29.11.25

Por uma nova escola pública: conhecimento, democracia e emancipação no século XXI

 




Zacarias Gama

ex-Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro



Problematizando

A crise contemporânea da escola não é um acidente conjuntural nem o resultado da suposta decadência moral dos estudantes ou da incompetência dos professores. Trata-se, antes, de uma crise do modelo de escola, constituído entre os séculos XVIII e XIX como aparelho disciplinar, organizador das hierarquias sociais e difusor da racionalidade necessária ao capitalismo industrial. O que assistimos hoje é o esgotamento histórico dessa instituição diante de transformações profundas no modo de produção, na cultura, nas tecnologias e nas formas de sociabilidade juvenil. A análise crítica da escola tradicional — inaugurada por Althusser, Bourdieu, Passeron, Bowles & Gintis e aprofundada por autores como Giroux, Apple, Enguita, Saviani e Bernstein — demonstra que, embora reprodutiva, a escola é também um espaço contraditório, permeado de disputas, resistências e possibilidades de reinvenção. É nesse terreno dialético que se inscreve a reflexão sobre a superação da crise escolar.

No Brasil, apesar do distanciamento — quando não da ignorância e franca negligência — das autoridades educacionais em relação à complexidade do fenômeno escolar, a instituição tem sido objeto de investigação sistemática e sofisticada na produção acadêmica contemporânea. A crítica dirigida à escola tradicional foi particularmente fecunda na segunda metade do século XX. A partir dos anos 1970, consolidou-se um campo analítico robusto que examinou a escola à luz de suas funções políticas, ideológicas e econômicas. Autores como Althusser, Bourdieu e Passeron, Foucault, Bowles e Gintis, entre outros, produziram diagnósticos contundentes: a escola opera como um aparelho de reprodução social, reafirmando desigualdades estruturais, legitimando relações de dominação e naturalizando hierarquias de classe, raça e gênero.

Entre esses autores formou-se um consenso robusto. Todos reconheceram que a escola participa da reprodução da ordem social de modo desigual, ideológico, condicionado e contraditório. As divergências entre eles não residiram na existência dessa reprodução — que é tomada como ponto de partida —, mas nas suas modalidades: como ela ocorre, quais mecanismos predominam, que forças a impulsionam, que margens de autonomia existem e que fissuras podem ser exploradas para disputa, resistência e eventual transformação das relações sociais.

Com o avanço das pesquisas acadêmicas, as abordagens estritamente reprodutivistas foram analisadas criticamente e tensionadas por perspectivas que recusaram o determinismo estrutural. Autores como Enguita, Giroux, Saviani, Apple, Willis e Bernstein evidenciaram que a escola, longe de ser um mecanismo automático e transparente, é uma instituição atravessada por contradições. Eles mostraram que ela contém espaços de resistência, abriga projetos e práticas em disputa e constitui um campo onde diferentes grupos lutam pela definição legítima do conhecimento escolar. Demonstraram também que o currículo é uma arena de conflito cultural, na qual se confrontam interesses, valores e visões de mundo. Ao enfatizar que a reprodução social não é mecânica — mas mediada por práticas, significados, culturas juvenis e ações docentes —, esses autores recolocaram no centro a agência, a contingência e a historicidade do fenômeno educativo.

Assim, o deslocamento teórico não rejeita o diagnóstico reprodutivista, mas o complexifica. A escola pode reproduzir desigualdades, mas não está totalmente capturada pelo aparelho ideológico dominante; ela conserva certa margem de manobra, aberta a disputas, contradições e possibilidades contra-hegemônicas. Tal compreensão dialética permite olhar a escola como instituição ambígua, dialética, simultaneamente funcional ao modo de produção e potencialmente capaz de produzir rupturas, dependendo das condições históricas, das correlações de força e dos projetos pedagógicos em jogo.

É a partir do reconhecimento da dialeticidade estrutural da escola que se coloca a questão que orienta este ensaio: por que os estudantes desprezam a escola e fazem corpo mole em todas as aulas? A resistência dos estudantes, quando paramos para analisar o que está acontecendo, não se dirige apenas a currículos descontextualizados, práticas pedagógicas autoritárias ou dispositivos de controle — embora estes sejam alvos frequentes de contestação. Eles resistem também ao modelo institucional da escola moderna: sua organização do tempo, do espaço, das relações, dos ritmos, das expectativas e das formas de subjetivação. Em outras palavras, os estudantes deste início de século tensionam o formato escolar herdado da longínqua sociedade industrial, exigindo que ele se reorganize conforme as condições sociotécnicas contemporâneas, as novas formas de interação e o estágio atual do modo de produção.

Se a escola sempre foi moldada pelas exigências históricas da economia e pelas formas de sociabilidade correspondentes, a resistência estudantil contemporânea expressa justamente o descompasso entre a instituição e o mundo que a circunda. Trata-se de uma pressão objetiva, não de mero capricho geracional. A escola é instada a redefinir suas funções, métodos, espaços e sentidos, não para atender ao individualismo consumista — como frequentemente caricaturado por autoridades —, mas porque o modelo escolar moderno, concebido para disciplinar corpos na era industrial, já não responde adequadamente às formas de vida e trabalho que emergem no capitalismo cognitivo, informacional e automatizado.

Este ensaio, portanto, concentra-se na análise dessa tensão entre a forma escolar e as dinâmicas sociais contemporâneas. Parto do pressuposto, fundamentado na tradição crítico-materialista, de que a escola é instituição histórica e contraditória, e que as resistências estudantis constituem indicadores privilegiados das transformações do modo de produção e de suas demandas sobre a formação dos sujeitos.

O que dizem os professores:

1.   1)  "Que as escolas públicas estão virando depósito de jovens absolutamente desinteressados nos temas das aulas e que são aprovados baseados numa pedagogia populista de aprovação automática disfarçada. É disso que se trata. E não de cultura de reprovação, termo vago e genérico. A escola é a única experiência contínua de cidadania que temos nessa idade. Se o que assistimos é uma imensa farsa pedagógica, dá para entender por que a sociedade brasileira tá ladeira abaixo e calçadas invadidas por motoqueiros acima..." (Luiz Zelongo)[1]

2.      2) "Isso já acontece há algum tempo. E o maior problema dessa aprovação automática e este modelo que o Castro determinou, não é porque o aluno não sabe nada sobre mitocôndrias, história antiga, era Vargas… é porque ele chega ao final do EM e não sabe ler. Não sabe interpretar o que lê, não sabe o significado de uma frase curta, não sabe o significado das palavras… e com isso não sabe escrever. Li uma reportagem com alguns dados onde apenas 8% dos brasileiros interpretam um texto, apenas 6% sabem diferenciar fato de opinião, e 29% dos adultos são analfabetos funcionais. Isso é muito triste. É um projeto de governo. Nem as cotas vão dar conta disso não"(Maria da Horta)

3.   3) "... o problema da educação que é os alunos  por não saberem matemática básica culpam o modelo de escola e os professores. Mais um ano formando um bando de idiotas que mal sabem ler porque o estado quer isso mesmo, gente burra pra mão de obra! (Clara dos Lírios do Campo)

444) "Além de aprovação automática os alunos vão poder pular de série na secretaria de educação do Rio de Janeiro! Escola virou fábrica de diplomas!" (Vitor do Marreh)

Os quatro depoimentos expressam um mal-estar docente profundo. Eles traduzem a percepção de perda de sentido da escola; sensação de que a instituição se tornou impotente; experiência cotidiana de frustração diante da indiferença estudantil; ideia de que “alguém acima” (governos, políticas, gestão) esvaziou a escola de sua função. De um ponto de vista teórico, essas falas revelam o choque entre o modelo escolar moderno (disciplinar, conteudista, industrial) e as exigências sociotécnicas contemporâneas. Eles são sintomas da crise estrutural do modelo de escola oriundo dos séculos XIX e XX.

Mergulhando com mais profundidade nestes depoimentos os professores relevam a perda de função e sentido da escola, a sua inadequação formal a novas condições do modo de produção informatizado e não apenas um colapso moral dos jovens, a crise da função cultural da escola e seu distanciamento de qualquer projeto consistente de democratização do conhecimento e a personalização de problemas estruturais, típica de contextos semelhantes de crise.

Detendo-me na personalização de problemas estruturais considero importante ressaltar que a transformação de um fenômeno social complexo (a crise da escola) em uma cadeia de culpas individuais somente obscurece tal crise, em especial ao responsabilizar os estudantes, as famílias, os professores, os políticos, os governos. Torna-se imperativo reconhecer a falência do modelo atual de escola diante do estágio atual do capitalismo.

Neste estágio de profundas mudanças no modo de produção, transformações culturais gestadas pelo capitalismo informacional, reorganização da juventude e da sociabilidade digital, precarização das políticas públicas voltadas para o obsoleto modelo de escola seriada e disciplinar, desigualdade estrutural brasileira, e desvalorização histórica do trabalho docente, é um equivoco impressionantemente grande atribuir causa moral e subjetiva ao que é estrutural e histórico. Afinal, não são os “os estudantes que não querem nada”, “os pais que não educam”, “os professores que são incompetentes”, “o governo que quer gente burra”. Há muito tempo, Althusser, Bourdieu & Passeron, Bowles & Gintis etc. já demonstraram que os problemas da escola não nascem dos indivíduos.

O que fazer?

Antes é necessário compreender que a construção de uma nova escola é impossível nascer espontaneamente do sofrimento social; ela precisa de um sindicato forte, organizado, capaz de levar consciência política aos profissionais de educação e unificar todas lutas sob um projeto de transformação do sistema educacional.

A resposta à pergunta “como superar a crise da escola?” também é um imperativo forte, mas que só pode ser obtida com rigor se partirmos de uma premissa que os estudos críticos já demonstraram: não se trata de salvar a velha escola, mas de compreender que o modelo escolar existente — disciplinar, seriado, textual, homogêneo — tornou-se estruturalmente incompatível com as formas contemporâneas de vida, trabalho e sociabilidade. A questão central não é mais como consertar a escola, mas que tipo de instituição educativa é capaz de responder às demandas reais da juventude e da sociedade atual.

A nova escola a ser estruturada de modo a atender às demandas dos estudantes e da sociedade precisa considerar que as juventudes estão conectadas; a   economia é informacional; que a formação cultural brasileira é um cadinho multicultural com linguagens digitais, novas expectativas de vida, novas formas de trabalho e novos modos de atenção.

Para esta escola que não seria profissionalizante eu proporia um intenso relacionamento entre teoria e prática; aproximação ciência e realidade; conexão com laboratórios, museus e redes de pesquisa; competências científicas como práticas sociais. Ao invés de aulas de 50 minutos, melhor seriam os blocos temáticos longos; oficinas de produção; tempos de pesquisa; tempos de criação; tempos de projeto. Para não ser 100% radical, preservaria as aulas de Matemática e Língua Portuguesa/Literatura. Suas marcas indeléveis seriam: flexibilidade, crítica, democrática, criativa, conectada e intelectualmente exigente, capaz de integrar ciência, tecnologia, cultura e projeto de vida. Ela cuidaria para ter uma disciplina rigorosa, mas significativa; e uma cultura viva e socialmente critica. Seria contemporânea, mas jamais submissa ao mercado.

Concluindo

Em conclusão devo dizer que a escola que poderá enfrentar os desafios do século XXI não é uma escola restaurada, nostálgica ou moralizante, mas uma instituição intelectualmente exigente, culturalmente viva, socialmente crítica e politicamente democrática. É uma escola que assume sua natureza dialética: reproduz, mas também transforma; conserva, mas também produz novas formas de pensar e agir; organiza saberes, mas também reinventa práticas. Em vez de disciplinar corpos para um mundo que não existe mais, ela deve formar sujeitos autônomos, capazes de compreender a complexidade das sociedades contemporâneas e de intervir nelas com racionalidade, criatividade e responsabilidade pública. Superar a crise da forma escolar significa, portanto, produzir uma nova escola contemporânea, compatível com o estágio atual do desenvolvimento científico, tecnológico e social — sem abdicar do ideal iluminista de uma educação voltada à emancipação humana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Os nomes dos professores são fictícios.


27.11.25

Progressão Parcial e Justiça Educacional: Análise Crítica do Decreto nº 49.994/2025 do Estado do Rio de Janeiro

 



 Zacarias Gama

Professor Titular Aposentado da UERJ



Introdução

Em sociedades que se pretendem democráticas, a escola pública tem a função civilizatória de assegurar o direito constitucional à aprendizagem e a continuidade das trajetórias educativas. No entanto, a persistência da reprovação e da evasão no Brasil revela uma contradição estrutural: o sistema educacional produz, ele próprio, parte significativa dos fracassos que deveria prevenir. Nesse cenário, o Decreto nº 49.994/2025, que institui a Política Estadual Excepcional de Progressão Parcial no Estado do Rio de Janeiro, emerge como esperançosa tentativa de reorganizar o fluxo escolar e reduzir distorções que historicamente penalizam estudantes de baixa renda, negros, periféricos e que já acumularam defasagens em sua trajetória.

Partindo de uma perspectiva materialista e crítica, este texto analisa a política à luz de evidências internacionais, dados empíricos de pesquisas recentes e quinze teses de doutorado produzidas entre 2001 e 2025. Busco compreender não apenas o decreto em si, mas as condições estruturais que permitem — ou inviabilizam — sua implementação. A pergunta de fundo é filosófico-pedagógica: uma política de progressão parcial pode ser instrumento de justiça educacional ou corre o risco de se tornar apenas resposta tecnocrática a um problema estrutural?

A Política de Progressão Parcial

O decreto estabelece que estudantes do Ensino Médio, entre 15 e 17 anos, com rendimento insatisfatório em até seis componentes curriculares possam avançar de série, vinculados a planos especiais de estudo, diagnósticos periódicos, recuperação orientada e acompanhamento sistemático. Diferentemente da antiga “aprovação automática”, a medida pressupõe contrapartidas pedagógicas obrigatórias e registro contínuo das ações pelas escolas.

Além dos dispositivos pedagógicos, a sua implementação dependerá de monitoramento pelas Diretorias Regionais e pela SEEDUC, com avaliação anual do impacto sobre indicadores como retenção, abandono, infrequência e recomposição das aprendizagens.

Contudo, a recepção social do decreto foi heterogênea. Enquanto setores governistas o defendem como resposta racional à evasão, o SEPE o interpreta como tentativa de inflar artificialmente indicadores, e conselheiros estaduais criticam sua elaboração verticalizada. Estudantes, por sua vez, enxergam simultaneamente uma flexibilização das exigências e uma sobrecarga potencial — dado que um aluno reprovado em seis disciplinas poderá cursar até dezoito no ano seguinte. Essas percepções foram registradas pelo jornal O Globo  (26/11/2025) e revelam tensões entre expectativas, discursos e condições reais de trabalho escolar.

Metodologia e Desenvolvimento

A minha análise articula três fontes: experiências internacionais (França, Inglaterra, Finlândia, Singapura, Chile e Hong Kong), relatórios da OCDE sobre repetência, equidade e transições escolares e quinze teses de doutorado (2001–2025) sobre repetência, progressão, baixo desempenho e evasão em programas de excelência (Capes ≥ 5).

Três questões orientam o meu estudo: a progressão parcial nos termos do decreto reduz desigualdades? Barreiras institucionais e culturais comprometem sua eficácia? É pedagogicamente viável e efetiva?

Experiências Internacionais

As práticas globais mostram que a repetência é exceção, não regra. Destacam-se alguns pontos:

1.      França: a progressão é definida por avaliações contínuas. Há recuperação formal e repetência pontual. Estudos mostram que regiões com maior concentração de alunos de origem migrante apresentam índices de repetência superiores, revelando correlação entre desigualdade e fluxo.

2.      Inglaterra: a aprovação depende do desempenho regular e dos exames nacionais (GCSE). Escolas com forte acompanhamento individual reduzem significativamente a necessidade de retenção.

3.      Finlândia: a repetência é raríssima. O sistema oferece apoio imediato, intervenção precoce e forte formação docente. Dados do National Agency for Education indicam que 96% dos estudantes concluem o Ensino Básico sem defasagem. A escola não pune: intervém.

4.      Singapura: o sistema educacional é muito competitivo, porém oferece suportes robustos ao estudantes: monitoramento semanal, grupos de reforço e materiais personalizados. Estudos mostram que estudantes que recebem tutoria têm probabilidade 40% menor de sofrer retenção.

5.      Chile: seu modelo é muito semelhante ao brasileiro, com exigência de médias mínimas. Pesquisas locais indicam que a repetência afeta sobretudo estudantes de baixa renda — padrão idêntico ao do Brasil.

6.      Hong Kong: é alta a pressão por resultados, coexistindo modelos distintos de promoção. A repetência, no entanto, tende a se concentrar em escolas de menor prestígio.

Pequeno Estado da Arte

A OCDE tem produzido documentos como No More Failures (2007) e PISA 2022: Reduzir Drasticamente a Repetência e eles convergem em três pontos: a repetência aprofunda desigualdades; é ineficaz do ponto de vista pedagógico e a existência de apoio pedagógico estruturado produz efeitos significativamente melhores. É consensual em tais documentos que repetir não ensina.

As produções acadêmicas, por sua vez, afluem em três dimensões.

1. Dimensão Epistemológica

As teses rejeitam explicações biologizantes (“alunos incapazes”), moralistas (“alunos que não se esforçam”) e individualistas (“fracasso como responsabilidade pessoal”). Nelas, o fracasso escolar é entendido como fenômeno socialmente produzido, associado a desigualdades de renda, raça, território, acesso à educação infantil e currículos rígidos.

Os exemplos recorrentes nas teses demonstram que estudantes negros têm probabilidade maior de sofrer reprovação nas redes estaduais, mesmo controlando variáveis socioeconômicas; alunos de áreas periféricas acumulam defasagens desde os anos iniciais, o que lhes aumenta progressivamente a chance de retenção no Ensino Médio; e escolas com cultura de punição apresentam taxas de desistência duas vezes superiores às que utilizam avaliação formativa.

A conclusão epistemológica central nas quinze teses é inequívoca: o fracasso não reside no estudante, mas na arquitetura dos sistemas social e educacional.

2. Dimensão Empírica

Os achados empíricos apontam causas e efeitos estruturais dos principais fatores associados à repetência, que são: baixa renda familiar; escolaridade materna reduzida; pertencimento racial (negros e pardos); moradia periférica; IDEB baixo; ausência de educação infantil de qualidade. Os impactos mensuráveis que provocam nos estudantes são responsáveis pela queda persistente no desempenho posterior; auto percepção negativa da capacidade; sentimento de não pertencimento; ruptura de vínculos com colegas; risco ampliado de evasão.

Os exemplos empíricos frequentes nas teses evidenciam que os estudantes que repetem o 1º ano do Ensino Médio têm probabilidade quatro vezes maior de abandonar a escola até os 18 anos. Também provam que os exemplos dados têm efeitos sobre o trabalho docente: desgaste emocional; tempo excessivo dedicado à manutenção da disciplina das turmas; impotência diante da desigualdade acumulada.

Em escolas vulneráveis, é recorrente aparecer como “solução de sobrevivência” a redução do tamanho das turmas e o afastamento os “alunos-problema”. As pesquisas educacionais, contudo, mostram que intervenções como tutoria, flexibilização curricular e suporte psicossocial reduzem drasticamente os riscos.

3. Dimensão Política

As teses defendem que a repetência seja excepcional e não padrão, e evitável desde que articulada a planos individualizados; avaliações formativas; interdisciplinaridade; reorganização curricular; políticas territoriais integradas; financiamento adequado; e redução do número de alunos por turma.

Todas elas rechaçam o binômio “aprovar automaticamente × reprovar para corrigir comportamentos”. Reprovar não educa.

Conclusão

O Decreto Fluminense nº 49.994/2025, não obstante os seus problemas, representa um esforço de alinhar o sistema estadual às melhores evidências nacionais e internacionais. Seu mérito está em deslocar o debate da lógica punitiva para a lógica do acompanhamento pedagógico. No entanto, nenhuma política de progressão parcial se sustenta apenas pela mudança normativa. Sem infraestrutura, não há pedagogia; sem professores suficientes bem formados, não há suporte individualizado; sem financiamento, não há qualidade.

A tarefa é monumental: transformar a cultura escolar, superar a pedagogia da punição e construir práticas que assegurem o direito à aprendizagem de mais de meio milhão de estudantes. Isso exige concurso público para haver professores de apoio, recomposição salarial à luz das remunerações para as formações de mesmo nível, ampliação da equipe pedagógica, apoio psicossocial, políticas intersetoriais e formação docente continuada. Exige, sobretudo, abandonar a crença simplista de que reprovar educa.

Se a progressão parcial será instrumento de justiça educacional ou mera resposta administrativa dependerá menos do decreto e mais das condições materiais que o Estado decidir mobilizar. O desafio é, portanto, pedagógico, político e civilizatório: garantir que a escola pública deixe de produzir fracasso e comece, de fato, a produzir futuro. Não dá mais para empurrar o problema irresponsavelmente.


Referências bibliográficas: 

ANDRADE, Júlio César. Trajetórias interrompidas: jovens, repetência e abandono no ensino médio. 2020. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

ANI, João Luiz. Determinantes do fluxo escolar no ensino médio no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

BARBOZA, Thiago Augusto. Políticas de correção de fluxo escolar: impactos no desempenho e na permanência de estudantes. 2014. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

CARVALHO, Daniela Cabral. Evasão e permanência no ensino médio: um estudo sobre trajetórias e desigualdades. 2013. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 

FIELD, Simon; KUCZERA, Małgorzata; PONT, Beatriz. No More Failures: Ten Steps to Equity in Education. Paris: OECD Publishing, 2007. ISBN 978-9264032590. OECD+1

FRANCESCHINI, Vanessa Leme Cardoso. Reprovação escolar: um estudo quanti-quali sobre a permanência e o fracasso escolar no ensino fundamental e médio. 2015. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FREITAS, Heloísa Fogaça. Reprovação e seus determinantes estruturais: um estudo em escolas públicas brasileiras. 2021. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

GOMES, Renata Corrêa. Fracasso escolar e desigualdade: uma análise das condições materiais e simbólicas da repetência. 2016. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

JACOMINI, Márcia Aparecida. Reprovação escolar na opinião de pais e alunos: um estudo sobre os ciclos e a progressão continuada na Rede Municipal de Ensino de São Paulo. 2008. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.

MARTINS, Luciana de Jesus. Juventude, fracasso escolar e abandono: fatores associados à ruptura do percurso educacional. 2017. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

NASCIMENTO, Célia Regina. Reprovação escolar no ensino médio: sentidos, práticas e consequências. 2012. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

PEREIRA, Marta Lígia. Políticas de avaliação, repetência e exclusão: permanência de velhas lógicas no ensino básico. 2010. Tese (Doutorado em Educação) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

REZENDE, Rodrigo Caetano. Determinantes socioeconômicos e institucionais do abandono escolar no ensino médio. 2018. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SANTOS, André Luiz. Distorção idade-série e desigualdades escolares no Brasil. 2016. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SILVA, Ana Paula. Progressão continuada e dispositivos escolares: gestão, avaliação e efeitos sobre o fluxo escolar. 2014. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.

VASCONCELOS, Lúcia Helena. Efeitos da repetência sobre trajetórias escolares de jovens: evidências longitudinais. 2019. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo.







25.11.25

A HEGEMONIA INUMANA DA ECONOMIA DIGITAL E OS DESAFIOS DEMOCRÁTICOS NO SÉCULO XXI

 



A digitalização integral da economia — desde a produção industrial até o consumo cotidiano mediado por plataformas — inaugura um novo regime de poder que ultrapassa os limites tradicionais do capitalismo industrial. O que está em curso não é apenas a substituição de máquinas por máquinas mais inteligentes, mas a constituição de um modo de produção algorítmico, baseado em decisões automatizadas, opacidades técnicas e novas formas de concentração de poder. Esse processo gera riscos democráticos inéditos: erosão do controle social, fragilização das instituições, formação de elites tecnológicas invisíveis e aprofundamento das desigualdades estruturais. No caso brasileiro, tais tensões são ampliadas pelo caráter incompleto de nosso processo democrático e pela fragilidade histórica das instituições de participação popular.

Assim, compreender a emergência dessa hegemonia digital e suas contradições se torna urgente para pensar não apenas o futuro da economia, mas o futuro da própria democracia. Antes de avançar para a análise, é necessário formular algumas questões que orientam o debate. Quais mecanismos da economia digitalizada concentram poder de decisão fora do alcance democrático? Em que medida algoritmos e plataformas moldam comportamentos, escolhas e valores sem mediação consciente dos cidadãos? Como a lógica produtiva guiada por IA tende a reforçar desigualdades econômicas e simbólicas já existentes no Brasil? Quais são as contradições internas do capitalismo algorítmico que tensionam a promessa de eficiência e bem-estar? Como recuperar o controle social e institucional sobre processos automatizados que operam sem transparência nem accountability?

II

Se por um lado a economia digitalizada representa uma das mais expressivas inovações técnicas deste século, por outro constitui um risco profundo para processos democráticos ainda em consolidação, como o brasileiro. A introdução da inteligência artificial nos mecanismos de produção, circulação, vigilância e decisão econômica cria elites técnicas opacas, compostas não apenas por especialistas humanos, mas sobretudo por sistemas algorítmicos que operam sem rosto, sem responsabilidade política e sem vínculo com o bem comum.

Essas elites não são simplesmente grupos profissionais; são infraestruturas inteiras que se tornam indispensáveis ao funcionamento da sociedade. O problema não está apenas na automação, mas no deslocamento do centro de comando da vida social para estruturas técnicas governadas por corporações globais. A democracia, construída sobre a ideia moderna de soberania popular, passa a conviver com uma soberania paralela: a soberania dos dados, exercida pelos donos dos sistemas que capturam, processam e preveem comportamentos.

A hegemonia digital introduz contradições severas no modo de produção capitalista. De um lado, promete eficiência, redução de custos e expansão do lucro; de outro, converte trabalhadores em resíduos funcionais, substituíveis e continuamente avaliados por métricas que ignoram dimensões humanas fundamentais — criatividade, cooperação, solidariedade. O capitalismo algorítmico tende a reduzir a complexidade humana à previsibilidade computacional, o que gera tensões profundas com ideais de felicidade, emancipação e autonomia.

A contradição fundamental emerge da própria lógica que sustenta o sistema: a busca infinita por otimização. A IA não opera com categorias éticas, mas com métricas. Isso implica que valores humanos — dignidade, liberdade, bem-estar — tornam-se ruídos estatísticos. É essa dissociação entre racionalidade técnica e racionalidade humana que produz o que podemos chamar de hegemonia inumana do modo de produção digital.

Além disso, o caráter transnacional das plataformas restringe drasticamente a capacidade dos Estados nacionais de regular o setor. Em países como o Brasil, onde a democracia ainda enfrenta disputas internas entre projetos autoritários e emancipatórios, essa vulnerabilidade é ainda mais grave. A dependência tecnológica pode se converter em dependência política.

A recuperação de controle democrático sobre a economia digital exige um conjunto articulado de medidas: regulação pública forte, laica e baseada em evidências, capaz de reduzir assimetrias informacionais e impor transparência algorítmica; governança democrática dos dados, tratando-os como bem comum e não como propriedade exclusiva de plataformas privadas; educação crítica em tecnologia, não reduzida ao ensino técnico, mas focada na compreensão social e política dos sistemas digitais; políticas de redistribuição e inclusão produtiva, evitando que o avanço tecnológico aprofunde desigualdades históricas, e fortalecimento de instituições democráticas clássicas, impedindo que decisões estratégicas sejam deslocadas para estruturas automatizadas e não eleitorais.

Essas ações não buscam frear o desenvolvimento tecnológico, mas reinscrever a técnica no campo da política, garantindo que as máquinas estejam a serviço dos seres humanos — e não o contrário. A digitalização completa do modo de produção inaugura uma etapa inédita do capitalismo, marcada pela centralidade dos algoritmos e pela proliferação de poderes invisíveis. Sua promessa de eficiência não pode obscurecer o fato de que, sem controle social, essa infraestrutura global pode ameaçar a própria ideia de democracia. O desafio contemporâneo, portanto, consiste em recuperar a primazia humana sobre processos automatizados, evitando que a racionalidade técnica se converta em novo despotismo. Em sociedades como a brasileira, onde a democracia ainda busca solidez, esse debate não é apenas acadêmico: é um imperativo histórico.


Referencias bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
O’NEIL, Cathy. Armas de destruição matemática: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2020.
PASQUALE, Frank. A sociedade da caixa-preta: algoritmos, big data e inteligência artificial. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2021.
SRNICEK, Nick. Capitalismo de plataforma. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

 

 


24.11.25

Por que as Sociedades Não Mudam Apenas com Educação? A Pedagogia da Realidade


 Em diversas sociedades africanas, a educação é concebida como uma responsabilidade distribuída por toda a comunidade. A aprendizagem infantil é entendida como um processo social que não se esgota na escola, mas se desenrola no convívio cotidiano, nos rituais comunitários, na circulação de saberes tradicionais e na participação coletiva em tarefas e cuidados. Essa concepção contrasta com narrativas contemporâneas que atribuem à escola um poder quase redentor, como se fosse capaz de, sozinha, alterar estruturas sociais profundamente enraizadas.

Autores marxistas como Louis Althusser e Antonio Gramsci, embora com formulações distintas, convergem para uma compreensão semelhante: a escola integra um conjunto de aparelhos ideológicos que moldam subjetividades e reproduzem — ou contestam — as relações sociais de produção. Assim, a educação não constitui um agente autônomo de transformação, mas um componente de um sistema social mais amplo.

O objetivo desta postagem é examinar esses limites da escola como instituição isolada e analisar por que a transformação social exige, necessariamente, a articulação entre condições materiais, estruturas produtivas, instituições políticas e processos culturais. Somente alguém em estágio de absoluta ignorância ou sob efeito de alguma substância alucinógena poderia considerar a má qualidade educacional de dada sociedade um projeto político e intencional das elites.

Educar é um processo social ampliado

A noção de que a educação de uma criança é responsabilidade coletiva não é metafórica. Ela reflete práticas concretas de cuidado compartilhado, aprendizagem por observação, transmissão simbólica e divisão comunitária de funções sociais. Antropologicamente, a educação sempre foi um fenômeno distribuído entre diversos agentes sociais: família, pares, grupos etários, atividades produtivas e, mais recentemente, instituições formais.

A partir da modernidade, a escolarização formalizou apenas uma parte desse processo. Elementos como mídia, redes sociais, condições de moradia, estabilidade econômica, alimentação, saúde pública e até a materialidade urbana passaram a atuar como coautores na construção das subjetividades e competências.

Dessa perspectiva, torna-se evidente que atribuir à escola a responsabilidade exclusiva por transformar uma sociedade corresponde a uma redução analítica e a um equívoco político.

A escola como aparelho ideológico: Althusser e Gramsci

A leitura de Louis Althusser sustenta que a escola é o principal aparelho ideológico do Estado na sociedade capitalista. Ao socializar indivíduos nos valores dominantes, ela contribui para a reprodução das relações de produção ao formar trabalhadores dóceis, aptos e conformados ao modo de produção vigente. Gramsci, por sua vez, diferente de Althusser, embora reconheça a função reprodutora da escola, concebe-a escola um espaço dialético. Ela pode servir à hegemonia burguesa, mas também pode nutrir projetos contra-hegemônicos ao promover pensamento crítico e organização intelectual coletiva. A instituição escolar, portanto, não é unívoca, mas campo de disputa.

Essa convergência entre tradições comunitárias africanas e perspectivas marxistas põe em evidência que a educação, isolada, é estruturalmente incapaz de alterar sozinha as bases materiais que sustentam qualquer ordem social.

Educação e condições materiais de existência

A crença de que a educação pode, por si só, “salvar” uma sociedade parte de uma lógica voluntarista desconectada das dinâmicas materiais. Embora a educação produza qualificações, ela não cria empregos, pois estes dependem da estrutura produtiva, dos investimentos e da capacidade tecnológica de uma economia. Da mesma forma, a escola e a educação não alteram, autonomamente, a distribuição de renda ou terra, processos que exigem ação política, reforma institucional e disputa econômica.

Por mais qualificados que sejam os professores de uma escola, a aprendizagem significativa torna-se impossível para crianças expostas à fome, insegurança habitacional, doenças ou violência. A escola, portanto, é diretamente condicionada por determinantes extrapedagógicos. Esses limites da escola decorrem da interdependência entre os aparelhos ideológicos e os aparelhos repressivos do Estado, bem como entre o sistema educacional e as condições materiais mais amplas da vida social.


A Revolução Industrial e o mito do papel exclusivo da educação

A análise histórica da Revolução Industrial europeia ilustra de forma clara a insuficiência da educação como motor autônomo de desenvolvimento. Inglaterra e Alemanha possuíam, já no período pré-industrial, taxas de alfabetização entre 60% e 70%, motivadas em grande parte pela leitura religiosa individualizada. O salto qualitativo do século XVIII e XIX resultou não da escolarização isolada, mas de um conjunto de transformações articuladas:

  • inovação tecnológica e mecanização produtiva;
  • aumento da segurança alimentar;
  • ampliação do emprego industrial;
  • crescimento e redistribuição parcial da riqueza;
  • melhorias em saúde, saneamento e urbanização;
  • fortalecimento institucional e consolidação de mecanismos de controle social;
  • expansão de livros, jornais e revistas, com pluralidade de visões de mundo;
  • relativa estabilidade familiar e comunitária.

A educação formal participou desse processo, mas não o protagonizou isoladamente.

Conclusão

Esta postagem quer demonstrar que a escola, embora necessária, é estruturalmente insuficiente para transformar uma sociedade por si só. A emancipação social depende de uma configuração ampla de instituições, condições materiais de existência, dinâmica produtiva, estabilidade econômica e estruturas simbólicas. A educação escolar só adquire potencial transformador quando integrada a processos históricos mais vastos, capazes de alterar tanto as bases materiais quanto as formas ideológicas de reprodução social.

Dessa forma, não há fundamento empírico ou teórico para atribuir à escola o papel de agente isolado de salvação social. A mudança estrutural exige reformas econômicas, políticas, tecnológicas e culturais que ultrapassam a esfera educacional.


Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vários volumes.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1970.

 


23.11.25

O Brasil Real e o Brasil Imaginário: Anatomia do Vira-Latismo

 


Ontem participei de uma roda de conversa que me deixou sinceramente alarmado com a lama rala em que muitas discussões sobre o Brasil ainda se chafurdam. É impressionante como proliferam opiniões que, embora declamadas com a convicção dos iluminados, não carregam um grama de evidência empírica. Tornou-se quase um vício nacional: criticar o país de forma automática, ideologizada, repetindo um pessimismo que não nasce da observação do mundo, mas de uma espécie de reflexo condicionado — um vira-latismo estrutural, persistente, herdado, acrítico, quase orgânico. Em vez de recorrer a dados, comparações internacionais ou análises mínimas, prefere-se reciclar frases prontas, como se pensar exigisse esforço demais e a ignorância oferecesse algum alívio moral.

E de nada adianta que estrangeiros elogiem o país com base em fatos experienciados por eles — nossa capacidade de negar a realidade às vezes beira o cômico. Se eles reconhecem o SUS como um dos maiores sistemas públicos de saúde do planeta, alguns “caramelos” se apressam em desqualificá-lo, mesmo quando se beneficiaram diretamente dele, talvez até em um transplante realizado entre os milhares feitos gratuitamente pelo SUS todos os anos. Se os gringos elogiam o Rio, São Paulo ou Belém, surge de imediato um coro nacional que reduz tudo à violência das facções, milícias e traficantes,  que qualquer obra pública seja um truque para enganar turistas. É o tipo de reação que não nasce da lucidez, mas da incapacidade de enxergar o próprio país sem o filtro cinzento do ressentimento.

E o mais grave é que essa postura vem acompanhada de um desconhecimento monumental. Muitos não sabem — e não se dão ao trabalho de saber — que a Embraer figura entre as maiores fabricantes de jatos civis do mundo; que quase 90% da nossa matriz elétrica é renovável; que o programa espacial brasileiro tem reconhecimento internacional; ou que certos índices de violência urbana, quando comparados honestamente, são menos sombrios do que os de cidades norte-americanas celebradas como centros civilizados, como é o caso de Chicago e Detroit. Falando de educação, então, o espetáculo chega a ser grotesco: os “caramelos”, especialistas improvisados, ignoram que o país alcançou praticamente a universalização da educação básica, que os programas de assistência estudantil são vastos, que o IDEB é referência no exterior, e que os Institutos Federais figuram entre as escolas públicas de melhor desempenho no país, atuando muitas vezes como motores tecnológicos e econômicos de regiões inteiras.

No fim das contas, o problema não é o Brasil — é a preguiça cognitiva. É a recusa sistemática de comparar, investigar, duvidar, interpretar. É o hábito de transformar ignorância em opinião e opinião em certeza. Quando um estrangeiro reconhece nossas qualidades, a reação imediata é desconfiar, como se a lucidez alheia fosse um insulto pessoal. Esse impulso não vem do excesso de consciência crítica, mas justamente da sua ausência. Assim, as conversas se degradam em ruído, as convicções viram slogans e a inteligência coletiva fica refém de um derrotismo mal-informado.

Se queremos elevar o debate público — e abandonar de vez esse automatismo que nos apequena — precisamos recuperar uma atitude verdadeiramente racional: observar, comparar, checar, contextualizar. Só então poderemos falar do Brasil com a seriedade que ele merece, livres do ressentimento, livres do fatalismo, e finalmente capazes de encarar a realidade como adultos.

 

18.11.25

Arquitetura Educacional e o Discurso da Potência Imperial no Brasil (1865-1875)

          Foto em preto e branco de torre de prédio

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                    Centro Cultural José Bonifácio (antiga Escola José Bonifácio) - Gamboa

Esta postagem retoma e atualiza as reflexões iniciadas no artigo “Uma estratégia de unificação curricular: os estatutos das escolas públicas de instrução primária (Rio de Janeiro - 1865)”, publicado em 1999, escrito por mim (Zacarias Gama) e José Gonçalves Gondra e apresentado na 21ª Reunião Anual da ANPEd em 1998. Trinta anos após volto ao texto e procuro correlaciona o discurso legislativo presente no texto publicado com a materialidade arquitetônica do ensino público no Município Neutro. O objeto central são as fotografias que fiz de algumas das chamadas “Escolas do Imperador”, um conjunto que inclui o Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, a Escola Municipal Gonçalves Dias, o Centro Cultural José Bonifácio (antiga Escola José Bonifácio) e o Colégio Pedro II (Campus Centro).


Foto preta e branca de um edifício

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Escola Municipal Gonçalves Dias – Campo de São Cristóvão

 

Meu principal interesse reside em destacar a monumentalidade arquitetônica dessas construções como um projeto deliberado de afirmação política, civilizatória e pedagógica do Segundo Reinado. Este investimento contrasta significativamente com períodos posteriores, como o Republicano, nos quais a escola pública foi frequentemente reduzida a estruturas efêmeras e despretensiosas (como as escolas de compensado), evidenciando a descontinuidade no compromisso estatal com a qualidade do serviço prestado e, paradoxalmente, com o próprio povo. A República, em muitos momentos, trabalha pouco pela afirmação do ideal de democracia e parece prezar o povo, sobre os integrantes das classes sociais mais necessitadas.

As minhas fotografias podem ser tratadas como fontes primárias para a análise iconográfica e formal. O conjunto de prédios, majoritariamente idealizado por Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, arquiteto concursado do Império, como se pode observar, caracteriza-se pela imponência e pelo estilo eclético de matriz neoclássica. A análise de conjunto revela uma clara uniformidade de discurso produzida por elementos recorrentes: a simetria estrita, o tratamento formal das aberturas e, em particular, a rusticação do térreo (visível na Escola José Bonifácio). Tais elementos constituem um vocabulário arquitetônico oficial para o ensino/instrução pública, reforçando a ideia de que a forma imponente era um projeto de Estado. A localização estratégica dos edifícios, em áreas centrais e de passagem da Corte, não era fortuita, mas uma ação de demarcação territorial que inscrevia o projeto educacional na paisagem urbana.

Foto em preto e branco de rua com prédios ao fundo

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Colégio Pedro II (Campus Centro)

 

A forma arquitetônica demonstra o seu papel de suporte à função pedagógica. A construção desses edifícios escolares permanentes garantia que o ensino unificado e disciplinado, conforme preconizado nos estatutos de 1865, ocorresse em ambientes salubres e respeitáveis, superando a precariedade anterior. Não eram, porém, escolas de meninos e meninas como as de hoje.

A monumentalidade, evidente em todos os prédios, elevou o status da instrução pública primária de um serviço doméstico para uma instituição sagrada e essencial ao Império. Os edifícios foram concebidos para inspirar reverência, ordem e disciplina, reforçando o rigor moral e curricular estatutário.

A escala e a solidez dessas construções funcionaram como um poderoso discurso de poder. Ao replicar os modelos arquitetônicos europeus (notadamente franceses), o Império afirmava-se como uma potência tropical civilizada e estável, capaz de realizar obras cívicas de grande envergadura e garantir a longevidade de seus projetos para uma população branca, católica e senhorial.

Foto preta e branca de uma igreja

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CE Amaro Cavalcanti (antiga Escola da Freguesia de Nossa Senhora da Glória) – Largo do Machado

 

 

A tese de que a arquitetura funcionava como um dispositivo de controle, nos termos propostos por Michel Foucault, é fácil de ser sustentada. O investimento em edifícios padronizados e permanentes prova que a unificação da qualidade da instrução pública não era uma política efêmera, mas um projeto de Estado que exigia infraestrutura à sua altura. A forma simétrica e imponente de todas as construções servia como um facilitador da disciplina pedagógica e da vigilância, inserindo os corpos dos estudantes na ordem estatal e escravocrata.

A convergência entre a norma legal (1865) e o investimento material (1870 em diante) confirma a profundidade e a seriedade da estratégia educacional Imperial.

 

Referências Bibliográficas

  • GAMA, Z.; GONDRA, José G. Uma estratégia de unificação curricular: os estatutos das escolas públicas de instrução primária (Rio de Janeiro - 1865). Revista História da Educação, v. 3, n. 5, jan./jul. 1999.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. (Sugestão para fundamentação teórica)
  • REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadros da arquitetura no Brasil. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2018.
  • MACHADO, Humberto. A Capital da Ordem: O Colégio Pedro II no século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

 

12.11.25

A crise da qualidade na educação superior e o fetiche da mensuração

 


A divulgação do Ranking Universitário Folha (RUF) 2025, que traz USP, Unicamp, UFRGS, UFMG e UFRJ nas primeiras posições, reacende o debate sobre o significado de “qualidade” na educação superior brasileira. A queda da UFRJ nos últimos anos, em particular, não pode ser lida como simples oscilação numérica, mas como expressão concreta do descaso dos poderes públicos diante de uma universidade de pesquisa do porte da UFRJ. A ausência de investimentos consistentes em ensino, pesquisa, extensão e inovação tem comprometido a capacidade institucional de sustentar sua missão pública e científica.


🎯 Rankings ou sintomas?

Rankings como o RUF ou o QS World University Rankings se apresentam como medições objetivas de qualidade, mas o que realmente expressam é o grau de investimento estatal e o nível de precarização das condições de produção do conhecimento. Ao reduzir a complexidade da vida universitária a indicadores numéricos — publicações, citações, patentes, empregabilidade — essas classificações transformam sintomas estruturais em aparências de desempenho, legitimando desigualdades históricas e naturalizando a lógica da competição em um espaço que deveria ser de cooperação científica.

A fetichização da medida — essa crença de que o número traduz a realidade — revela o predomínio de uma racionalidade tecnocrática e neoliberal, que converte o conhecimento em capital simbólico mensurável. Em vez de fortalecer o papel emancipador da universidade, a quantificação serve como instrumento de regulação e controle, impondo uma cultura de auditoria permanente.


⚙️ A ontologia da medida

A obsessão contemporânea pela quantificação não é apenas técnica — é ontológica e ideológica. Ela ecoa uma tradição que remonta à filosofia hegeliana, para a qual a passagem da quantidade à qualidade representa um salto dialético. Marx e Engels reelaboraram essa ideia no terreno materialista, mostrando que a quantidade, quando elevada a critério absoluto, perde a conexão com a realidade concreta.

Lukács, no século XX, identifica nessa primazia do número uma das formas da reificação moderna: o processo pelo qual a vida social e o trabalho intelectual se submetem à lógica abstrata da mercadoria.

Aplicada à educação, essa reificação manifesta-se na crença de que o valor de uma universidade pode ser expresso em índices e posições de ranking. Contudo, a qualidade do ensino superior não é uma propriedade mensurável, mas uma relação social e histórica — dependente das condições materiais de trabalho, da autonomia institucional e do compromisso público com a produção de conhecimento crítico.


📉 O caso da UFRJ

A queda da UFRJ não resulta de um suposto déficit de gestão ou eficiência, mas do desmonte do Estado e da retração dos investimentos públicos em ciência e tecnologia. A ausência de uma política nacional consistente para o ensino superior converte o ranking em espelho distorcido de um sistema em crise. Assim, a mensuração cumpre uma função ideológica: transforma a precarização em dado neutro, a desigualdade em mérito e o abandono em evidência estatística.

Recuperar o sentido qualitativo e emancipador da educação exige romper com o fetiche da mensuração. A qualidade não é um número: é uma relação viva entre sujeitos que produzem, transmitem e transformam o conhecimento.


🌱 Caminhos para uma política pública emancipadora

A superação dessa crise requer um projeto nacional de educação superior que devolva à universidade pública seu papel central na construção de uma sociedade democrática e soberana. Isso implica:

  • Financiamento público estável e crescente;

  • Valorização das carreiras docentes e técnicas;

  • Fortalecimento da pesquisa básica;

  • Integração efetiva entre ensino e extensão;

  • Respeito pleno à autonomia universitária.

Mais do que disputar posições em rankings internacionais, o desafio é construir um sistema público de ensino superior capaz de formar sujeitos críticos, produzir conhecimento socialmente relevante e sustentar a independência científica e cultural do país.

Só assim será possível falar em qualidade — não como número, mas como forma de vida e de pensamento que afirma o humano contra a lógica abstrata do capital.



Visite o meu blog de fotografias: www.zjgamafotografando.blogspot.com  


Por uma nova escola pública: conhecimento, democracia e emancipação no século XXI

  Zacarias Gama ex-Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Problematizando A crise contemporânea da escola não é u...