27.11.25

Progressão Parcial e Justiça Educacional: Análise Crítica do Decreto nº 49.994/2025 do Estado do Rio de Janeiro

 



 Zacarias Gama

Professor Titular Aposentado da UERJ



Introdução

Em sociedades que se pretendem democráticas, a escola pública tem a função civilizatória de assegurar o direito constitucional à aprendizagem e a continuidade das trajetórias educativas. No entanto, a persistência da reprovação e da evasão no Brasil revela uma contradição estrutural: o sistema educacional produz, ele próprio, parte significativa dos fracassos que deveria prevenir. Nesse cenário, o Decreto nº 49.994/2025, que institui a Política Estadual Excepcional de Progressão Parcial no Estado do Rio de Janeiro, emerge como esperançosa tentativa de reorganizar o fluxo escolar e reduzir distorções que historicamente penalizam estudantes de baixa renda, negros, periféricos e que já acumularam defasagens em sua trajetória.

Partindo de uma perspectiva materialista e crítica, este texto analisa a política à luz de evidências internacionais, dados empíricos de pesquisas recentes e quinze teses de doutorado produzidas entre 2001 e 2025. Busco compreender não apenas o decreto em si, mas as condições estruturais que permitem — ou inviabilizam — sua implementação. A pergunta de fundo é filosófico-pedagógica: uma política de progressão parcial pode ser instrumento de justiça educacional ou corre o risco de se tornar apenas resposta tecnocrática a um problema estrutural?

A Política de Progressão Parcial

O decreto estabelece que estudantes do Ensino Médio, entre 15 e 17 anos, com rendimento insatisfatório em até seis componentes curriculares possam avançar de série, vinculados a planos especiais de estudo, diagnósticos periódicos, recuperação orientada e acompanhamento sistemático. Diferentemente da antiga “aprovação automática”, a medida pressupõe contrapartidas pedagógicas obrigatórias e registro contínuo das ações pelas escolas.

Além dos dispositivos pedagógicos, a sua implementação dependerá de monitoramento pelas Diretorias Regionais e pela SEEDUC, com avaliação anual do impacto sobre indicadores como retenção, abandono, infrequência e recomposição das aprendizagens.

Contudo, a recepção social do decreto foi heterogênea. Enquanto setores governistas o defendem como resposta racional à evasão, o SEPE o interpreta como tentativa de inflar artificialmente indicadores, e conselheiros estaduais criticam sua elaboração verticalizada. Estudantes, por sua vez, enxergam simultaneamente uma flexibilização das exigências e uma sobrecarga potencial — dado que um aluno reprovado em seis disciplinas poderá cursar até dezoito no ano seguinte. Essas percepções foram registradas pelo jornal O Globo  (26/11/2025) e revelam tensões entre expectativas, discursos e condições reais de trabalho escolar.

Metodologia e Desenvolvimento

A minha análise articula três fontes: experiências internacionais (França, Inglaterra, Finlândia, Singapura, Chile e Hong Kong), relatórios da OCDE sobre repetência, equidade e transições escolares e quinze teses de doutorado (2001–2025) sobre repetência, progressão, baixo desempenho e evasão em programas de excelência (Capes ≥ 5).

Três questões orientam o meu estudo: a progressão parcial nos termos do decreto reduz desigualdades? Barreiras institucionais e culturais comprometem sua eficácia? É pedagogicamente viável e efetiva?

Experiências Internacionais

As práticas globais mostram que a repetência é exceção, não regra. Destacam-se alguns pontos:

1.      França: a progressão é definida por avaliações contínuas. Há recuperação formal e repetência pontual. Estudos mostram que regiões com maior concentração de alunos de origem migrante apresentam índices de repetência superiores, revelando correlação entre desigualdade e fluxo.

2.      Inglaterra: a aprovação depende do desempenho regular e dos exames nacionais (GCSE). Escolas com forte acompanhamento individual reduzem significativamente a necessidade de retenção.

3.      Finlândia: a repetência é raríssima. O sistema oferece apoio imediato, intervenção precoce e forte formação docente. Dados do National Agency for Education indicam que 96% dos estudantes concluem o Ensino Básico sem defasagem. A escola não pune: intervém.

4.      Singapura: o sistema educacional é muito competitivo, porém oferece suportes robustos ao estudantes: monitoramento semanal, grupos de reforço e materiais personalizados. Estudos mostram que estudantes que recebem tutoria têm probabilidade 40% menor de sofrer retenção.

5.      Chile: seu modelo é muito semelhante ao brasileiro, com exigência de médias mínimas. Pesquisas locais indicam que a repetência afeta sobretudo estudantes de baixa renda — padrão idêntico ao do Brasil.

6.      Hong Kong: é alta a pressão por resultados, coexistindo modelos distintos de promoção. A repetência, no entanto, tende a se concentrar em escolas de menor prestígio.

Pequeno Estado da Arte

A OCDE tem produzido documentos como No More Failures (2007) e PISA 2022: Reduzir Drasticamente a Repetência e eles convergem em três pontos: a repetência aprofunda desigualdades; é ineficaz do ponto de vista pedagógico e a existência de apoio pedagógico estruturado produz efeitos significativamente melhores. É consensual em tais documentos que repetir não ensina.

As produções acadêmicas, por sua vez, afluem em três dimensões.

1. Dimensão Epistemológica

As teses rejeitam explicações biologizantes (“alunos incapazes”), moralistas (“alunos que não se esforçam”) e individualistas (“fracasso como responsabilidade pessoal”). Nelas, o fracasso escolar é entendido como fenômeno socialmente produzido, associado a desigualdades de renda, raça, território, acesso à educação infantil e currículos rígidos.

Os exemplos recorrentes nas teses demonstram que estudantes negros têm probabilidade maior de sofrer reprovação nas redes estaduais, mesmo controlando variáveis socioeconômicas; alunos de áreas periféricas acumulam defasagens desde os anos iniciais, o que lhes aumenta progressivamente a chance de retenção no Ensino Médio; e escolas com cultura de punição apresentam taxas de desistência duas vezes superiores às que utilizam avaliação formativa.

A conclusão epistemológica central nas quinze teses é inequívoca: o fracasso não reside no estudante, mas na arquitetura dos sistemas social e educacional.

2. Dimensão Empírica

Os achados empíricos apontam causas e efeitos estruturais dos principais fatores associados à repetência, que são: baixa renda familiar; escolaridade materna reduzida; pertencimento racial (negros e pardos); moradia periférica; IDEB baixo; ausência de educação infantil de qualidade. Os impactos mensuráveis que provocam nos estudantes são responsáveis pela queda persistente no desempenho posterior; auto percepção negativa da capacidade; sentimento de não pertencimento; ruptura de vínculos com colegas; risco ampliado de evasão.

Os exemplos empíricos frequentes nas teses evidenciam que os estudantes que repetem o 1º ano do Ensino Médio têm probabilidade quatro vezes maior de abandonar a escola até os 18 anos. Também provam que os exemplos dados têm efeitos sobre o trabalho docente: desgaste emocional; tempo excessivo dedicado à manutenção da disciplina das turmas; impotência diante da desigualdade acumulada.

Em escolas vulneráveis, é recorrente aparecer como “solução de sobrevivência” a redução do tamanho das turmas e o afastamento os “alunos-problema”. As pesquisas educacionais, contudo, mostram que intervenções como tutoria, flexibilização curricular e suporte psicossocial reduzem drasticamente os riscos.

3. Dimensão Política

As teses defendem que a repetência seja excepcional e não padrão, e evitável desde que articulada a planos individualizados; avaliações formativas; interdisciplinaridade; reorganização curricular; políticas territoriais integradas; financiamento adequado; e redução do número de alunos por turma.

Todas elas rechaçam o binômio “aprovar automaticamente × reprovar para corrigir comportamentos”. Reprovar não educa.

Conclusão

O Decreto Fluminense nº 49.994/2025, não obstante os seus problemas, representa um esforço de alinhar o sistema estadual às melhores evidências nacionais e internacionais. Seu mérito está em deslocar o debate da lógica punitiva para a lógica do acompanhamento pedagógico. No entanto, nenhuma política de progressão parcial se sustenta apenas pela mudança normativa. Sem infraestrutura, não há pedagogia; sem professores suficientes bem formados, não há suporte individualizado; sem financiamento, não há qualidade.

A tarefa é monumental: transformar a cultura escolar, superar a pedagogia da punição e construir práticas que assegurem o direito à aprendizagem de mais de meio milhão de estudantes. Isso exige concurso público para haver professores de apoio, recomposição salarial à luz das remunerações para as formações de mesmo nível, ampliação da equipe pedagógica, apoio psicossocial, políticas intersetoriais e formação docente continuada. Exige, sobretudo, abandonar a crença simplista de que reprovar educa.

Se a progressão parcial será instrumento de justiça educacional ou mera resposta administrativa dependerá menos do decreto e mais das condições materiais que o Estado decidir mobilizar. O desafio é, portanto, pedagógico, político e civilizatório: garantir que a escola pública deixe de produzir fracasso e comece, de fato, a produzir futuro. Não dá mais para empurrar o problema irresponsavelmente.


Referências bibliográficas: 

ANDRADE, Júlio César. Trajetórias interrompidas: jovens, repetência e abandono no ensino médio. 2020. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

ANI, João Luiz. Determinantes do fluxo escolar no ensino médio no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BARBOZA, Thiago Augusto. Políticas de correção de fluxo escolar: impactos no desempenho e na permanência de estudantes. 2014. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

CARVALHO, Daniela Cabral. Evasão e permanência no ensino médio: um estudo sobre trajetórias e desigualdades. 2013. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 

FIELD, Simon; KUCZERA, Małgorzata; PONT, Beatriz. No More Failures: Ten Steps to Equity in Education. Paris: OECD Publishing, 2007. ISBN 978-9264032590. OECD+1

FRANCESCHINI, Vanessa Leme Cardoso. Reprovação escolar: um estudo quanti-quali sobre a permanência e o fracasso escolar no ensino fundamental e médio. 2015. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FREITAS, Heloísa Fogaça. Reprovação e seus determinantes estruturais: um estudo em escolas públicas brasileiras. 2021. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

GOMES, Renata Corrêa. Fracasso escolar e desigualdade: uma análise das condições materiais e simbólicas da repetência. 2016. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

JACOMINI, Márcia Aparecida. Reprovação escolar na opinião de pais e alunos: um estudo sobre os ciclos e a progressão continuada na Rede Municipal de Ensino de São Paulo. 2008. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.

MARTINS, Luciana de Jesus. Juventude, fracasso escolar e abandono: fatores associados à ruptura do percurso educacional. 2017. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

NASCIMENTO, Célia Regina. Reprovação escolar no ensino médio: sentidos, práticas e consequências. 2012. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

PEREIRA, Marta Lígia. Políticas de avaliação, repetência e exclusão: permanência de velhas lógicas no ensino básico. 2010. Tese (Doutorado em Educação) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

REZENDE, Rodrigo Caetano. Determinantes socioeconômicos e institucionais do abandono escolar no ensino médio. 2018. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SANTOS, André Luiz. Distorção idade-série e desigualdades escolares no Brasil. 2016. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SILVA, Ana Paula. Progressão continuada e dispositivos escolares: gestão, avaliação e efeitos sobre o fluxo escolar. 2014. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.

VASCONCELOS, Lúcia Helena. Efeitos da repetência sobre trajetórias escolares de jovens: evidências longitudinais. 2019. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.







25.11.25

A HEGEMONIA INUMANA DA ECONOMIA DIGITAL E OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS NO SÉCULO XXI

 



A digitalização integral da economia — desde a produção industrial até o consumo cotidiano mediado por plataformas — inaugura um novo regime de poder que ultrapassa os limites tradicionais do capitalismo industrial. O que está em curso não é apenas a substituição de máquinas por máquinas mais inteligentes, mas a constituição de um modo de produção algorítmico, baseado em decisões automatizadas, opacidades técnicas e novas formas de concentração de poder. Esse processo gera riscos democráticos inéditos: erosão do controle social, fragilização das instituições, formação de elites tecnológicas invisíveis e aprofundamento das desigualdades estruturais. No caso brasileiro, tais tensões são ampliadas pelo caráter incompleto de nosso processo democrático e pela fragilidade histórica das instituições de participação popular.

Assim, compreender a emergência dessa hegemonia digital e suas contradições se torna urgente para pensar não apenas o futuro da economia, mas o futuro da própria democracia. Antes de avançar para a análise, é necessário formular algumas questões que orientam o debate. Quais mecanismos da economia digitalizada concentram poder de decisão fora do alcance democrático? Em que medida algoritmos e plataformas moldam comportamentos, escolhas e valores sem mediação consciente dos cidadãos? Como a lógica produtiva guiada por IA tende a reforçar desigualdades econômicas e simbólicas já existentes no Brasil? Quais são as contradições internas do capitalismo algorítmico que tensionam a promessa de eficiência e bem-estar? Como recuperar o controle social e institucional sobre processos automatizados que operam sem transparência nem accountability?

II

Se por um lado a economia digitalizada representa uma das mais expressivas inovações técnicas deste século, por outro constitui um risco profundo para processos democráticos ainda em consolidação, como o brasileiro. A introdução da inteligência artificial nos mecanismos de produção, circulação, vigilância e decisão econômica cria elites técnicas opacas, compostas não apenas por especialistas humanos, mas sobretudo por sistemas algorítmicos que operam sem rosto, sem responsabilidade política e sem vínculo com o bem comum.

Essas elites não são simplesmente grupos profissionais; são infraestruturas inteiras que se tornam indispensáveis ao funcionamento da sociedade. O problema não está apenas na automação, mas no deslocamento do centro de comando da vida social para estruturas técnicas governadas por corporações globais. A democracia, construída sobre a ideia moderna de soberania popular, passa a conviver com uma soberania paralela: a soberania dos dados, exercida pelos donos dos sistemas que capturam, processam e preveem comportamentos.

A hegemonia digital introduz contradições severas no modo de produção capitalista. De um lado, promete eficiência, redução de custos e expansão do lucro; de outro, converte trabalhadores em resíduos funcionais, substituíveis e continuamente avaliados por métricas que ignoram dimensões humanas fundamentais — criatividade, cooperação, solidariedade. O capitalismo algorítmico tende a reduzir a complexidade humana à previsibilidade computacional, o que gera tensões profundas com ideais de felicidade, emancipação e autonomia.

A contradição fundamental emerge da própria lógica que sustenta o sistema: a busca infinita por otimização. A IA não opera com categorias éticas, mas com métricas. Isso implica que valores humanos — dignidade, liberdade, bem-estar — tornam-se ruídos estatísticos. É essa dissociação entre racionalidade técnica e racionalidade humana que produz o que podemos chamar de hegemonia inumana do modo de produção digital.

Além disso, o caráter transnacional das plataformas restringe drasticamente a capacidade dos Estados nacionais de regular o setor. Em países como o Brasil, onde a democracia ainda enfrenta disputas internas entre projetos autoritários e emancipatórios, essa vulnerabilidade é ainda mais grave. A dependência tecnológica pode se converter em dependência política.

A recuperação de controle democrático sobre a economia digital exige um conjunto articulado de medidas: regulação pública forte, laica e baseada em evidências, capaz de reduzir assimetrias informacionais e impor transparência algorítmica; governança democrática dos dados, tratando-os como bem comum e não como propriedade exclusiva de plataformas privadas; educação crítica em tecnologia, não reduzida ao ensino técnico, mas focada na compreensão social e política dos sistemas digitais; políticas de redistribuição e inclusão produtiva, evitando que o avanço tecnológico aprofunde desigualdades históricas, e fortalecimento de instituições democráticas clássicas, impedindo que decisões estratégicas sejam deslocadas para estruturas automatizadas e não eleitorais.

Essas ações não buscam frear o desenvolvimento tecnológico, mas reinscrever a técnica no campo da política, garantindo que as máquinas estejam a serviço dos seres humanos — e não o contrário. A digitalização completa do modo de produção inaugura uma etapa inédita do capitalismo, marcada pela centralidade dos algoritmos e pela proliferação de poderes invisíveis. Sua promessa de eficiência não pode obscurecer o fato de que, sem controle social, essa infraestrutura global pode ameaçar a própria ideia de democracia. O desafio contemporâneo, portanto, consiste em recuperar a primazia humana sobre processos automatizados, evitando que a racionalidade técnica se converta em novo despotismo. Em sociedades como a brasileira, onde a democracia ainda busca solidez, esse debate não é apenas acadêmico: é um imperativo histórico.


Referencias bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
O’NEIL, Cathy. Armas de destruição matemática: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2020.
PASQUALE, Frank. A sociedade da caixa-preta: algoritmos, big data e inteligência artificial. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2021.
SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

 

 


24.11.25

Por que as Sociedades Não Mudam Apenas com Educação? A Pedagogia da Realidade


 Em diversas sociedades africanas, a educação é concebida como uma responsabilidade distribuída por toda a comunidade. A aprendizagem infantil é entendida como um processo social que não se esgota na escola, mas se desenrola no convívio cotidiano, nos rituais comunitários, na circulação de saberes tradicionais e na participação coletiva em tarefas e cuidados. Essa concepção contrasta com narrativas contemporâneas que atribuem à escola um poder quase redentor, como se fosse capaz de, sozinha, alterar estruturas sociais profundamente enraizadas.

Autores marxistas como Louis Althusser e Antonio Gramsci, embora com formulações distintas, convergem para uma compreensão semelhante: a escola integra um conjunto de aparelhos ideológicos que moldam subjetividades e reproduzem — ou contestam — as relações sociais de produção. Assim, a educação não constitui um agente autônomo de transformação, mas um componente de um sistema social mais amplo.

O objetivo desta postagem é examinar esses limites da escola como instituição isolada e analisar por que a transformação social exige, necessariamente, a articulação entre condições materiais, estruturas produtivas, instituições políticas e processos culturais. Somente alguém em estágio de absoluta ignorância ou sob efeito de alguma substância alucinógena poderia considerar a má qualidade educacional de dada sociedade um projeto político e intencional das elites.

Educar é um processo social ampliado

A noção de que a educação de uma criança é responsabilidade coletiva não é metafórica. Ela reflete práticas concretas de cuidado compartilhado, aprendizagem por observação, transmissão simbólica e divisão comunitária de funções sociais. Antropologicamente, a educação sempre foi um fenômeno distribuído entre diversos agentes sociais: família, pares, grupos etários, atividades produtivas e, mais recentemente, instituições formais.

A partir da modernidade, a escolarização formalizou apenas uma parte desse processo. Elementos como mídia, redes sociais, condições de moradia, estabilidade econômica, alimentação, saúde pública e até a materialidade urbana passaram a atuar como coautores na construção das subjetividades e competências.

Dessa perspectiva, torna-se evidente que atribuir à escola a responsabilidade exclusiva por transformar uma sociedade corresponde a uma redução analítica e a um equívoco político.

A escola como aparelho ideológico: Althusser e Gramsci

A leitura de Louis Althusser sustenta que a escola é o principal aparelho ideológico do Estado na sociedade capitalista. Ao socializar indivíduos nos valores dominantes, ela contribui para a reprodução das relações de produção ao formar trabalhadores dóceis, aptos e conformados ao modo de produção vigente. Gramsci, por sua vez, diferente de Althusser, embora reconheça a função reprodutora da escola, concebe-a escola um espaço dialético. Ela pode servir à hegemonia burguesa, mas também pode nutrir projetos contra-hegemônicos ao promover pensamento crítico e organização intelectual coletiva. A instituição escolar, portanto, não é unívoca, mas campo de disputa.

Essa convergência entre tradições comunitárias africanas e perspectivas marxistas põe em evidência que a educação, isolada, é estruturalmente incapaz de alterar sozinha as bases materiais que sustentam qualquer ordem social.

Educação e condições materiais de existência

A crença de que a educação pode, por si só, “salvar” uma sociedade parte de uma lógica voluntarista desconectada das dinâmicas materiais. Embora a educação produza qualificações, ela não cria empregos, pois estes dependem da estrutura produtiva, dos investimentos e da capacidade tecnológica de uma economia. Da mesma forma, a escola e a educação não alteram, autonomamente, a distribuição de renda ou terra, processos que exigem ação política, reforma institucional e disputa econômica.

Por mais qualificados que sejam os professores de uma escola, a aprendizagem significativa torna-se impossível para crianças expostas à fome, insegurança habitacional, doenças ou violência. A escola, portanto, é diretamente condicionada por determinantes extrapedagógicos. Esses limites da escola decorrem da interdependência entre os aparelhos ideológicos e os aparelhos repressivos do Estado, bem como entre o sistema educacional e as condições materiais mais amplas da vida social.


A Revolução Industrial e o mito do papel exclusivo da educação

A análise histórica da Revolução Industrial europeia ilustra de forma clara a insuficiência da educação como motor autônomo de desenvolvimento. Inglaterra e Alemanha possuíam, já no período pré-industrial, taxas de alfabetização entre 60% e 70%, motivadas em grande parte pela leitura religiosa individualizada. O salto qualitativo do século XVIII e XIX resultou não da escolarização isolada, mas de um conjunto de transformações articuladas:

  • inovação tecnológica e mecanização produtiva;
  • aumento da segurança alimentar;
  • ampliação do emprego industrial;
  • crescimento e redistribuição parcial da riqueza;
  • melhorias em saúde, saneamento e urbanização;
  • fortalecimento institucional e consolidação de mecanismos de controle social;
  • expansão de livros, jornais e revistas, com pluralidade de visões de mundo;
  • relativa estabilidade familiar e comunitária.

A educação formal participou desse processo, mas não o protagonizou isoladamente.

Conclusão

Esta postagem quer demonstrar que a escola, embora necessária, é estruturalmente insuficiente para transformar uma sociedade por si só. A emancipação social depende de uma configuração ampla de instituições, condições materiais de existência, dinâmica produtiva, estabilidade econômica e estruturas simbólicas. A educação escolar só adquire potencial transformador quando integrada a processos históricos mais vastos, capazes de alterar tanto as bases materiais quanto as formas ideológicas de reprodução social.

Dessa forma, não há fundamento empírico ou teórico para atribuir à escola o papel de agente isolado de salvação social. A mudança estrutural exige reformas econômicas, políticas, tecnológicas e culturais que ultrapassam a esfera educacional.


Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vários volumes.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1970.

 


23.11.25

O Brasil Real e o Brasil Imaginário: Anatomia do Vira-Latismo

 


Ontem participei de uma roda de conversa que me deixou sinceramente alarmado com a lama rala em que muitas discussões sobre o Brasil ainda se chafurdam. É impressionante como proliferam opiniões que, embora declamadas com a convicção dos iluminados, não carregam um grama de evidência empírica. Tornou-se quase um vício nacional: criticar o país de forma automática, ideologizada, repetindo um pessimismo que não nasce da observação do mundo, mas de uma espécie de reflexo condicionado — um vira-latismo estrutural, persistente, herdado, acrítico, quase orgânico. Em vez de recorrer a dados, comparações internacionais ou análises mínimas, prefere-se reciclar frases prontas, como se pensar exigisse esforço demais e a ignorância oferecesse algum alívio moral.

E de nada adianta que estrangeiros elogiem o país com base em fatos experienciados por eles — nossa capacidade de negar a realidade às vezes beira o cômico. Se eles reconhecem o SUS como um dos maiores sistemas públicos de saúde do planeta, alguns “caramelos” se apressam em desqualificá-lo, mesmo quando se beneficiaram diretamente dele, talvez até em um transplante realizado entre os milhares feitos gratuitamente pelo SUS todos os anos. Se os gringos elogiam o Rio, São Paulo ou Belém, surge de imediato um coro nacional que reduz tudo à violência das facções, milícias e traficantes,  que qualquer obra pública seja um truque para enganar turistas. É o tipo de reação que não nasce da lucidez, mas da incapacidade de enxergar o próprio país sem o filtro cinzento do ressentimento.

E o mais grave é que essa postura vem acompanhada de um desconhecimento monumental. Muitos não sabem — e não se dão ao trabalho de saber — que a Embraer figura entre as maiores fabricantes de jatos civis do mundo; que quase 90% da nossa matriz elétrica é renovável; que o programa espacial brasileiro tem reconhecimento internacional; ou que certos índices de violência urbana, quando comparados honestamente, são menos sombrios do que os de cidades norte-americanas celebradas como centros civilizados, como é o caso de Chicago e Detroit. Falando de educação, então, o espetáculo chega a ser grotesco: os “caramelos”, especialistas improvisados, ignoram que o país alcançou praticamente a universalização da educação básica, que os programas de assistência estudantil são vastos, que o IDEB é referência no exterior, e que os Institutos Federais figuram entre as escolas públicas de melhor desempenho no país, atuando muitas vezes como motores tecnológicos e econômicos de regiões inteiras.

No fim das contas, o problema não é o Brasil — é a preguiça cognitiva. É a recusa sistemática de comparar, investigar, duvidar, interpretar. É o hábito de transformar ignorância em opinião e opinião em certeza. Quando um estrangeiro reconhece nossas qualidades, a reação imediata é desconfiar, como se a lucidez alheia fosse um insulto pessoal. Esse impulso não vem do excesso de consciência crítica, mas justamente da sua ausência. Assim, as conversas se degradam em ruído, as convicções viram slogans e a inteligência coletiva fica refém de um derrotismo mal-informado.

Se queremos elevar o debate público — e abandonar de vez esse automatismo que nos apequena — precisamos recuperar uma atitude verdadeiramente racional: observar, comparar, checar, contextualizar. Só então poderemos falar do Brasil com a seriedade que ele merece, livres do ressentimento, livres do fatalismo, e finalmente capazes de encarar a realidade como adultos.

 

18.11.25

Arquitetura Educacional e o Discurso da Potência Imperial no Brasil (1865-1875)

          Foto em preto e branco de torre de prédio

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

                    Centro Cultural José Bonifácio (antiga Escola José Bonifácio) - Gamboa

Esta postagem retoma e atualiza as reflexões iniciadas no artigo “Uma estratégia de unificação curricular: os estatutos das escolas públicas de instrução primária (Rio de Janeiro - 1865)”, publicado em 1999, escrito por mim (Zacarias Gama) e José Gonçalves Gondra e apresentado na 21ª Reunião Anual da ANPEd em 1998. Trinta anos após volto ao texto e procuro correlaciona o discurso legislativo presente no texto publicado com a materialidade arquitetônica do ensino público no Município Neutro. O objeto central são as fotografias que fiz de algumas das chamadas “Escolas do Imperador”, um conjunto que inclui o Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, a Escola Municipal Gonçalves Dias, o Centro Cultural José Bonifácio (antiga Escola José Bonifácio) e o Colégio Pedro II (Campus Centro).


Foto preta e branca de um edifício

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Escola Municipal Gonçalves Dias – Campo de São Cristóvão

 

Meu principal interesse reside em destacar a monumentalidade arquitetônica dessas construções como um projeto deliberado de afirmação política, civilizatória e pedagógica do Segundo Reinado. Este investimento contrasta significativamente com períodos posteriores, como o Republicano, nos quais a escola pública foi frequentemente reduzida a estruturas efêmeras e despretensiosas (como as escolas de compensado), evidenciando a descontinuidade no compromisso estatal com a qualidade do serviço prestado e, paradoxalmente, com o próprio povo. A República, em muitos momentos, trabalha pouco pela afirmação do ideal de democracia e parece prezar o povo, sobre os integrantes das classes sociais mais necessitadas.

As minhas fotografias podem ser tratadas como fontes primárias para a análise iconográfica e formal. O conjunto de prédios, majoritariamente idealizado por Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, arquiteto concursado do Império, como se pode observar, caracteriza-se pela imponência e pelo estilo eclético de matriz neoclássica. A análise de conjunto revela uma clara uniformidade de discurso produzida por elementos recorrentes: a simetria estrita, o tratamento formal das aberturas e, em particular, a rusticação do térreo (visível na Escola José Bonifácio). Tais elementos constituem um vocabulário arquitetônico oficial para o ensino/instrução pública, reforçando a ideia de que a forma imponente era um projeto de Estado. A localização estratégica dos edifícios, em áreas centrais e de passagem da Corte, não era fortuita, mas uma ação de demarcação territorial que inscrevia o projeto educacional na paisagem urbana.

Foto em preto e branco de rua com prédios ao fundo

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Colégio Pedro II (Campus Centro)

 

A forma arquitetônica demonstra o seu papel de suporte à função pedagógica. A construção desses edifícios escolares permanentes garantia que o ensino unificado e disciplinado, conforme preconizado nos estatutos de 1865, ocorresse em ambientes salubres e respeitáveis, superando a precariedade anterior. Não eram, porém, escolas de meninos e meninas como as de hoje.

A monumentalidade, evidente em todos os prédios, elevou o status da instrução pública primária de um serviço doméstico para uma instituição sagrada e essencial ao Império. Os edifícios foram concebidos para inspirar reverência, ordem e disciplina, reforçando o rigor moral e curricular estatutário.

A escala e a solidez dessas construções funcionaram como um poderoso discurso de poder. Ao replicar os modelos arquitetônicos europeus (notadamente franceses), o Império afirmava-se como uma potência tropical civilizada e estável, capaz de realizar obras cívicas de grande envergadura e garantir a longevidade de seus projetos para uma população branca, católica e senhorial.

Foto preta e branca de uma igreja

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

CE Amaro Cavalcanti (antiga Escola da Freguesia de Nossa Senhora da Glória) – Largo do Machado

 

 

A tese de que a arquitetura funcionava como um dispositivo de controle, nos termos propostos por Michel Foucault, é fácil de ser sustentada. O investimento em edifícios padronizados e permanentes prova que a unificação da qualidade da instrução pública não era uma política efêmera, mas um projeto de Estado que exigia infraestrutura à sua altura. A forma simétrica e imponente de todas as construções servia como um facilitador da disciplina pedagógica e da vigilância, inserindo os corpos dos estudantes na ordem estatal e escravocrata.

A convergência entre a norma legal (1865) e o investimento material (1870 em diante) confirma a profundidade e a seriedade da estratégia educacional Imperial.

 

Referências Bibliográficas

  • GAMA, Z.; GONDRA, José G. Uma estratégia de unificação curricular: os estatutos das escolas públicas de instrução primária (Rio de Janeiro - 1865). Revista História da Educação, v. 3, n. 5, jan./jul. 1999.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. (Sugestão para fundamentação teórica)
  • REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadros da arquitetura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2018.
  • MACHADO, Humberto. A Capital da Ordem: O Colégio Pedro II no século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

 

12.11.25

A crise da qualidade na educação superior e o fetiche da mensuração

 


A divulgação do Ranking Universitário Folha (RUF) 2025, que traz USP, Unicamp, UFRGS, UFMG e UFRJ nas primeiras posições, reacende o debate sobre o significado de “qualidade” na educação superior brasileira. A queda da UFRJ nos últimos anos, em particular, não pode ser lida como simples oscilação numérica, mas como expressão concreta do descaso dos poderes públicos diante de uma universidade de pesquisa do porte da UFRJ. A ausência de investimentos consistentes em ensino, pesquisa, extensão e inovação tem comprometido a capacidade institucional de sustentar sua missão pública e científica.


🎯 Rankings ou sintomas?

Rankings como o RUF ou o QS World University Rankings se apresentam como medições objetivas de qualidade, mas o que realmente expressam é o grau de investimento estatal e o nível de precarização das condições de produção do conhecimento. Ao reduzir a complexidade da vida universitária a indicadores numéricos — publicações, citações, patentes, empregabilidade — essas classificações transformam sintomas estruturais em aparências de desempenho, legitimando desigualdades históricas e naturalizando a lógica da competição em um espaço que deveria ser de cooperação científica.

A fetichização da medida — essa crença de que o número traduz a realidade — revela o predomínio de uma racionalidade tecnocrática e neoliberal, que converte o conhecimento em capital simbólico mensurável. Em vez de fortalecer o papel emancipador da universidade, a quantificação serve como instrumento de regulação e controle, impondo uma cultura de auditoria permanente.


⚙️ A ontologia da medida

A obsessão contemporânea pela quantificação não é apenas técnica — é ontológica e ideológica. Ela ecoa uma tradição que remonta à filosofia hegeliana, para a qual a passagem da quantidade à qualidade representa um salto dialético. Marx e Engels reelaboraram essa ideia no terreno materialista, mostrando que a quantidade, quando elevada a critério absoluto, perde a conexão com a realidade concreta.

Lukács, no século XX, identifica nessa primazia do número uma das formas da reificação moderna: o processo pelo qual a vida social e o trabalho intelectual se submetem à lógica abstrata da mercadoria.

Aplicada à educação, essa reificação manifesta-se na crença de que o valor de uma universidade pode ser expresso em índices e posições de ranking. Contudo, a qualidade do ensino superior não é uma propriedade mensurável, mas uma relação social e histórica — dependente das condições materiais de trabalho, da autonomia institucional e do compromisso público com a produção de conhecimento crítico.


📉 O caso da UFRJ

A queda da UFRJ não resulta de um suposto déficit de gestão ou eficiência, mas do desmonte do Estado e da retração dos investimentos públicos em ciência e tecnologia. A ausência de uma política nacional consistente para o ensino superior converte o ranking em espelho distorcido de um sistema em crise. Assim, a mensuração cumpre uma função ideológica: transforma a precarização em dado neutro, a desigualdade em mérito e o abandono em evidência estatística.

Recuperar o sentido qualitativo e emancipador da educação exige romper com o fetiche da mensuração. A qualidade não é um número: é uma relação viva entre sujeitos que produzem, transmitem e transformam o conhecimento.


🌱 Caminhos para uma política pública emancipadora

A superação dessa crise requer um projeto nacional de educação superior que devolva à universidade pública seu papel central na construção de uma sociedade democrática e soberana. Isso implica:

  • Financiamento público estável e crescente;

  • Valorização das carreiras docentes e técnicas;

  • Fortalecimento da pesquisa básica;

  • Integração efetiva entre ensino e extensão;

  • Respeito pleno à autonomia universitária.

Mais do que disputar posições em rankings internacionais, o desafio é construir um sistema público de ensino superior capaz de formar sujeitos críticos, produzir conhecimento socialmente relevante e sustentar a independência científica e cultural do país.

Só assim será possível falar em qualidade — não como número, mas como forma de vida e de pensamento que afirma o humano contra a lógica abstrata do capital.



Visite o meu blog de fotografias: www.zjgamafotografando.blogspot.com  


7.11.25

Paulo Freire sem rótulos: um educador brasileiro da libertação

 


Paulo Freire é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da educação do século XX. Sua obra atravessou fronteiras, inspirou movimentos populares e transformou práticas pedagógicas em todo o mundo. Mas com a notoriedade vieram também os rótulos — muitos deles imprecisos, outros francamente mal-intencionados. Este texto tem como objetivo restituir a integridade teórica de Freire, situando-o corretamente no campo do pensamento brasileiro, sem forçá-lo a encaixes ideológicos que obscurecem sua originalidade.

Paulo Freire não foi comunista, nem marxista, nem gramsciano. Sua pedagogia não nasce da ortodoxia teórica, mas da experiência concreta do povo brasileiro, da escuta atenta das falas populares, da convivência com a pobreza e a exclusão. Seu método de alfabetização não visava apenas ensinar a ler palavras, mas a ler o mundo — e, a partir daí, transformá-lo.

Freire emerge de um caldo cultural e político específico: a Igreja progressista, influenciada pela teologia da libertação, que via na educação um caminho de emancipação espiritual e social; e o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), onde se discutia o desenvolvimento nacional com base em soberania, cultura e reforma de base. Essas influências moldaram um pensamento humanista, ético e esperançoso, mais próximo de Hegel e Karl Mannheim do que de Marx ou Gramsci.

Reduzir Freire a um “marxista cultural” ou a um “doutrinador ideológico” é não apenas um erro teórico — é uma injustiça histórica. Da mesma forma, tentar encaixá-lo à força no campo gramsciano é ignorar as diferenças fundamentais entre sua pedagogia e a teoria da hegemonia. Freire não propõe a tomada do poder — propõe a formação do sujeito. Não organiza partidos — organiza consciências. Não impõe verdades — cria espaços de diálogo.

Paulo Freire é um pensador da esperança ativa, da escuta radical, da palavra como gesto de libertação. Seu legado pertence ao Brasil — e ao mundo — não por sua filiação ideológica, mas por sua fidelidade ao humano.


Visite o meu blog de fotografias, a sua visita será um prazer: https://zjgamafotografando.blogspot.com/ 


Progressão Parcial e Justiça Educacional: Análise Crítica do Decreto nº 49.994/2025 do Estado do Rio de Janeiro

   Zacarias Gama Professor Titular Aposentado da UERJ Introdução Em sociedades que se pretendem democráticas, a escola pública tem a f...