Zacarias Gama
ex-Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Problematizando
A crise contemporânea da escola não é um acidente
conjuntural nem o resultado da suposta decadência moral dos estudantes ou da
incompetência dos professores. Trata-se, antes, de uma crise do modelo de escola,
constituído entre os séculos XVIII e XIX como aparelho disciplinar, organizador
das hierarquias sociais e difusor da racionalidade necessária ao capitalismo
industrial. O que assistimos hoje é o esgotamento histórico dessa instituição
diante de transformações profundas no modo de produção, na cultura, nas
tecnologias e nas formas de sociabilidade juvenil. A análise crítica da escola
tradicional — inaugurada por Althusser, Bourdieu, Passeron, Bowles & Gintis
e aprofundada por autores como Giroux, Apple, Enguita, Saviani e Bernstein —
demonstra que, embora reprodutiva, a escola é também um espaço contraditório,
permeado de disputas, resistências e possibilidades de reinvenção. É nesse
terreno dialético que se inscreve a reflexão sobre a superação da crise
escolar.
No Brasil, apesar do distanciamento — quando não da ignorância
e franca negligência — das autoridades educacionais em relação à complexidade
do fenômeno escolar, a instituição tem sido objeto de investigação sistemática
e sofisticada na produção acadêmica contemporânea. A crítica dirigida à escola
tradicional foi particularmente fecunda na segunda metade do século XX. A
partir dos anos 1970, consolidou-se um campo analítico robusto que examinou a
escola à luz de suas funções políticas, ideológicas e econômicas. Autores como
Althusser, Bourdieu e Passeron, Foucault, Bowles e Gintis, entre outros,
produziram diagnósticos contundentes: a escola opera como um aparelho de
reprodução social, reafirmando desigualdades estruturais, legitimando relações
de dominação e naturalizando hierarquias de classe, raça e gênero.
Entre esses autores formou-se um consenso robusto. Todos
reconheceram que a escola participa da reprodução da ordem social de modo desigual,
ideológico, condicionado e contraditório. As divergências entre eles não residiram
na existência dessa reprodução — que é tomada como ponto de partida —, mas nas
suas modalidades: como ela ocorre, quais mecanismos predominam, que
forças a impulsionam, que margens de autonomia existem e que
fissuras podem ser exploradas para disputa, resistência e eventual
transformação das relações sociais.
Com o avanço das pesquisas acadêmicas, as abordagens
estritamente reprodutivistas foram analisadas criticamente e tensionadas por
perspectivas que recusaram o determinismo estrutural. Autores como Enguita,
Giroux, Saviani, Apple, Willis e Bernstein evidenciaram que a escola, longe de
ser um mecanismo automático e transparente, é uma instituição atravessada por
contradições. Eles mostraram que ela contém espaços de resistência, abriga
projetos e práticas em disputa e constitui um campo onde diferentes grupos
lutam pela definição legítima do conhecimento escolar. Demonstraram também que
o currículo é uma arena de conflito cultural, na qual se confrontam interesses,
valores e visões de mundo. Ao enfatizar que a reprodução social não é mecânica
— mas mediada por práticas, significados, culturas juvenis e ações docentes —,
esses autores recolocaram no centro a agência, a contingência e a historicidade
do fenômeno educativo.
Assim, o deslocamento teórico não rejeita o diagnóstico
reprodutivista, mas o complexifica. A escola pode reproduzir desigualdades, mas
não está totalmente capturada pelo aparelho ideológico dominante; ela conserva
certa margem de manobra, aberta a disputas, contradições e possibilidades
contra-hegemônicas. Tal compreensão dialética permite olhar a escola como instituição
ambígua, dialética, simultaneamente funcional ao modo de produção e
potencialmente capaz de produzir rupturas, dependendo das condições históricas,
das correlações de força e dos projetos pedagógicos em jogo.
É a partir do reconhecimento da dialeticidade estrutural da
escola que se coloca a questão que orienta este ensaio: por que os estudantes desprezam a escola e fazem corpo mole em todas as aulas? A resistência dos
estudantes, quando paramos para analisar o que está acontecendo, não se dirige apenas a currículos descontextualizados, práticas
pedagógicas autoritárias ou dispositivos de controle — embora estes sejam alvos
frequentes de contestação. Eles resistem também ao modelo institucional da
escola moderna: sua organização do tempo, do espaço, das relações, dos ritmos,
das expectativas e das formas de subjetivação. Em outras palavras, os
estudantes deste início de século tensionam o formato escolar herdado da longínqua
sociedade industrial, exigindo que ele se reorganize conforme as condições
sociotécnicas contemporâneas, as novas formas de interação e o estágio atual do
modo de produção.
Se a escola sempre foi moldada pelas exigências históricas
da economia e pelas formas de sociabilidade correspondentes, a resistência
estudantil contemporânea expressa justamente o descompasso entre a instituição
e o mundo que a circunda. Trata-se de uma pressão objetiva, não de mero
capricho geracional. A escola é instada a redefinir suas funções, métodos,
espaços e sentidos, não para atender ao individualismo consumista — como
frequentemente caricaturado por autoridades —, mas porque o modelo escolar moderno,
concebido para disciplinar corpos na era industrial, já não responde
adequadamente às formas de vida e trabalho que emergem no capitalismo
cognitivo, informacional e automatizado.
Este ensaio, portanto, concentra-se na análise dessa tensão
entre a forma escolar e as dinâmicas sociais contemporâneas. Parto do
pressuposto, fundamentado na tradição crítico-materialista, de que a escola é
instituição histórica e contraditória, e que as resistências estudantis
constituem indicadores privilegiados das transformações do modo de produção e
de suas demandas sobre a formação dos sujeitos.
O que dizem os professores:
1. 1) "Que as escolas públicas estão virando depósito de
jovens absolutamente desinteressados nos temas das aulas e que são aprovados
baseados numa pedagogia populista de aprovação automática disfarçada. É disso
que se trata. E não de cultura de reprovação, termo vago e genérico. A escola é
a única experiência contínua de cidadania que temos nessa idade. Se o que
assistimos é uma imensa farsa pedagógica, dá para entender por que a sociedade
brasileira tá ladeira abaixo e calçadas invadidas por motoqueiros acima..." (Luiz Zelongo)[1]
2. 2) "Isso já acontece há algum tempo. E o maior
problema dessa aprovação automática e este modelo que o Castro determinou, não
é porque o aluno não sabe nada sobre mitocôndrias, história antiga, era Vargas…
é porque ele chega ao final do EM e não sabe ler. Não sabe interpretar o que
lê, não sabe o significado de uma frase curta, não sabe o significado das
palavras… e com isso não sabe escrever. Li uma reportagem com alguns dados onde
apenas 8% dos brasileiros interpretam um texto, apenas 6% sabem diferenciar
fato de opinião, e 29% dos adultos são analfabetos funcionais. Isso é muito
triste. É um projeto de governo. Nem as cotas vão dar conta disso não"(Maria da
Horta)
3. 3) "... o problema da educação que é os alunos por não
saberem matemática básica culpam o modelo de escola e os professores. Mais um ano
formando um bando de idiotas que mal sabem ler porque o estado quer isso mesmo,
gente burra pra mão de obra! (Clara dos Lírios do Campo)
444) "Além de aprovação automática os alunos vão poder
pular de série na secretaria de educação do Rio de Janeiro! Escola virou
fábrica de diplomas!" (Vitor do Marreh)
Os quatro depoimentos
expressam um mal-estar docente profundo. Eles traduzem a percepção de perda de
sentido da escola; sensação de que a instituição se tornou impotente; experiência
cotidiana de frustração diante da indiferença estudantil; ideia de que “alguém
acima” (governos, políticas, gestão) esvaziou a escola de sua função. De um
ponto de vista teórico, essas falas revelam o choque entre o modelo escolar
moderno (disciplinar, conteudista, industrial) e as exigências sociotécnicas
contemporâneas. Eles são sintomas da crise estrutural do modelo de escola oriundo
dos séculos XIX e XX.
Mergulhando com mais
profundidade nestes depoimentos os professores relevam a perda de função e
sentido da escola, a sua inadequação formal a novas condições do modo de
produção informatizado e não apenas um colapso moral dos jovens, a crise da
função cultural da escola e seu distanciamento de qualquer projeto consistente
de democratização do conhecimento e a personalização de problemas estruturais,
típica de contextos semelhantes de crise.
Detendo-me na personalização
de problemas estruturais considero importante ressaltar que a transformação de
um fenômeno social complexo (a crise da escola) em uma cadeia de culpas individuais
somente obscurece tal crise, em especial ao responsabilizar os estudantes, as
famílias, os professores, os políticos, os governos. Torna-se imperativo reconhecer
a falência do modelo atual de escola diante do estágio atual do capitalismo.
Neste estágio de profundas
mudanças no modo de produção, transformações culturais gestadas pelo
capitalismo informacional, reorganização da juventude e da sociabilidade
digital, precarização das políticas públicas voltadas para o obsoleto modelo de
escola seriada e disciplinar, desigualdade estrutural brasileira, e desvalorização
histórica do trabalho docente, é um equivoco impressionantemente grande atribuir
causa moral e subjetiva ao que é estrutural e histórico. Afinal, não são os “os
estudantes que não querem nada”, “os pais que não educam”, “os professores que são
incompetentes”, “o governo que quer gente burra”. Há muito tempo, Althusser,
Bourdieu & Passeron, Bowles & Gintis etc. já demonstraram que os
problemas da escola não nascem dos indivíduos.
O que fazer?
Antes é necessário compreender
que a construção de uma nova escola é impossível nascer espontaneamente do
sofrimento social; ela precisa de um sindicato forte, organizado, capaz de
levar consciência política aos profissionais de educação e unificar todas lutas
sob um projeto de transformação do sistema educacional.
A resposta à pergunta “como
superar a crise da escola?” também é um imperativo forte, mas que só pode ser obtida
com rigor se partirmos de uma premissa que os estudos críticos já demonstraram:
não se trata de salvar a velha escola, mas de compreender que o modelo escolar existente
— disciplinar, seriado, textual, homogêneo — tornou-se estruturalmente
incompatível com as formas contemporâneas de vida, trabalho e sociabilidade. A
questão central não é mais como consertar a escola, mas que tipo de instituição
educativa é capaz de responder às demandas reais da juventude e da sociedade
atual.
A nova escola a ser
estruturada de modo a atender às demandas dos estudantes e da sociedade precisa
considerar que as juventudes estão conectadas; a economia é informacional; que a formação
cultural brasileira é um cadinho multicultural com linguagens digitais, novas
expectativas de vida, novas formas de trabalho e novos modos de atenção.
Para esta escola que não seria
profissionalizante eu proporia um intenso relacionamento entre teoria e prática;
aproximação ciência e realidade; conexão com laboratórios, museus e redes de
pesquisa; competências científicas como práticas sociais. Ao invés de aulas de
50 minutos, melhor seriam os blocos temáticos longos; oficinas de produção; tempos
de pesquisa; tempos de criação; tempos de projeto. Para não ser 100% radical,
preservaria as aulas de Matemática e Língua Portuguesa/Literatura. Suas marcas indeléveis
seriam: flexibilidade, crítica, democrática, criativa, conectada e
intelectualmente exigente, capaz de integrar ciência, tecnologia, cultura e
projeto de vida. Ela cuidaria para ter uma disciplina rigorosa, mas
significativa; e uma cultura viva e socialmente critica. Seria contemporânea,
mas jamais submissa ao mercado.
Concluindo
Em conclusão devo dizer que a
escola que poderá enfrentar os desafios do século XXI não é uma escola
restaurada, nostálgica ou moralizante, mas uma instituição intelectualmente
exigente, culturalmente viva, socialmente crítica e politicamente democrática.
É uma escola que assume sua natureza dialética: reproduz, mas também
transforma; conserva, mas também produz novas formas de pensar e agir; organiza
saberes, mas também reinventa práticas. Em vez de disciplinar corpos para um
mundo que não existe mais, ela deve formar sujeitos autônomos, capazes de
compreender a complexidade das sociedades contemporâneas e de intervir nelas
com racionalidade, criatividade e responsabilidade pública. Superar a crise da
forma escolar significa, portanto, produzir uma nova escola contemporânea,
compatível com o estágio atual do desenvolvimento científico, tecnológico e
social — sem abdicar do ideal iluminista de uma educação voltada à emancipação
humana.

