ser uma ação creditada exclusivamente ao Estado, tem sido resultado de muitas pressões da sociedade civil organizada por meio de manifestações de rua, greves, participação em audiências públicas... Em alguns momentos fica claro que os cálculos do Estado e da elite do atraso admitem que a população prefere outras ações ou como diria Bentham, “um prazer maior a longo prazo” (apud Rivera-Sotelo, 2011). Na França, por exemplo, a educação inclusiva de todas as crianças, sem qualquer distinção, é a primeira prioridade nacional: “o direito à educação é assegurado a todos para que possa desenvolver a sua personalidade, elevar o seu nível de formação inicial e contínua, inserir-se na vida social e profissional, exercer a sua cidadania(Code de l'éducation, 2022).



[1] Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenador do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Theotonio dos Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ).

Quando a escolha é péssima

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